Histórias e Tradições da Província de Minas Gerais/III/VII
Imaginem os leitores, que eu não o tentarei descrever, como rápidos e deliciosos corriam os dias aos dois jovens amantes fruindo em segredo seus furtivos amores à sombra das florestas virgens, ao murmúrio dos córregos do deserto. Vênus e Adônis, vagueando pelos vergéis da Idália, Diana e Endimião pelas selvas da Tessália não gozaram momentos mais venturosos do que os nossos dois jovens sertanejos à sombra das florestas americanas.
Mas essa bem-aventurança não devia durar muito tempo, como toda aquela que provém de uma fonte impura e viciada. As portas daquele paraíso de delícias deviam ser-lhes trancadas, como foram aos primeiros pais da humanidade, que morderam o fruto vedado por expressa determinação da divindade.
Carlito era leviano e volúvel como criança, que era. Depois de se ter longamente embriagado de volúpia nos braços amorosos da feiticeira cabloca, começou a sentir cansaço, a enfastiar-se como o conviva repleto depois de uma longa noite de orgia. Pouco a pouco e sem o sentir ia escasseando suas carícias, e já não era tão assíduo e extremoso ao pé de sua amante. Jupira pelo contrário cada vez o amava com mais ardor, e seria capaz de passar a enternidade nos braços dele sem a menor quebra na exaltação de seus afetos. Doía-lhe cruelmente no íntimo da alma aquele resfriamento da paixão do moço; mas Jupira não sabia queixar-se, nem chorar.
Quantas vezes ia ela ao aprazível remanso do Rio Verde, onde costumava banhar-se, sítio favorito de suas furtivas entrevistas, e ali ficava largo tempo sentada com a mão na face a olhar para o fundo límpido do rio a esperar em vão pelo remisso e frouxo amante, que não vinha!
Uma tristeza mortal lhe pesava sobre o coração, e cansada de esperar voltava para casa com a fronte baixa e a passos vagarosos.
– Que tens, Jupira?... o que estás aqui cismando assim tão triste?... disse-lhe Carlito um dia em que a encontrou naquela triste postura, pensativa à beira do rio.
– Ah! Carlito!... Carlito!... por que razão não me queres mais bem?...
A rola viúva não saberia gemer com mais tristeza, do que Jupira suspirou aquela magoada queixa.
Carlito comovido caiu em si, e sentiu acudirem-lhe as lágrimas aos olhos.
– Eu não te querer mais, meu bem? quem te disse isso?...
– Quem me disse!?... ainda me perguntas?... estas árvores, este rio, este céu que nos cobre, tudo está vendo que não sou mais querida...
Carlito não sabendo o que responder-lhe, abraçou-a, e procurou abafar-lhe a voz com beijos.
– Deixa-me, Carlito; Jupira já não é mais tua, – murmurou ela esquivando-se aos beijos de Carlito.
Os olhos de Jupira desataram uma torrente de lágrimas. Era a primeira vez que chorava em dias de sua vida, desde que deixara de ser criança.
As lágrimas que borbotavam ardentes e copiosas dos olhos de Jupira, escaldavam as faces de Carlito, mas bem depressa se estancaram, e os olhos da cabocla reluziram secos e cintilantes como os da jararaca enfurecida; passou pelos lábios ressequidos a língua fina e rubra, soltou um sorriso convulso, amargo, indefinível, e disse:
– Quando não me quiseres mais bem, me fala; ouviste, Carlito?...
– Quando é que hei de deixar de te querer bem?... Jupira, por quem és não me fales assim.
– Como não hei de falar?... torno a repetir, quando me não quiseres mais, fala, Carlito.
– Então podes ficar certa, que nunca te hei de dizer nada.
– Sim?... por quê?
– Porque nunca hei de deixar de te querer.
– Isso é de boca... teu coração diz o contrário... bem estou vendo... não será necessário que me digas nada... mas quero ver ainda mais, e depois...
– E depois o quê, Jupira?
– Estás vendo esta faca? disse a cabocla tirando do seio e desembainhando a lâmina luzente e afiada de sua pequena faca.
– Jupira!...
– Não estás vendo? – continuou Jupira com um tom de glacial indiferença, que fez estremecer o rapaz. – Acho que a folha desta faca é bastante comprida para chegar-me ao coração, e ao teu também, Carlito.
Carlito, que estava sentado ao pé dela, pôs-se em pé de um salto.
– O que é isso? exclamou aterrado: o que dizes, menina?...
– Não te assustes, meu Carlito, – disse a cabocla com um sorriso de inexplicável expressão e tornando a meter no seio a faca. – Cuidas já que quero matar-te?... não sou tão má como isso... Tu é que queres matar-me com tuas ingratidões.
– Mas quantas vezes queres que eu jure que nunca, nunca te deixarei?...
– Tens razão... perdoa-me... eu sou uma doida. Vem Carlito; vem sentar-te outra vez ao pé de mim...
O beijo da reconciliação soou entre suspiros. Os dois amantes enlaçaram nos braços um do outro, e alguns momentos depois se retiraram, por lados diversos, Jupira melancólica e abatida, Carlito aterrado e apreensivo.
Jupira ainda não conhecia toda a extensão do seu infortúnio, não sabia a que ponto chegava a ingratidão e aleivosia de seu volúvel e leviano amante. Carlito tinha travado um novo conhecimento, que o ia fazendo esquecer sua encantadora prima. Uma formosa menina loura e branca como uma açucena, filha de uma pobre mulher que vivia de lavar a roupa do seminário, tinha-lhe cativado... não o coração porque esse era leve e livre como o vento; tinha-lhe cativado os olhos. Rosália era uma criança de treze para catorze anos, uma flor quase em botão. Carlito tornou-se seu assíduo adorador, e com tal habilidade soube se haver, que em breve tempo tinha conquistado o coração da menina. Tenho sorvido a fartar o aroma ativo e inebriante da magnólia das florestas, queria aspirar também o delicado perfume do lírio dos jardins. Era um formidável conquistador, que se estava preparando na pessoa do pequeno sertanejo, um d. Juan dos sertões.
Não pôde ficar oculta por muito tempo a Jupira a nova afeição e a deslealdade de seu primo. A pequena povoação de Campo Belo, se povoação se podia chamar, composta de alguns agregados, que viviam na dependência do seminário, constava apenas de um mui limitado número de casinhas dispersas aqui e acolá pelo suave e descampado lançante de uma colina, ao pé da qual corria um pequeno córrego. Da casa de Jupira, portanto, avistava-se perfeitamente a de Rosália, onde ela viu por diversas vezes entrar e sair o seu amante. O zelo entrou-lhe no coração como uma lava incandescente e devastadora. O abatimento e tristeza, em que vivia, converteram-se em raiva e desesperação. Naquela mulher, que amava tanto e com todas as forças de uma alma ardente e impetuosa, o ciúme devia produzir terríveis explosões.
Mais por medo que lhe ia tomando e por dissimular sua inconstância, do que por satisfazer a um desejo do coração, Carlito não deixava de procurar sua prima. Carlito ficou assustado à vista dos lampejos torvos e sinistros, que viu luzirem nos olhos de Jupira num dia em que a foi visitar em sua casa; pareciam relâmpagos, que se desprendiam do seio de uma nuvem negra e tempestuosa. A cada momento cuidava ver luzir-lhe na mão o terrível punhal que lhe havia mostrado à beira do Rio Verde.
– Que tens, Carlito, que estás assim com os olhos espantados? – disse a cabocla com um sorriso de mofa e de desdém. – Ainda estás com medo de mim?...
– Eu com medo de ti ?!... mas parece que estás zangada comigo...
– Se estou!... Carlito!... não zombes comigo assim, que me matas... ou eu te mato...
– Mas o que isso então?... que mal te fiz eu, Jupira?...
– Olhem o inocente!... o que é que vais fazer tantas vezes em casa da Genoveva?...
– Ah!... é só isso?... costumo ir lá sempre, isso não é de agora.
– Mentira!... nunca te vi lá ir.
– Eu mentir?!... para quê, Jupira!... disse Carlito em tom de desdém.
– Para quê?!... então, se gostasse de Rosália, não me enganavas?...
– Ora deixa-te dessas idéias, menina; – disse Carlito em tom de gracejo querendo meter à bulha o negócio para disfarçar a perturbação e embaraço, em que se achava. A Rosália é uma boa menina, com quem estou acostumado a brincar desde criança, e a mãe dela me quer muito bem. Vou lá patuscar com elas e tomar café com biscoitos, que a tia Genoveva faz muito bem-feitos.
– Café com biscoitos! e por que não o vens tomar aqui, como costumavas?...
– Ora! – replicou o rapaz esforçando-se ainda por gracejar. Os biscoitos da Rosália... digo da tia Genoveva, são tão doces...
– Carlito! – bradou a rapariga levantando-se de um salto do tamborete, em que estava sentada, e com os olhos faiscantes. – Carlito, tu zombas de mim?
O rapaz recuou aterrado; mas depois sentiu que era vergonha ter medo de uma mulher.
– Que tens hoje que estás tão bravinha, caboclinha do meu coração?... disse ele procurando ainda zombetear.
Jupira, enfurecida como a boicininga que foi pisada, agarra-lhe num braço, morde-o e enterra-lhe os agudos dentes com toda a força até esguichar sangue. Carlito deu um grito horrível, e saiu correndo pela porta afora.
– Arre!... que dor! que dentes, meu Deus do céu!... ia murmurando o rapaz, e saltaram-lhe dos olhos lágrimas de dor.
De feito, para um primeiro arrufo, uma dentada daquelas não era má estréia, e fazia pressagiar para o segundo um braço quebrado, e para o terceiro uma punhalada.