História do Brasil (Frei Vicente do Salvador)/IV/XXXVI

Já no capítulo trigésimo nono deste livro disse como Zorobabe indo da guerra dos Aimorés para a Paraíba deu de caminho, por mandado do governador, no mocambo dos negros fugidos, matou alguns, e prendeu outros, de que levou os que quis, e os foi vender aos brancos, com que comprou bandeira de campo, tambor, cavalo, e vestidos para entrar triunfante em a sua terra, da qual o vieram esperar ao caminho alguns Potiguares 40 léguas, outros a vinte, e a dez, abrindo-lho, e limpando-lho a enxada. Só o Braço de Peixe, que era gentio Tabajara, se deixou estar com os seus na sua aldeia, e porque o Zorobobe determinou passar por ela lhe mandou dizer que saísse a esperá-lo à entrada, pois os mais o haviam feito tão longe, ao que respondeu o velho, ainda que já centenário, que fora de guerra nunca fora esperar ao caminho senão damas, e pois ele não era dama, nem vinha dar-lhe guerra, não se levantaria da sua rede, com a qual resposta o Zorobabe passou de largo, e foi jantar ao rio Niobi, meia légua da sua aldeia, por onde caminhava.

Dali mandou também recado aos nossos religiosos, que nela assistiam, que lhe mandassem uma dança de corumins, que eram os meninos da escola, e lhe enramassem a igreja, e abrissem a porta, porque havia de entrar nela.

O presidente dos religiosos respondeu ao embaixador que os meninos com o alvoroço da sua vinda andavam todos espalhados, que a igreja não se enramava senão a festa dos santos, mas que a porta estava aberta: entrou ele à tarde a cavalo, bem vestido, e acompanhado com sua bandeira, e tambor, e um índio valente com espada nua esgrimindo diante, e fazendo afastar a gente, que era inumerável.

Com este triunfo passou pelo terreiro da igreja, e sem entrar nela se foi, meter em casa, mas logo veio um parente seu, que já era cristão, e se chamava Diogo Botelho, e até então havia governado a aldeia, em seu lugar, a desculpá-lo com os religiosos, que não entrara na igreja por vir bêbado, porém que viria o dia seguinte, como fez, mandando primeiro pôr no cruzeiro cinco cadeiras, e a do meio, em que ele se assentou, estava coberta de alto a baixo com um lambel grande de lã listrado, nas outras se assentaram o dito seu parente, e os principais das outras aldeias, que vieram receber, dos quais era um o Mequiguaçu, principal em outra aldeia, que já era cristão, e se chamava d. Filipe, ali lhe foram os religiosos dar as boas-vindas, e o levaram para dentro, à escola onde se ensinam os meninos, em que os assentos eram uns rolos, e pedaços de paus, em que se assentaram, mas logo o Zorobabe se enfadou, e quisera ir-se se o presidente o não detivera, dizendo-lhe que via ali junto todo o gentio da Paraíba, e muitos portugueses, e que não iam a outra coisa, segundo todos diziam, senão a saber sua determinação, pelo que ele queria o dia seguinte, que era domingo, pregar-lhes, e porque na pregação se não podia dizer senão a verdade, a queria saber dele neste particular, por isso que não lha negasse; ao que respondeu que sua determinação era ir dar guerra ao Milho Verde, que era um principal do sertão, que lhe havia morto um sobrinho cristão chamado Francisco, e pelo seu nome antigo Aratibá, que seu irmão o Pau Seco havia mandado a dar-lhe guerra, e pois ele por morte do pai, e filho entrava agora no governo, a queria continuar, e tomar a vingança; o presidente lhe disse que já eram vassalos de el-rei, e não podiam fazer guerra justa sem ordem sua, e do seu governador geral nestes estados; e além disso, que bem sabia a condição dos seus, que tanto que a guerra fosse apregoada haviam de largar a agricultura, e como à guerra não haviam de ir as mulheres, nem os velhos, e meninos, ficariam morrendo de fome, pelo que se lhe parecesse pregaria que roçassem, e plantassem primeiro, e que esta fosse também a sua fala, para que se aquietassem, no que ele consentiu, e assim se tornaram às suas aldeias quietos.

O Zorobabe foi também visitado de muitos brancos da Paraíba, com boas peroleiras de vinho, e outros presentes, ou por seus interesses de índios, por seus serviços, e empreitadas, ou por temor que tinham da sua rebelião, por o verem tão pujante, o qual temor era tão grande que o capitão da Paraíba, excitado dos de Itamaracá, e Pernambuco, não cessava de escrever ao presidente que vigiasse, porque se dizia estar o gentio rebelado com a ida deste principal, o que os religiosos não sentiam em algum modo, porque o achavam mui obediente, só se queixou uma vez que não iam à sua casa, como faziam os mais moradores da Paraíba, ao que responderam os religiosos que não iam lá porque não era cristão, e tinha muitas mulheres, e ele disse que cedo as largaria, e ficando com só uma se batizaria, que já para isto tinha mandado criar muitas galinhas, porque ele não era vilão como os outros, que comiam nas suas bodas, e batismo carne de vaca, e caças do mato, mas que o seu banquete havia de ser de galinhas, e aves de pena: contudo, quando se embebedava era inquieto e revoltoso, e foi crescendo tanto o medo nos portugueses, que o prenderam e mandaram a Alexandre de Moura, capitão-mor de Pernambuco, e daí ao governador, os quais na prisão lhe deram por muitas vezes peçonha na água e vinho, sem lhe fazer algum dano, porque dizem que receoso dela bebia de madrugada a sua própria câmara, e que com esta triaga se preservava e defendia do veneno; finalmente o mandaram para Lisboa, donde por ser porto de mar, do qual cada dia vem navios para o Brasil, em que podia tornar-se, o mandaram aposentar em Évora Cidade, e aí acabou a vida, e com ela as suspeitas da sua rebelião.