Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais/II/II

Formosas e risonhas são as campinas no município da Uberaba, profundas e gigantescas as florestas, e os hori­zontes sempre afogueados pelos raios de um sol abrasador são esplêndidos e deslumbrantes. Vastíssimas colinas se estendem com suaves ondulações por distâncias sem-fim, orladas de verde-negros capões, que ensombram o leito de caudais e límpidos ribeirões. Extensas linhas de buritis se enfileiram pela macega ao longo dos brejais até se perderem nas profun­didades do horizonte. Lisos e viçosos vargedos vão terminar ao pé de um cordão de boleados outeiros de pouca elevação, que se desenham fumacentos no fundo do painel à semelhança de uma nuvem cinzenta fixa na orla extrema do céu.

Nem são essas campinas como as desabridas e monótonas pampas das regiões do sul, onde a vista em vão se cansa procurando em derredor um ponto, em que repouse, um pe­queno cômoro sequer e que interrompa a insípida uniformi­dade dos horizontes; nem como essas savanas e chapadões intermináveis, como os há nas províncias do norte e do centro, que o viajante palmilha de sol a sol sem que jamais lhe afa­guem os ouvidos o ramalhar da folhagem, nem o consolador murmúrio das torrentes, sem ver mais que campo e céu, e ouvindo apenas o zunido dos ventos, e o enfadonho zumbido das cigarras. De espigão em espigão varia a perspectiva, e apresenta novos e sempre risonhos panoramas.

No meio desses plainos por entre as manadas de gado sem conto vagueiam os veados, e as emas passeiam em bandos erguendo o esbelto e altaneiro colo até a altura de um ca­valeiro. O canto do campeiro, que anda pelos rincões arreba­nhando o gado, os trinos agudos da siriema, o pio melancólico da perdiz, e o monótono chiar do carro de bois, que atravessa os chapadões carregado dos produtos de pingues colheitas, eis os únicos sons, que de ordinário quebram o silêncio da­quelas afortunadas e risonhas solidões.

As vivendas dos fazendeiros são comumente construções toscas e singelas, ainda que cômodas e vastas. Mas em compensação a situação delas é quase sempre aprazível e pitoresca, ao pé de algum suave lançante, ouvindo o marulho da torrente, que corre à sombra dos buritizais, e olhando ao longe pelos descampados espigões.

Em frente à casa há sempre um vasto curral ou terreiro, em torno do qual estão o engenho, o moinho, o paiol e mais outros acessórios da fazenda. Por detrás se estende um vasto pomar, um verdadeiro bosque sombrio e perfumoso, onde a laranjeira, o limoeiro, a jabuticabeira, o jambeiro, o genipa­peiro, o mamoeiro, o jaracatiá, as bananeiras e coqueiros de diversas espécies crescem promiscuamente e cruzam suas ra­magens em uma espessa abóbada cheia de fresquidão, de mur­múrios e perfumes. Os cercados são latados de maracujá com seus doces e aromáticos frutos, ou renques de piteiras, eri­çando em torno as longas e agudas hastes como uma floresta de baionetas, do meio das quais se ergue como um estandarte o comprido pendão coroado de brancas flores, O jasmineiro, a cocleária, o bogari, a esponjeira também crescem em torno da casa, pelos cercados, junto às fontes, saturando o ambiente de suavíssimos aromas.

Aqueles céus sempre azuis e límpidos desconhecem os nevoeiros, os invernos, e essas brumas carregadas e úmidas, que costumam embuçar céu e terra em nossas montuosas e tristonhas regiões. Quando é chegada a estação das chuvas, as águas se precipitam do céu em violentas borrascas entre o estampido de horrorosas trovoadas; ao estouro de mil raios parece que a esfera abraseada rompe-se em estilhaços, e se despenha sobre a terra. A copiosa e grossa chuva em pouco tempo rega e lava os espigões, alaga as várzeas, e converte os menores ribeiros em torrentes caudalosas. Mas dura pouco aquela convulsão dos elementos; o mesmo tufão que trouxe a tempestade a varre em breve do firmamento, e o sol torna a dominar em toda a amplidão da esfera azul e resplendente.

Debaixo daqueles céus ardentes, em meio daqueles plai­nos infindos tão cheios de encantadoras perspectivas, cobertos de tão opulenta vegetação e banhados de tanta luz, parece que a imaginação se inflama ao reflexo daqueles horizontes de fogo, e o coração nutre-se de uma seiva de amor e voluptuosidade, que o faz pulsar com mais força, sentir com mais energia. A índole do homem ali é plácida e calma na aparên­cia como o céu, que o cobre, mas no fundo é ardente de sen­timento e de paixão. O sopro das paixões lhe ruge n’alma violento e tormentoso como os pavorosos temporais que atroam aquelas solidões.

Assim, se tomardes um lugar em roda do fogo, que aquece no rancho o caldeirão do tropeiro, ou vos sentardes na varanda do fazendeiro em horas de serão a conversar com o sertanejo, ouvireis sinistras lendas, horríveis histórias de sangue e vingança, e interessantes e românticos episódios de amor, acontecidos naquelas paragens, como este cuja história vos estou contando.

Eduardo, – assim se chamava o caçador ferido – era um moço natural da Vila Franca na província de S. Paulo, alto, bem feito, e de fisionomia agradável e simpática, onde transluziam os dotes de sua alma nobre e bem formada. Era muladeiro; ia todos os anos à feira de Sorocaba ou Curitiba, a comprar bestas, que vendia pelas províncias de S. Paulo, Minas e Goiás. Andava então no giro de seu negócio, e tinha invernado a sua mulada na fazenda vizinha, pertencente a um primo do pai de Paulina, a quem já aludimos no capítulo ante­cedente. Durante esse tempo divertiu-se em caçadas, a que era muitíssimo afeiçoado, o que deu ocasião ao lamentável incidente, que teve lugar na roça de Joaquim Ribeiro.

O fazendeiro vizinho e um filho seu por nome Roberto eram também da partida. Aquele depois de ter acompanhado o ferido a casa do seu parente, despediu-se e retirou-se para a sua fazenda com os outros caçadores, recomendando-lhe toda a paciência e cuidado com o ferido, por ser muito seu amigo, e digno de toda a estima e apreço. Roberto, porém, a pretexto de fazer companhia a Eduardo, deixou-se ficar; mas não fazia mais do que aproveitar-se com avidez da ocasião que se lhe oferecia de passar alguns dias junto de sua prima Paulina, por quem desde criança tinha uma paixão louca. Havia mesmo já como um ajuste tácito entre os pais para o casamento dos dois primos, e já desde a infância os entreti­nham em ar de brinco com essa idéia; – mau costume que há nas nossas famílias, e que às vezes produz funestos resulta­dos. Disse – ajuste entre os pais, porque Paulina por sua parte ouvia sempre falar nisso com a maior indiferença, e entendia que aquilo não passava de um brinquedo entre crian­ças. Roberto, porém, moço que teria vinte anos de idade, sen­tia por sua prima uma verdadeira e ardente paixão, alimen­tada constantemente desde a infância com os mais lisonjeiros sonhos de esperança e de futuro. Além disso encantava-o a perspectiva de uma rica herança que teria de vir-lhe às mãos inteirinha sem outro trabalho mais que esperar que seu fu­turo sogro cerrasse para sempre os olhos no leito da morte.

Roberto era um sertanejo de grosseira educação, de gênio áspero, e asselvajado na superfície, posto que no fundo não tivesse má índole. Com tais predicados bem se vê, que era impossível ser agradável aos olhos da delicada e sensível Paulina.

Posto que bem apessoado e mesmo bonito, a crosta de rudeza que o revestia, tornava impossível qualquer simpatia entre dois caracteres talhados por moldes tão diferentes.

No dia seguinte ao do desastre pela manhã, Paulina, seu pai e o primo achavam-se no quarto de Eduardo, a quem a extrema fraqueza a que o reduzira a grande perda de sangue, não permitia levantar-se da cama. Paulina acabava de trazer um caldo ao doente, que lho agradeceu com um olhar cheio do mais terno reconhecimento.

– Coitadinha da prima! dizia Roberto, – que susto não rapou ontem! por Deus, que eu tinha bem vontade de ver a carinha, com que ficou, quando a bicha embarafustou pelo ran­cho adentro.

– Com efeito, primo! que fraco gosto! que graça podia achar em ver uma cara de defunta?... eu fiquei sem pinga de sangue, e caí logo sem acordo.

– Ah! maldita bicha! mil vidas que lhe tirassem, ainda era pouco para pagar o susto, que lhe pregou, prima.

– Ora!... o susto nada foi, já se passou; mas o golpe, que deu no senhor Eduardo?... para esse sim, é que toda a vingança seria ainda pouca. Admira que o primo, sendo tão valente, não acompanhasse de perto o sr. Eduardo para ajudá-lo a matar a onça; talvez tivesse evitado semelhante desastre.

– Isso é que é verdade; acudiu o velho; – se algum dos outros companheiros chegasse junto aqui com o senhor, e a bicha em vez de um recebesse dois tiros a um tempo, e que pegassem em bom lugar, talvez não tivesse tido tempo de fazer o que fez. Mas o que querem? a rapaziada pateteou...

– Ora essa é que é boa!... pateteou não, meu tio; como é que eu havia de chegar a tempo, se o meu cavalo caiu engastalhado no meio das malditas coivaras que me atravancavam a passagem, e eu levei uma embarroada nesta perna, que me fez chiar, e que até agora está-me doendo, e quase que eu não podia dar um passo. Não fosse isso, eu era o primeiro a chegar, e diabos me carreguem nesta hora, se eu só não tivesse dado cabo da bicha, sem levar um arranhão que fosse...

– Oh! pois não!... exclamou Eduardo sorrindo-se: não havia nada mais fácil... de dizer-se. Meu amigo, eu também levei encontroadas horríveis no meio daquelas diabólicas coivaras e tenho o corpo todo pisado e magoado; o meu cavalo também caiu; mas naquela ocasião eu nada sentia; já de longe eu tinha percebido que havia mulheres dentro do rancho, e ainda que se me tivesse quebrado uma perna havia de me arrastar, custasse o que custasse, até o lugar do perigo. Mas se não fosse essa circunstância, não seria eu bobo de me ir atirar assim, sem quê nem para quê, nas garras do terrível animal.

– Ah! dessa ainda nós não sabíamos, sr. Eduardo,– disse o fazendeiro; mais um motivo, que vem aumentar a meus olhos a imensa obrigação em que lhe estamos. Assim o senhor não praticou apenas um ato de estouvada valentia de caçador, e não foi sem o saber que salvou duas criaturas?

– Não, decerto; tão louco não seria eu...

– E praticou um ato de nobre e generosa dedicação por pessoas que nunca conheceu. Ah, sr. Eduardo! em que dívida lhe estamos, e quando e como poderemos nunca pagá-la.

– Qual dívida, sr. Ribeiro! por favor não se inquiete com isso. Não fiz mais do que a minha obrigação, o que em meu lugar qualquer outro teria feito...

– Mas em seu lugar, – disse Paulina olhando de esguelha e maliciosamente para Roberto – estavam alguns outros e não o fizeram.

Roberto enfiou, mordeu os beiços e corou até às orelhas.

– Porque não puderam – respondeu Eduardo. – Mas se teimam em querer dar-me um sinal de gratidão, basta-me o couro da bicha. Hei de trazê-lo sempre comigo com orgulho como um troféu, a menos que a senhora, – acrescentou vol­tando-se para Paulina, – não o queira para si a fim de pou­sar triunfante os seus mimosos pés sobre os restos do medonho animal, que tão grande susto lhe causou.

– Com bem pouco se contenta, disse o fazendeiro.

– Com isso e com a sua amizade, sr. Ribeiro, eu me julgo muito bem pago, e com a íntima satisfação que me fica n’alma por ter sido útil em um dia de minha vida à sra. d. Paulina.

Estas lisonjeiras palavras ditas com toda a graça e afabilidade, mas em tom de cortesia, não agradaram muito a Pau­lina, a qual quisera que o moço exigisse em paga mais alguma coisa, pois estava pronta a dar-lhe ou antes já lhe tinha dado todo o seu amor. Decerto ela não queria que o moço lhe fizesse ali de chofre uma declaração de amor, mas notou com mágoa íntima, que o mancebo proferiu aquelas corteses palavras quase sem emoção alguma e sem ao menos olhar para ela, o que causou-lhe uma horrível impressão de despeito e desalento. Retirou-se para o canto mais escuro do aposento para esconder a sua perturbação e uma lágrima teimosa, que lhe queria vir aos olhos.

– Ora bolas! – exclamou estouvadamente o primo Roberto, já escandalizado com a prima, e cioso da importân­cia e deferência de que Eduardo era objeto. Não vejo de que estão fazendo tamanho escarcéu, pois o que é lá matar uma onça?... eu cá tenho matado mais de uma, e nem por isso ando a me gabar.

– Não digas tal Roberto! – atalhou o velho, – matar uma onça não é lá grande coisa; também eu as tenho matado e muitas. Mas afrontar o perigo, que o sr. Eduardo arrostou para salvar duas criaturas, é uma ação valorosa e nobre, de que nem todos são capazes.

– Também se ele não a matasse, eu teria dado cabo dela, como tenho dado de muitas outras, tão certo como nós estarmos agora aqui. Que me custava?... a minha espingarda não nega fogo, e, minha mão, louvado seja Deus, não treme ainda, e quando atiro em um bicho destes, não atiro nas costelas, e em todo o caso a prima sempre aqui estaria tão viva e tão sadia como agora aqui se acha.

– Pois bem, senhores – retrucou Eduardo já agoniado com as toleimas do primo e com um sorriso sardônico – façamos de conta, que foi o sr. Roberto, quem matou a onça; isso pouco me importa, e não quero que diga outra vez que estou me gabando. O que me importa é poder restabelecer-me des­tas feridas para poder tratar dos meus negócios. Peço que se esqueçam do pequeno serviço, que tive a fortuna de fazer-lhes, e tratem somente do meu curativo.

– Esquecer! oh! isso nunca! nunca esqueceremos. Mas, silêncio, sr. Eduardo; não lhe convém falar muito e muito menos alterar-se. Tranqüilize-se, que não pouparemos cuida­dos e desvelos para o seu completo restabelecimento. Paulina, Roberto, vamo-nos daqui, deixemos o sr. Eduardo descansar; ele precisa mais de repouso de que de qualquer outra coisa.