História do Brasil (Frei Vicente do Salvador)/IV/XXVI

Informado Sua Majestade das coisas da Paraíba, e que todo o dano lhe vinha do rio Grande, onde os franceses iam comerciar com os Potiguares, e dali saíam também a roubar os navios, que iam, e vinham de Portugal, tomando-lhes não só as fazendas, mas as pessoas, e vendendo-as aos gentios, para que as comessem, querendo atalhar a tão grandes males, escreveu a Manuel Mascarenhas Homem, capitão-mor em Pernambuco, encomendando-lhe muito que logo fosse lá fazer uma fortaleza, e povoação, o que tudo fizesse com conselho e ajuda de Feliciano Coelho, a quem também escreveu, e ao governador geral d. Francisco de Souza, que para isto lhe desse provisões, e poderes necessários para gastar da sua Real Fazenda tudo o que lhe fosse necessário, como em efeito o governador lhe passou, e lhe pôs logo tudo em execução com muita diligência, e cuidado, mandando uma armada de seis navios e cinco caravelões, que o fossem esperar à Paraíba, na qual ia por capitão-mor Francisco de Barros Rego, por almirante Antônio da Costa Valente, e por capitães dos outros navios João Paes Barreto, Francisco Camelo, Pero Lopes Camelo, e Manuel da Costa Calheiros.

Por terra com o capitão-mor Manuel Mascarenhas foram três companhias de gente de pé, de que eram capitães Jerônimo de Albuquerque, Jorge de Albuquerque seu irmão, e Antônio Leitão Mirim, e uma de cavalo, que guiava Manuel Leitão: os quais chegados uns e outros à Paraíba, se ordenou que Manuel Mascarenhas fosse por mar ao rio Grande, na armada que veio de Pernambuco, e levasse consigo o Padre Gaspar de S. João Peres, da companhia, por ser grande arquiteto, e engenheiro, para traçar a fortaleza, com seu companheiro o padre Lemos, e o nosso irmão frei Bernardino das Neves, por ser muito perito na língua brasílica, e mui respeitado dos Potiguares, assim por essa causa, como por respeito de seu pai o capitão João Tavares, que entre eles por seu esforço havia sido mui temido, o qual levou por companheiro outro sacerdote da nossa província chamado frei João de S. Miguel; e que Feliciano Coelho fosse por terra com os quatro capitães, e companhias da gente de Pernambuco, e com outra da Paraíba, de que ia por capitão Miguel Álvares Lobo, que por todos faziam soma de 188 homens de pé e de cavalo, fora o nosso gentio, que eram das aldeias de Pernambuco 90 flecheiros, e das da Paraíba 730, com seus principais, que os guiavam, o Braço de Peixe, o Assento de Pássaro, o Pedra Verde, o Mangue, e o Cardo Grande, e este exército começou a marchar das fronteiras da Paraíba a 17 de dezembro de 1597, indo as espias, e corredores diante queimando algumas aldeias, que os Potiguares despejavam com medo, como confessaram alguns, que foram tomados, mas aos que fugiam os inimigos não fugiu a doença das bexigas, que é a peste do Brasil, antes deu tão fortemente em os nossos índios, e brancos naturais da terra, que cada dia morriam de dez a doze, pelo que foi forçado ao governador Feliciano Coelho fazer volta à Paraíba para se curarem, e os capitães para Pernambuco com a sua gente, que pôde andar, dizendo que cessando a doença tornariam, para seguirem a viagem, exceto o capitão Jerônimo da Albuquerque, que se embarcou em um caravelão, e foi ter ao rio Grande com seu capitão-mor Manuel de Mascarenhas, o qual havia ido na armada, como já dissemos, e na viagem teve vista de sete naus de franceses, que estavam no porto dos Búzios contratando com os Potiguares, os quais como viram a armada picaram as amarras, e se furam, e a nossa não a seguiu por ser tarde, e não perder a viagem.

No dia seguinte pela manhã mandou Manuel Mascarenhas dois caravelões descobrir o rio, o qual descoberto, e seguro entrou a armada à tarde guiada pelos marinheiros dos caravelões, que o tinham sondado, ali desembacaram, e se trincheiraram de varas de mangues para começarem a fazer o forte, e se defenderem dos Potiguares, que não tardaram muitos dias que não viessem uma madrugada infinitos, acompanhados de 50 franceses, que haviam ficado das naus do porto dos Búzios, e outros que aí estavam casados com potiguares, os quais, rodeando a nossa cerca, feriram muitos dos nossos com pelouros e flechas, que tiravam por entre as varas, entre os quais foi um capitão Rui de Aveiro no pescoço com uma flecha, e o seu sargento, e outros, com o que não desmaiaram antes como elefantes à vista de sangue mais se assanharam, e se defenderam, e ofenderam os inimigos tão animosamente que levantaram o cerco, e se foram, depois veio um índio chamado Surupiba pelo rio abaixo em uma jangada de juncos, apregoando paz, o qual prenderam em ferros, e com estar preso mostrava tanta arrogância, que vendo o aparato com que Manuel de Mascarenhas se tratava, e comia, disse que o não haviam de tratar menos, e assim lhe dava um tratamento, e por persuasão dos padres da companhia, posto que contradizendo o nosso irmão frei Bernardino, que conhecia bem suas traições e enganos, enfim o soltou, e mandou, prometendo-lhe o índio de trazer todo o gentio de paz, para o que lhe deu vestidos, e outras coisas que pudesse dar aos seus, não só quando foi, mas ainda depois por duas vezes, que lhas mandou pedir, dizendo que já os tinha apaziguados, e vinham por caminho a entregar-se, porém indo dois batéis nossos com 20 homens, de que ia por cabo Bento da Rocha, a cortar uns mangues, estando metidos em uma enseada, e começando a fazer a madeira, os cercaram por entre os mangues, para os tomarem na baixa-mar, quando os batéis ficassem em seco, onde houveram de ser todos mortos, se um dos batéis, que era maior, se não fora pôr de largo, aonde os descobriu, e deu aviso ao outro para que se embarcasse a nossa gente à pressa, e se alargasse dos inimigos, os quais em continente se saíram da emboscada, e se foram metendo pela água a tomar-lhes uma restinga, que estava no meio do rio, donde se puseram a ralhar, dizendo que já os tinham na rede, entendendo que o batel ficaria em seco, mas quis Deus dar-lhe um canal por onde saíram, e foram dar aviso ao Mascarenhas, que se acabou de desenganar de suas traições, e enganos, e muito mais depois que viu daí a poucos dias os montes cobertos de infinidade deles, que desciam com mão armada a combater outra vez a nossa cerca, na qual os não quis esperar, nem que chegassem a pôr-lhe cerco, antes os foi esperar ao caminho, e lançando uma manga por entre o mato, os entrou com tanto ânimo, que fez fugir os da retaguarda, e seguiu os da vanguarda até o rio, e ainda a nado pela água os foram os nossos índios Tabajaras matando, sem deixar algum com vida, amarando-se tanto nesta pescaria, que foi necessário irem os nossos batéis a buscá-los já fora da barra; mas nem isto bastou, para que não continuassem depois com contínuos assaltos, com que puseram os nossos em tanto aperto, que escassamente podiam ir buscar água para beberem a uns poçosinhos, que tinham perto da cerca, e essa muito ruim, e tantas outras necessidades, que se não chegar a Francisco Dias de Paiva, amo do capitão-mor, que o criou, em uma urca do reino, que el-rei mandou com artilharia, munições, e alguns outros provimentos para o forte, que se fazia, e as esperanças em que se sustentavam de lhes vir cedo socorro da Paraíba, houvera-lhes de ser forçado deixar o edifício, pelo que, tanto que os doentes começaram a convalecer, logo Feliciano Coelho mandou recado aos capitães de Pernambuco, e vendo que não vinham sé aprestou com a sua gente, e tornou a partir da Paraíba a este socorro a 30 de março de 1598, só com uma companhia de 24 homens de cavalo, e duas de pé, de 30 arcabuzeiros cada uma, das quais eram capitães Antônio de Valadares, e Miguel Álvares Lobo, e 350 índios flecheiros com seus principais.

Não acharam em todo o caminho senão aldeias despejadas, e alguns espias, que os nossos também espiaram, e tomaram, pelos quais se soube que uma légua do forte, que se fazia, estava uma aldeia grande, e fortemente cercada, donde saíam a dar os assaltos nos nossos, pelo que mandou o governador apressar o passo, para que os pudesse tomar descuidados, e contudo a achou despejada, e capaz para se alojar o nosso arraial.

Ali veio o dia seguinte Manuel Mascarenhas a visitá-lo, e trataram sobre o modo que havia de haver para se acabar o forte, porque tinha ainda grandes entulhos, e outros serviços para fazer, e disse Feliciano Coelho que ele com a sua companhia de cavalo, e com a gente do Braço, trabalhariam um dia, e Antônio de Valadares com a gente do Assento outro dia seguinte, e Miguel Álvares Lobo com a gente do Pedra Verde outro; e esta ordem guardariam enquanto a obra durasse, dando também a cada companhia do gentio um branco perito na sua língua, que os exortasse ao trabalho, e estes eram Francisco Barbosa, Antônio do Poço, e José Afonso Pamplona, mas não deixaram por isto de reservar alguns, que corressem o campo em companhia de alguns brancos filhos da terra, os quais foram dar em uma aldeia, onde mataram mais de 400 Potiguares, e cativaram 80, pelos quais souberam que estava muita gente junta, assim Potiguares como franceses, em seis cercas muito fortes, para virem dar sobre os nossos, e os matarem, e se já o não tinham feito era porque adoeciam, e morriam muitos do mal de bexigas.

Neste mesmo tempo, que a obra do forte durava, chegou um barco da Paraíba com refrescos de vitelas, galinhas, e outras vitualhas, que mandava a Feliciano Coelho Pero Lopes Lobo, seu loco tenente, e deu novas o arrais, que no porto dos Búzios estava surta uma nau francesa, lançando gente em terra, ao qual acudiu logo Manuel Mascarenhas com toda a gente de cavalo, que havia, e 30 soldados arcabuzeiros e muitos índios, e deu nas choupanas, em que os Potiguares estavam já comerciando com eles, onde mataram 13, e cativaram sete, e três franceses, porque os mais embarcaram, e fugiram no batel, e outros a nado; e vendo o capitão-mor Manuel Mascarenhas que não tinha embarcações para poder cometer a nau, ordenou uma cilada fingindo que tinha ido, e deixando na praia um francês ferido, para que o viessem tomar da nau no batel, como de feito vieram, mas os da cilada tanto que viram desembarcado o primeiro saíram tão desordenadamente que só este tomaram, e os outros tornaram à nau, e largando as velas se foram.