Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais/II/XIII
Joaquim Ribeiro, deixando Eduardo no curral, entrou para casa e foi procurar o padre, que estava na sala de jantar acabando de consumir pausadamente uma excelente refeição. Ali comunicou ele confidencialmente ao padre, que era conhecido e velho amigo seu, a verdadeira causa dos padecimentos de sua filha, e as cruéis dificuldades, em que se via, expondo-lhe minuciosamente tudo o que havia ocorrido em sua casa, desde a primeira vez que Eduardo nela aparecera, até o último incidente, que entre ele e Roberto acabava de ter lugar.
– Então já vejo, – disse o padre, que bem pouco pode valer neste caso a medicina, e que no meu caráter de padre e de amigo poderei talvez prestar-lhe melhores serviços aconselhando a esses malucos para entrarem no caminho da boa razão, do qual me parece que ambos eles andam bem desviados, ou consolando a pobre menina, e prestando-lhe, – caso precise, o que Deus não há de permitir, – os socorros do meu ministério. Se o senhor me permite mesmo não sairei de sua casa, enquanto não vir todo esse negócio acomodado e arranjado do melhor modo que for possível.
– Oh! senhor padre, quanto lhe fico agradecido!... faz-me com isso o maior favor do mundo; eu mesmo já lhe ia pedir. Ajude-me, por quem é, a salvar aquela pobrezinha.
– Esse é o meu dever como médico, como padre, e muito particularmente como amigo. Por agora vamos ao quarto da menina a ver como vai passando.
A febre de Paulina tinha declinado consideravelmente, e tinha-lhe voltado a calma e lucidez do espírito; mas achava-se em estado de debilidade e prostração tal, que parecia estar em delíquio. O médico e o pai fizeram-lhe algumas perguntas, a que respondeu com voz lenta e fraca, porém com muito acordo e conveniência.
– Está extremamente fraca, – disse o padre, – mas antes isso... é a reação da febre; se não sobrevier algum outro acesso, não há mais perigo... É preciso ir-lhe dando desde já os cordiais, que indiquei, nada de alimentos, e sobretudo muito sossego. Vamo-nos, sr. Ribeiro; deixemos a menina descansar...
– Não, senhor padre; podem ficar e conversar... não sinto por ora necessidade de repouso. Por que não aparece também o sr. Eduardo?... e o primo... que é dele, meu pai?...
– Roberto, – respondeu-lhe o pai, – teve precisão de ir a casa, – e volta logo à noite. Queres que chame o sr. Eduardo?
Paulina fez um aceno afirmativo.
Ribeiro fez um sinal ao padre chamando-o para fora do quarto.
– Que diz, senhor padre, – perguntou-lhe, apenas saíram, – acha que não haverá inconveniente em deixar que Paulina se entretenha alguns instantes com esse moço?...
– Eu sei, meu amigo?... a presença dele vai-lhe avivar uma lembrança que convinha trazer-lhe sempre arredada do espírito o mais que fosse possível.
– Mas, senhor padre, de que serve não se achar ele ali, se ela o traz sempre presente na imaginação? assim melhor será, que de fato esteja presente; ela quer-lhe tanto... talvez a presença dele lhe sirva de algum alívio e consolação.
– Pode ser; mas recomende ao moço toda a cautela e moderação... uma conversação só para distraí-la e nada de tocar em assuntos melindrosos, nada de excitar-lhe emoções...
O bom padre não considerava, que bastava verem-se para alvoroçar-se um pego de emoções no fundo daquelas duas almas tão amantes, e tão desafortunadas.
Eduardo ainda se achava à sombra da gameleira, absorvido em suas amargas reflexões, quando delas foi distraído pelo chamado de Joaquim Ribeiro.
Introduzido no quarto de Paulina, Eduardo foi sentar-se triste e silencioso junto à sua cabeceira.
– Bem aparecido, sr. Eduardo! – disse-lhe ela; – estava mesmo com vontade de o ver. Acho-me tão tranqüila!... parece que a paz dos anjos desceu sobre a minha alma...
– Não faz idéia, d. Paulina, do quanto me alegram suas melhoras...
– Mas acho-me tão fraca... tão fraca, que quase não posso mover-me... o que vale é que o senhor me quer bem, e o seu amor me há de dar alento e vida, não é assim?
– Sim, d. Paulina, – exclamou o mancebo tomando-lhe a mão que pendia à beira da cama, como um jasmim debruçado à borda de um vaso de alabastro; – o amor que lhe tenho é muito grande, e se este amor pode restituir-lhe a saúde perdida, a vida e a felicidade, eu me julgarei o homem mais afortunado do mundo... mas, d. Paulina, é preciso que a senhora se tranqüilize, e evite essas lembranças. Tratemos primeiramente da sua saúde, da sua vida, que também é a minha, ouviu, d. Paulina? depois, quando se achar melhor trataremos do nosso amor.
– Não, não, sr. Eduardo; tratemos dele já; tratemos dele sempre; é só ele que me dá algum alívio aos meus padecimentos... diga-me, esteve com o primo? falou com ele?...
– Ah! meu Deus! meu Deus! que hei de eu dizer-lhe?... pensou Eduardo no maior embaraço, e respondeu tropeçando nas palavras:
– Com o sr. Roberto? ah!... sim... falei-lhe... porém ele...
– Acabe... mas para quê? já sei; não quis ceder por nada, não é assim?
– Não é isso, d. Paulina; é que ele nada quis decidir; estava de muito mau humor.
– Que disfarce, sr. Eduardo! para que quer enganar-me?... bem se está vendo por esse seu ar triste, por suas meias palavras, que não há para nós esperança de felicidade. Que lhe dizia eu, sr. Eduardo?
Paulina, que meio sentada tinha a cabeça encostada à cabeceira do catre, deixou-a cair tristemente sobre o peito.
– Não quero enganá-la, não d. Paulina; por quem é, não desanime assim. Seu primo ficou muito agastado, é verdade; era isso muito natural naquele primeiro choque, que tanto o devia magoar... decerto mais tarde, refletindo friamente...
– Qual!... nunca! nunca!... é impossível!... interrompeu a moça abanando tristemente a cabeça. Eu conheço-o muito... desde criança; é mais fácil morrer do que consentir que eu me case com outro. Que loucura a daquele pobre primo! não vê que não encontrará mais do que um cadáver? Fuja, senhor Eduardo; suma-se da minha presença! eu sou dele. Cumpra o seu juramento. Eu também jurei... não vê este beijo na face... ainda me está ardendo como brasa... isto é mais que um juramento...
Um vivo rubor despontava nas faces de Paulina; seus olhos desvairados se incendiavam de um fulgor estranho, e o sorriso pálido da insânia lhe vagueava pelos lábios. Era um novo acesso da febre e do delírio, que se anunciava. Eduardo consternado e pálido de susto, em vão procurou palavras para acalmá-la; chamou Ribeiro e o padre, que estavam num compartimento vizinho, e saiu com o coração esmagado de dor e desalento.
Seriam três horas da tarde, quando se manifestou em Paulina esse novo acesso de delírio, que durou até a noite. Com a noite porém acalmou-se, e Paulina conversou placidamente com seu pai, com o padre e com Eduardo. Parecia reanimada; mostrou-se tão tranqüila e arrazoada; sua conversação foi tão cheia de senso e lucidez, que a todos encheu de esperanças. Assim esteve até perto da meia-noite conversando sossegada e distraída sem o mais leve indício de outro sofrimento que não fosse a nímia fraqueza. O resto da noite, ao que pareceu, passou-a tranqüilamente adormecida.
Quando Paulina acordou era já dia. Mandou chamar seu pai, o padre e Eduardo. Logo que chegaram, perguntou se podia abrir a janela do seu quarto, pois estava com saudade do ar e da luz.
– Sem dúvida nenhuma, – respondeu o padre, – visto que não há vento, e o ar não está úmido nem frio; é mesmo conveniente renovar-se o ar deste quarto.
Estava uma manhã esplêndida. A janela do quarto de Paulina dava para o seu jardim, desse jardim, que outrora, em tempos mais felizes, ela cultivava com suas próprias mãos e que era o enlevo da sua solidão.
A bafagem de ar que entrou pela janela, inundou o quarto de um delicioso perfume de jasmins e flores de laranjeira. Uma chusma de passarinhos esvoaçava e trinava pelos ramos florescidos do pomar; os colibris verdes cruzavam-se zumbindo pelos ares, lindas borboletas entravam e saíam volteando pelo quarto, e por baixo mesmo da janela, pousada sobre uma romeira ressonava uma suavíssima e festiva orquestra de pintassilgos. O ar estava tépido e sereno, e o céu de um esplendor e limpidez maravilhosa.
Paulina estava plácida e calma, mas em tal palidez e imobilidade, que mais parecia uma estátua de alabastro. Pouco a pouco porém ao contato daquele ar puro e embalsamado, daquela luz suave, suas feições foram-se reanimando, um leve matiz de rosa assomou-lhe às faces, seus olhos encheram-se de um meigo fulgor, e denunciavam que uma alma vivificava ainda aquele formoso e delicado corpo. Apesar da sua prostração, no rosto de Paulina transluzia um bem-estar, uma serenidade angélica; seus seios arfavam brandamente, um meio sorriso da mais suave expressão estava fixo em seus lábios, e sobre a fronte parecia que lhe pairava um reflexo da bem-aventurança.
Parecia reinar naquele aposento um não sei quê de místico e beatífico, um eflúvio celestial que todos aspiravam em santo e silencioso recolhimento. Eduardo, sobretudo, cheio de emoção, de amor e de esperança, contemplava em adoração o rosto de Paulina, e julgava-se transportado ao paraíso.
O silêncio, que há alguns instantes reinava naquele aposento, como em um santuário, teria durado ainda mais longo tempo, se não viesse quebrá-lo bruscamente um pajem, que entrou aceleradamente no quarto, e entregou uma carta a Joaquim Ribeiro. Este no mesmo instante abriu-a sem refletir, que ia excitar a curiosidade de Paulina, e que a carta que vinha da fazenda do pai de Roberto, podia conter uma má nova. Dentro dela vinha outra carta dirigida a Eduardo, que Ribeiro imediatamente lhe entregou.
Ribeiro passou rápida e silenciosamente os olhos pela carta que lhe era dirigida; o seu conteúdo era o seguinte:
– “Dou-lhe a triste notícia que meu filho Roberto amanheceu hoje morto em seu quarto com a cabeça atravessada por uma bala. O infeliz, quando aqui chegou ontem, encerrou-se em seu quarto sem aparecer a ninguém. Ao romper do dia ouviu-se um tiro no seu quarto; acudiu-se prontamente, arrombou-se a porta, e fomos achá-lo estendido no chão e lavado em sangue. Que desgraça, meu amigo!... não posso atinar com o motivo que o levou a tal loucura... Achou-se sobre sua mesa essa carta ao senhor Eduardo, com a recomendação de ser entregue imediatamente, como verá no sobrescrito.”
Por mais esforço, que fizesse Ribeiro para ocultar a sua perturbação durante a leitura, a mágoa e a consternação pintavam-se em seu rosto.
Paulina, que tudo estava observando, perguntou-lhe com a ansiedade:
– É carta do primo Roberto, não é, meu pai?
– Não, minha filha ;– respondeu o velho esforçando-se por mostrar-se tranqüilo; – é um simples recado de teu tio; não tem importância alguma; pede-me apenas que entregue imediatamente aquela carta ao senhor Eduardo, e pede-me notícias de tua saúde.
– Ah! meu pai!... meu pai!... quem sabe?... Vosmecê quer me enganar... e essa outra carta?... de quem é, senhor Eduardo?... leia, leia em voz alta... por favor, se não é algum segredo...
Eduardo, que acabava de decifrar não sem dificuldade os terríveis garranchos, que o infeliz Roberto com mão convulsa tinha traçado naquele papel, vendo que nenhum inconveniente havia na leitura daquela carta, que à exceção da última frase, – a qual envolvia um sentido sinistro, – continha uma lisonjeira notícia, que ele estava ansioso por comunicar a Paulina, leu em voz alta o seguinte:
“Senhor Eduardo. Confesso e reconheço, que ontem fui estouvado e grosseiro com o senhor. Hoje, pensando melhor, vejo que o senhor tem razão, e que eu sou um desgraçado que nada tem mais que fazer neste mundo. Desisto de tudo; faça de conta que eu nunca existi; e que nunca o senhor me deu juramento nenhum. Adeus! sejam felizes, e rezem por minha alma. Roberto.”
Estas últimas palavras Eduardo suprimiu-as na leitura.
– Pobre de meu primo! – exclamou Paulina, apenas Eduardo acabou de ler; – e eu que supunha que ele não seria capaz de dar esse passo!... que injustiça!... hei de lhe pedir perdão de joelhos... que coração! que alma de anjo!... meu pai!... senhor Eduardo!...
A moça quase não podia mais falar de emoção; soluçava e arquejava comprimindo o peito com as mãos, como temendo que lhe rebentasse.
– Basta, – exclamou o pai já cheio de inquietação; basta, minha filha; não convém que fales mais. Acalma-te; o céu acaba de fazer tudo para a tua felicidade; agora o que precisas é saúde... vamos; deita-te e descansa... nada de conversas por ora;... retiremo-nos, meus senhores.
– Para quê, meu pai?... eu acho-me tão contente... e tranqüila... senhor Eduardo, por favor demore-se um momento... meu pai há de permitir, que lhe diga duas palavras.
– Paulina!... mais tarde, minha filha, conversarás com ele quanto quiseres.
– Não tenha susto, meu pai; duas palavras só, e ele sairá logo, – disse Paulina cravando-lhe um olhar suplicante.
O pai não teve ânimo de contrariá-la mais.
– Pois bem, minha filha; porém cautela; por quem és, não fales muito, nem te comovas.