Historia da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal/VIII

LIVRO VIII



Novos elementos de defesa preparados pelos agentes dos hebreus em Roma. — Clamores publicos na curia. Collecção de documentos contra a Inquisição. Memorial dirigido ao cardeal Farnese. — Perseguição popular contra os christãos-novos. — Quadro dos abusos e excessos das diversas Inquisições de Portugal desde 1540 até 1544. Resolve-se o papa a intervir na questão do modo mais efficaz. Escolha de um novo nuncio para substituir o bispo de Bergamo. A corte de Lisboa, instruida das disposições da curia romana, prepara-se para a contenda.

Resolvidos a tentar um esforço supremo, os christãos-novos preparavam-se para o combate. Diogo Fernandes não podia por certo ser-lhes util encerrado num carcere; mas tinham em Roma agentes seus, enviados das diversas terras do reino onde elles eram mais numerosos e ricos, como Porto, Coimbra, Lamego e Trancoso. Esses agentes começaram a espalhar dinheiro com tal profusão, que Balthasar de Faria desde logo receiou o completo transtorno de um negocio que estava tão bem affigurado[1]. Entre aquelles procuradores, o de Lamego, Jacome da Fonseca, parece ter sido encarregado do papel principal e de manter na curia as relações geraes com os chefes da nação[2]. A sede de ouro era tal naquella Babylonia de prostituição, que, quando o perigo extremo constrangia os judeus portugueses a pôrem de parte a habitual parcimonia e serem amplamente generosos, o primeiro embate tornava-se, a bem dizer, irresistivel, e naquella situação apertada elles tinham comprehendido que a parcimonia não era por certo o melhor instrumento de salvação[3].

Mas a immoralidade extrema, tnumphante naquella epocha, forcejava por guardar as apparencias religiosas. D’ahi nascia a necessidade de uma hypocrisia refinada. Nos documentos d’então que chegaram até nós, e que não eram destinados á publicidade, podemos hoje descortinar em toda a sua hediondez a gangrena que lavrava nos animos, mas a linguagem dos actos publicos ou officiaes era outra, e nunca, talvez, foi tão mesurada, tão pia, tão conforme á justiça; nunca as formulas exprimiram com tanta nitidez o sentimento da dignidade e do pudor, da uncção religiosa, do desejo de seguir os caminhos de Deus. Pôde a civilisação moderna não ter feito os homens melhores, mas a hypocrisia, a mais vil das artes humanas, a amaldicçoada do Redemptor, perdeu com ella quasi todo o seu preço, e hoje, em boa parte até para o vulgo, os ademanes edificativos do hypocrita, as s uas palavras modestas, os seus piedosos arrebatamentos movem a riso ainda mais do que a indignação.

Comprar a benevolencia da corte pontifícia não bastava á gente da nação: cumpria torná-la possivel de facto, e para isso era indispensavel subministrar novos motivos ou pretextos a uma sexta ou septima mudança de politica na curia, de modo que as mesmas apparencias de zelo evangelico e de sede de justiça que serviam agora á causa da Inquisição viessem a servir com plausibilidade contra ella. E, com effeito, o procedimento dos procuradores dos christãos-novos parece ter sido dirigido por estas considerações.

Vimos anteriormente que, no meio do desalento profundo dos hebreus portugueses, os mais opulentos entre elles, impellidos por um egoismo covarde e por uma economia extemporanea, negavam recursos a Diogo Fernandes para a defesa commum, ao passo que offereciam grossas sommas para obter immunidades individuaes, que os mantivessem incolumes no meio da ruina geral. As observações que Diogo Fernandes lhes fazia a este proposito eram por certo desinteressadas e sinceras. A união torná-los-hia mais fortes e as sommas distribuidas entre os funccionarios pontificios para obter breves de protecção a favor desta ou daquella familia, breves a que aliás os inquisidores podiam desobedecer sem graves embaraços, seriam muito mais efficazes empregadas junctas para obter resoluções de caracter generico, e que servissem, não para uma, mas para todas as occorrencias. Em relação aos interesses de Roma, eram mais vantajosas estas concessões singulares, porque talvez lhe rendiam mais e porque a sua quebra, sendo um acto, a bem dizer, obscuro, não debilitava tanto a força moral da sé apostolica, ao passo que a desobediencia a um acto de suprema auctoridade, a uma providencia de grande vulto e de applicação universal e permanente, obrigava o papa a manter essa providencia por interesse proprio, e em defesa de uma supremacia defendida sempre com ciume pela curia romana em todas as questões graves.

Entretanto é preciso confessar que as sollicitações particulares não deixavam de ter influencia no resultado do empenho commum. Esses queixumes continuados mantinham viva em Roma a lembrança das perseguições que se faziam em Portugal, e por muito corruptas que alli estivessem as consciencias, os sentimentos de humanidade não estavam por certo mortos de todo. Na curia devia haver mais de um individuo, não só probo e virtuoso, mas tambem assás esclarecido para desapprovar os actos de intolerante crueldade de que em geral a Peninsula era theatro, e a indignação destes homens, excitada diariamente pela narrativa de novos factos mais ou menos atrozes, auxiliava poderosamente os esforços daquelles que favoreciam opprimidos, não por um sentimento de piedade ou de justiça, mas sim pelos ignobeis motivos que os documentos vem hoje revelar-nos.

Taes eram as circumstancias que parece terem movido os agentes dos christãos-novos a multiplicarem as sollicitações da Inquisição, emquanto colligiam miudamente os attentados e violencias de que era victima a gente da nação, e todas as provas e documentos destes factos, que aliás seriam, em parte, incriveis sem provas. Diarimente appareciam perante a curia romana petições, sollicitando breves a favor dos réus, presos por ordem do tribunal da fé, nas quaes se apontavam flagrantes injustiças e abusos intoleraveis, até contra as proprias disposições da bulla de 23 de maio de 1536, que estabelecera a Inquisição em Portugal. Naquellas supplicas, os actos dos inquisidores eram representados com as mais negras cores, e por certo com grande exaggeração. Os esforços de Balthasar de Faria não se limitavam, porém, a neutralisar o effeito moral dessas violentas accusações. O activo procurador da Inquisição buscava impedir por todos os modos que os sollicitados breves chegassem a expedir-se, tendo para isso de luctar ás vezes até com o cardeal Parisio, que acceitara outr’ora a defesa dos christãos-novos, e que numa situação mais elevada não abandonara os seus antigos clientes[4].

A’quelles meios de excitar a piedade, e de dispor os animos a favor de uma causa quasi perdida, ajunctavam-se outros mais ruidosos. Nos tribunaes, nas estações publicas e nos proprios paços do pontifice appareciam em grupos os christãos novos portugueses que se achavam em Roma e, voz em grita, pediam protecção para seus paes, irmãos, parentes e amigos, que judicialmente eram assassinados em Portugal. Um dia em que Faria acabava de obter do papa a suspensão de um breve que se ía expedir a favor de uma certa Margarida de Oliveira, o filho desta veio lançar-se aos pés de Paulo iii, pedindo justiça contra o agente do rei e da Inquisição, que forcejava por conduzir á fogueira aquela desgraçada. A vehemencia com que se exprimia 0 supplicante, que em tal conjunctura não parece provavel reprentasse uma farça, ultrapassou, como era natural, os termos de comedimento. A sua linguagem foi tal, que, por ordem do pontifice, os guardas o arrastaram para fóra da sala. Communicando este facto a elrei, Faria era de opinião que o impertinente sollicitador fosse mettido no porão de um navio apenas voltasse a Portugal e enviado para um presidio d’Africa[5].

Uma, porém, das mais fortes columnas dos christãos-novos nesta conjunctura era, como acima dissemos, o cardeal Parisio, a cujo voto dava peso o ser abalisado jurisconsulto, tanto nas materias civis como nas canonicas, que ensinara em Padua e em Bolonha. As suas consultas eram celebres na Italia e haviam-lhe grangeiado avultada fortuna[6]. Era um adversario que mais convinha conciliar que combater. Faria empregou nisso a influencia do cardeal de Burgos e de outros personagens. Tudo foi baldado; porque Parisio não disputava, mas proseguia no seu empenho. Em pleno consistorio propôs que se concedesse aos christãos-novos um perdão geral, e sem a opposição tenaz do cardeal Del Monte , talvez o tivesse alcançado[7]. Suppondo que Parisio fosse pago pela gente da nação para taes demonstrações, poder-se-ha dizer que, como cardeal, as suas mãos eram mais puras do que as de outros membros do sacro collegio, mas cumpre confessar que elle não esquecera a probidade relativa do advogado, que, pouco escrupuloso quanto ao modo de tirar proveito das causas que defende, serve todavia com lealdade os que lhe pagara o patrocinio.

Ao tempo que estas cousas passavam occorriam factos que justificavam aos olhos da propria Roma os clamores alevantados no seio della. O procedimento dos inquisidores podia ser ou não justificavel á vista da bulla de 23 de maio; podia haver nos processos maiores ou menores irregularidades ou injustiças; podiam ser verdadeiros ou suppostos os actos de judaismo que serviam de pretexto á recrudescencia de perseguição; mas que esta era terrivel, implacavel, sabía-o toda a Italia, porque via os seus effeitos. A emigração dos christãos-novos portugueses tinha tomado dimensões extraordinarias. Em maio de 1544 Balthasar de Faria avisava elrei de que havie chegado a Ragusa uma nau carregada de fugitivos[8]. A Syria e a Turquia da Europa recebiam diariamente no seu seio familias portuguesas, que, á sombra da meia tolerancia do islamismo, iam buscar essa mesma pouca liberdade religiosa que não achavam na patria[9]. Dez annos depois, só na cidade de Ancona navia perto de tres mil judeus portugueses ou oriundos de Portugal, parte dos quaes eram creanças já nascidas em Italia, e cujos paes, por consequencia, tinham abandonado o paiz nesta epocha de mais feroz perseguição, ou pouco anteriormente. Em Ferrara e em Veneza era tambem grande o numero delles[10]. Muitos deviam acolher-se a outros pontos, onde, como temos visto no decurso desta narrativa, haviam já buscado refugio os seus perseguidos irmãos. A Inglaterra, a França, mas sobretudo os Paizes-baixos fortaleciam a sua industria e o seu commercio com os elementos de riqueza que o inepto chefe de uma pequena e empobrecida monarchia lançava fóra com perseverança insensata.

O dinheiro e os clamores dos christãos-novos, a sua expatriação sempre crescente, de que era testemunha a Europa inteira, e os documentos que obtinham de Portugal em prova da tyrannia que sobre elles pesava não teriam, porventura, bastado para lhes tornar favoravel ainda uma vez mais a corte de Roma, se a questão do bispo de Viseu, desse alliado que os esforços dos agentes de D. João iii parecia terem annulado, não viesse de novo influir desagradavelmente no animo do pontifice. Como vimos no fim do livro antecedente, Balthasar de Faria accedera até certo ponto a uma transacção em que a vingança do rei se conciliasse com a avidez da curia; mas o papa entendeu que era mais conveniente escrever ao nuncio para que tractasse directamente o negocio com o rei, limitando-se a propor que a administração, tanto temporal como espiritual, da diocese de Viseu fosse confiada a elle nuncio, recebendo as rendas da mitra e de todos os benefícios que o bispo-cardeal desfructara. Como, porém, Lippomano não manifestava a applicação que se havia de dar áquellas rendas, o rei declarou categoricamente que não se oppunha a que elle regesse espiritualmente o bispado, mas que, pelo que tocava aos rendimentos da mitra, a coroa continuaria a cobrá-los, conservando tudo em sequestro como até ahi, sem delles distrahir cousa alguma até ulterior destino. Era, todavia, por este lado que a questão tinha importancia para o nuncio, que, á vista da terminante resolução d’elrei, recusou encarregar-se da administração espiritual[11]. Facil é de suppor o effeito que tal resolução produziria na corte de Roma, depois das lisongeiras esperanças que Balthasar de Faria deixara conceber ao papa. O desabrimento daquella resposta explica-se pela cegueira do odio d’elrei contra D. Miguel; mas nem por isso é menos certo que ella fora assás inconveniente numa conjunctura em que os christãos-novos envidavam os ultimos esforços na lucta com a Inquisição.

A especie de resenha ou memoria redigida em Roma nesta epocha pelos agentes dos hebreus portugueses chegou até nós. Della se vê que essa longa exposição de aggravos foi dirigida a um membro do sacro collegio assás poderoso para se obter por sua intervenção um resultado favoravel. Quem podia ser elle? A maioria dos cardeaes influentes inclinava-se visivelmente para o partido de D. João iii, e D. Miguel da Silva experimentara á propria custa, no consistorio em que o seu negocio se debatera, quão dicisivas eram já essas tendencias. Farnese achara prudente guardar silencio naquella conjunctura, mostrando-se-lhe depois, se não adverso, indiferente, nas conversações particulares com Balthasar de Faria, ao que o obrigava o negocio da pensão sobre as rendas de Alcobaça, ainda não inteiramente terminado. Porém o neto de Paulo iii não o abandonara de todo, como os factos o provam. Assim, é de crer que os agentes dos christãos-novos, de quem D. Miguel dependia, procurassem por intervenção do infeliz prelado mover o animo do cardeal-ministro, e que a este fosse dirigida aquella extensa exposição. Alexandre Farnese, vice-chanceller da igreja romana era o principal vulto politico, o personagem mais influente da curia. Podia-se dizer que não havia outro canal para fazer com que seu avô resolvesse os mais arduos negocios, nem Paulo iii tinha outro canal por onde transmittisse aos principes da Europa as suas resoluções ou desejos[12]. Factos notaveis da vida do cardeal vice-chanceler provam que elle não hesitava em liberalisar aos judeus de qualquer parte do mundo a mais decisiva protecção quando della necessitavam, e esses factos foram taes, que motivaram as amargas reprehensões de uma das mais nobres intelligencias daquelle tempo, o cardeal Sadoleto[13]. São faceis de presuppor os meios que para obter tão alta protecção empregaria a raça proscripta.

O Memorial dos hebreus é uma narrativa documentada da perseguição feita em Portugal aos judeus desde a conversão violenta de 1493 até 1544. Esta narrativa importante, que mais de uma vez nos tem subministrado o fio para saírmos do dedalo de multiplicados documentos, deve ser lida com precaução, porque não é nem poderia ser imparcial. Entretanto, é certo que ella se estriba não raro em instrumentos authenticos passados por magistrados e officiaes publicos, que decerto não queriam favorecer a raça perseguida. Outras vezes a narrativa é plenamente confirmada por documentos de diversa ordem, que ainda existem, e até ha factos em que a relação do Memorial é diminuta, acaso porque se ignoravam já, pela distancia dos tempos, muitas particularidades que affeiavam os successos. Tal é a noticia da carnificina de 1506. No que principalmente pecca essa especie de manifesto é na exaggeração, não das cousas, mas do estylo, em que se não pouparam nem o excesso das metaphoras, nem o arrojo das hyperboles, e que antes se deve attribuir aos que ordenaram e redigiram o escripto, do que aos que para isso subministraram os precisos elementos[14].

O que se deduz da introducção do Memorial é que as providencias para mitigar os furores da Inquisição, promettidas pela curia e pagas pelos christãos-novos, não chegaram nunca a Portugal. A pensão arbitrada por elles ao bispo de Bergamo fora igualmente perdida. As circumstancias que precedentemente descrevemos tinham suspendido indefinidamente a expedição das bullas relativas ao assumpto e traçado ao nuncio uma senda de moderação, ou antes de indifferença, de que elle não se atrevera a saír. Abandonados inteiramente á mercê dos inquisidores, a perseguição redobrou de violencia, e os gritos dos que expiravam nas fogueiras respondiam em Portugal aos inuteis clamores que os agentes da raça perseguida alevantavam nos tribunaes de Roma[15].

Se acreditarmos o Memorial, e nesta parte a narrativa é altamente crivei, as familias daqueles que sollicitavam na curia o favor do pontifice para seus afflictos irmãos eram alvo de uma perseguição systematica da parte dos inquisidores. Os que tomavam aquelle arriscado empenho não se votavam só a si a futuras e implacaveis vinganças; preparavam tambem o martyno de mulheres e de filhos, de paes e irmãos. De nada lhes servia sollicitar e obter breves de exempção, ou em que se avocassem as causas dos réus já presos a um tribunal de juizes apostolicos, nomeiados para esse fim. Se taes breves escapavam dos obstaculos que em Roma se punham á sua expedição, os inquisidores desprezavam-nos ou sophismavam-nos. Apesar dos esforços de Balthasar de Faria tinha-se, por exemplo, expedido uma nomeiação de juizes apostolicos ao celebre arcebispo do Funchal D. Martinho e ao nuncio, para entenderem na causa de Margarida de Oliveira. O expediente que seu filho empregara para mover o pontifice não fora são; mas tornou-o inutil a desobediencia dos inquisidores. Então o papa avocou a causa á curia, ordenando se lhe remettesse o processo original fechado e sellado; mas esta resolução teve a mesma sorte da primeira, e a desgraçada viuva, carregada de annos e de enfermidades, esquecida no fundo de um carcere, ahi acabou provavelmente a sua dolorosa existencia[16].

Entretanto esta continua concessão de breves para casos especiaes, concessão altamente rendosa para a curia romana, não só incommodava Faria, mas tambem os membros da Inquisição, a quem esses breves, pelo menos, obrigavam ás vezes a proceder com certa circumspecção, e a deixar apodrecer nas masmorras morras mais de um réu, que poderia ter servido para dilatar o espectaculo de um auto-de-fé. As activas diligencias diplomaticas que se faziam em Roma para chegar a uma conclusão definitiva nesta materia não corriam com a rapidez desejada, e era preciso recorrer a remedios mais promptos. Procurou-se corromper com dadivas os procuradores dos christãos-novos para guardarem silencio, e com promessas mais avultadas, se quizessem retirar-se da curia. Desenganados da inefficacia destes meios, recorriam ás ameaças[17], e essas ameaças eram, como vimos, tremendas para os que tinham familia em Portugal ou desejavam voltar á patria.

A estes escandalos, mais ou menos secretos, accresciam os escandalos publicos. Como se não bastassem a espoliação e o assassinio debaixo das formulas judiciaes, ás vezes o povo fanatisado revelava em manifestações, mais ou menos insolentes, a sua má vontade contra essa parte da população votada ao exterminio, e os satellites da Inquisição julgavam-se auctorisados para practicar publicamente contra os reprobos da sociedade toda a especie de vexames e de ignominias. Prisões irregulares, espancamentos, espoliações, insultos grosseiros repetiam-se cada dia: era a febre da intolerancia que agitara a capital em 1506, diminuida na intensidade, mas estendendo-se largamente pelas provincias.

Um parte da população de Lamego era de christãos-novos. Foi nos fins de 1542, como noutro logar dissemos, que o supremo tribunal da fé estabeleceu alli uma delegação; mas já no meiado do anno era sabido que esse facto não tardaria em verificar-se. O odio dos christãos-velhos, as suas esperanças de scenas atrozes manifestaram-se logo. Resta-nos um monumento curioso da malevolencia popular contra a raça hebréa, o qual ao mesmo tempo é um spécimen dos pasquins daquelle tempo. Certo dia pela manhan appareceu affixado no pelourinho uma especie de programma, obra de algum poeta popular, em que se delineava o modo como devia ser festejado o estabelecimento do novo tribunal. Os hebreus mais conspicuos da cidade eram distribuidos em dous grupes, um de instrumentistas, outro de dançarinos, e a cada individuo se assignava o modo e o logar em que devia ir no auto, o que subministrava ao auctor occasião de alludir aos defeitos moraes ou physicos das diversas personagens, ao mesmo tempo que lhes distribuia generosamente as qualificações de «cães», de «marranos» e outras equivalentes, assegurando a uns que não seríam ainda queimados naquelle anno, a outros que brevemente figurariam num auto-de-fé. Os primeiros periodos do programma bastam para dar uma idéa da indole daquella composição: — «Demos a Deus infindas graças por vermos em nossos dias tirar vingança desta raça canina, heretica e incredula. Todos unidos entoemos-lhe um cantico por tal beneficio, e guardemos bem guardadas quantas vides podérmos ajunctar, porque talvez nos chegue a faltar lenha para o sacrificio. E visto que esperamos aqui a sancta Inquisição, ordenemos uma invenção com que possamos recebê-la dignamente etc.»[18]. Estes signaes de má vontade aterravam a gente da nação, que via nelles a expressão, não das idéas de um ou de outro individuo, mas das do vulgacho em geral. Assim o terror foi profundo em toda a comarca, apenas constou que um certo Gonçalo Vaz fora nomeiado inquisidor. Houve quem logo fugisse; mas os mais cordatos, ou que contavam com poderosas protecções deram o novo inquisidor por suspeito, representando contra elle a elrei[19].

Triste recurso era, porém, dirigir supplicas ao chefe do estado. A insolencia popular, nessa conjunctura, legitimava-se por actos do poder supremo, que não se pejava de pôr um estygma na fronte daquelles mesmos christãos-novos contra os quaes a Inquisição se abstinha de proceder, prova indirecta, mas irresistivel, da regularidade do seu procedimento religioso. Pouco depois dos insultos de Lamego, expedia-se em Lisboa uma provisão á Casa dos Vinte-quatro, para que nenhum mestre ou official dos officios mechanicos christão-novo podesse ser eleito Mestre, e ordenando-se expressamente ao Juiz do Povo que não o reconhecesse como tal, se fosse eleito. O rei ía mais longe do que a Inquisição[20].

O tribunal do Porto celebrara um auto-de-fé nos principios de 1543. Estas execuções, que parece deveriam excitar o terror e a piedade, só serviam para irritar os animos contra os conversos. A fermentação manifestou-se logo em Barcellos. Um dia pela manhan todas as portas das casas habitadas por christãos-novos appareceram com letreiros brancos, em que se designava a sorte que devia tocar a cada um delles. Numas lia-se a palavra fogueira, noutras carcere perpetuo, noutras sambenito, noutras cinza, noutras, finalmente, queimado. Attribuia-se o insulto a alguns clerigos de ordens menores. As portas das habitações dos christãos-velhos tinham sido escrupulosamente respeitadas. Os individuos a quem se applicavam aquellas sentenças fataes eram em grande parte mercadores honrados e pontuaes no cumprimento dos seus deveres civis e religiosos[21].

Mas estas demonstrações populares pouco valiam comparadas com as consequencias dos extraordinarios poderes de que os commissarios e esbirros da Inquisição estavam revestidos. As instrucções dadas aos magistrados e aos funccionarios civis e militares eram taes, que bom ou mau grado seu, tinham de ser muitas vezes instrumentos desses homens obscuros, e não raro maus e devassos. Onde o mandado do inquisidor se apresentava todos curvavam a cabeça, Em 1543 as previsões malevolas do pasquim de Lamego haviam-se realisado: a Inquisição levara o terror ao seio das familias hebréas daquella comarca. Uma parte dessas familias tinha-se retirado para Tras-os-Montes. A Inquisição não se esquecera, porém, dellas. Um esbirro fora enviado a fazer alli varias prisões. A lista era secreta, e os magistrados civis recolhiam aos carceres as pessoas que elle verbalmente lhes indicava. Mais zeloso que os seus chefes, o esbirro ampliara a commissão que trouxera, e os inquisidores de Lamego tiveram, passado tempo, de mandar pôr em liberdade alguns individuos, retidos por suppostas ordens suas no castello de Villareal.

Póde-se inferir d’aqui a que vexames ficariam sujeitos aquelles cujos nomes realmente se achavam incluidos nas listas de proscripção dadas aos agentes ou familiares do tribunal da fé. Na conjunctura em que taes factos se passavam em Villa-real, a comarca de Miranda era theatro de scenas ainda mais vergonhosas. Ellas servem para provar que a suspensão temporaria dos confiscos, de que se fazia tanto alarde, e que se invocava como alto documento de desinteresse, era verdadeira illusão, e que para reduzir á miseria as familias das suas victimas os inquisidores não careciam dessa pena absurda.[22]

Um dos mais incansaveis Nembroths, dos mais rudes caçadores de homens, que a Inquisição teve nos primeiros tempos da sua existencia foi um Francisco Gil. Este miseravel tinha começado a carreira dos seus crimes pelo assassinio do genro de um mercador honrado de Lisboa, assassinio perpetrado publicamente no meio da Rua-nova[23]. Revestido do cargo de sollicitador do tribunal da fé, Francisco Gil foi enviado pelas províncias a descubrir os sectarios occultos do judaismo. A empreza podia ser odiosa; mas não era nem arriscada nem difficil. O activo agente achou logo um methodo efficaz e simples de obter avultada colheita. Chegando a qualquer logar onde residissem christãos-novos, mandava annunciar que em tal igreja se havia de fazer uma festa e procissão solemne. Corria o povo ao templo no dia assignalado. Cheia a igreja, elle mandava fechar as portas, e em nome da Inquisição intimava aos fiéis, debaixo das mais terriveis excommunhões, que se no meio delles estavam alguns judeus occultos, os bons christãos lh'os indicassem[24]. Então os desgraçados reprobos do povo eram mandados pôr á parte, e dalli conduzidos para a cadeia, á ordem dos inquisidores[25].

No seu gyro, o implacavel commissario chegou a Miranda do Douro, e esse districto parece ter sido um dos que lhe subministraram mais abundante seara de extorsões e violencias. Foram presos naquella villa onze individuos de ambos os sexos. Cada um delles devia pagar-lhe quatorze mil reaes, somma que o sollicitador da Inquisição calculava ser necessaria para se transportarem ao logar onde, segundo as ordens do infante inquisidor geral, deviam ser retidos. Intimados judicialmente para apromptarem o dinheiro, resistiram todos, menos um pobre velho que jazia gravemente enfermo. Mandaram-se então inventariar e pôr em almoeda os bens dos réus, e estes foram removidos do Castello de Miranda para o de Algoso, situado num ermo, a meia legua da povoação deste nome. Gaspar Rodrigues, o velho enfermo, fora ahi arrematante das rendas reaes. O povo tinha-lhe má vontade, e os christãos-novos diziam que esta mudança era calculada para accender mais contra elle e contra os seus companheiros de infortunio a sanha popular. No Castello de Miranda, construcção solida cingida por cinco torres alterosas, os simples ferrolhos dos alçapões do carcere respondiam pela segurança dos presos: no de Algoso, ruina de antiga fortificação e longe do povoado, cumpria collocar guardas que obstassem a qualquer tentativa interna ou externa de evasão. As tropas concelheiras, unicas que então havia, foram chamadas para aquelle serviço, e os factos vieram confirmar as previsões da gente da nação. As injurias das sentinellas ferviam sobre os encarcerados, e os camponeses mostravam para com Gaspar Rodrigues a mesma dureza de coração que provavelmente elle lhes mostrara como exactor de tributos. A sua vingança estendia-se, porém, aos innocentes. Só a peso de ouro obtinham os presos os objectos mais necessarios á vida, o lume, a agua, os alimentos. Certo dia, os guardas accenderam em frente da prisão uma grande fogueira e lançaram dentro um cão que ficou reduzido a cinzas. Era, diziam elles, o que haviam de fazer aos judeus que guardavam, antes que d'alli saíssem. Entre estes havia uma Isabel Fernandes, mulher abastada, a quem Francisco Gil e o seu meirinho Pedro Borges tinham extorquido cem mil réis, a pretexto de despesas de transito. Sem cama, sem uma camisa para mudar, a desgraçada chorava noite e dia. O esbirro offereceu-lhe então, não só confortos, mas até a liberdade, se quizesse perfilhá-lo. Recusou. Redobraram os maus tractos e carregaram-na de cadeias. Vencida pela miseria e pela amargura, a infeliz endoideceu. Aos presos que não lhe davam qualquer objecto que lhes pedia, trocava o malvado os grilhões por outros mais pesados, ou fazia-os descer a um logar profundo e humido, onde os deixava mettidos na agua. Gaspar Rodrigues, ferido já pelos ferros, léso de uma perna e a bem dizer semimorto, passou por ambos os martyrios. Francisco Gil accrescentava a estas barbaridades do seu meirinho uma singular extorsão: quando se lançavam ou augmentavam os grilhões aos presos, fazia-lhes pagar o custo delles. A’s pessoas que se dirigiam ao Castello de Algoso para falar ás victimas, se acaso se demoravam mais tempo do que o permittido, impunha-lhes a muleta de vinte mil reaes, e mandava-as expulsar d'alli, quando não as encarcerava[26]. Acaso as suas instrucções eram estas, e talvez a mulcta, fixada de antemão pelos inquisidores, não revertesse em seu beneficio. Fosse o que fosse, o que succedia era que, ás vezes, a troco de alguns cruzados de peita, os colhidos na rede remiam a prisão e a mulcta. O espirito, porém, de violencia e de rapina dos dous agentes da Inquisição era tal, que elles proprios se tornavam não raro instrumentos indirectos da vingança das suas victimas. A rustica milicia da comarca de Miranda não desfructava gratuitamente o prazer de affrontar os presos de Algoso. Os lavradores tinham não só de velar o Castello, mas tambem de fazer roldas e vélas, ora num ora noutro logar. Os indiciados de judaismo não se reduziam aos onze martyres transferidos para Algoso. As listas de réus eram extensas ; as capturas multiplicavam-se; e os habitantes de qualquer aldeia que não iam dormir juncto do meirinho e dos outros esbirros, quando ahi chegavam com algum preso, eram severamente mulctados [27].

Os inquisidores nomeiados para as duas dioceses de Viseu e Lamego, foram o bispo D. Agostinho Ribeiro, transferido de Angra para esta ultima sé, um clerigo, mancebo de trinta e dous annos, chamado Manuel de Almada, e o doutor Gonçalo Vaz, vizinho de Lamego. Se acreditarmos as memorias dos christãos-novos, memorias que aliás se referem a factos naquella epocha geralmente sabidos, ou que se estribam nos poucos documentos authenticos que com extrema difficuldade podiam obter, e no testemunho, que nellas se invoca, de fidalgos e de membros do clero da mais elevada jerarchia; segundo essas memorias, dizemos, os dous collegas do bispo eram dous homens abjectos. Apesar da sua idade juvenil e da sua profunda ignorância, Almada já tinha sido vigario capitular no arcebispado de Lisboa, e fora ahi o flagello do proprio clero. As suas façanhas haviam soado em Roma, e uma das commissões que o nuncio trazia era inquirir sobre esses factos, a que só posera termo a eleição de novo arcebispo. Gonçalo Vaz era secular e bigamo. Uma das mulheres com quem se dizia casado tinha parentesco, mais ou menos remoto, com uma grande parte dos christãos-velhos de Lamego que maior rancor manifestavam contra a gente da nação, da qual elle tambem era encarniçado inimigo por demandas e rixas que tivera com individuos dessa origem. Os christãos-novos tinham immediatamente requerido a elrei e ao proprio infante D. Henrique contra aquella inconveniente escolha; tinham invocado os mesmos motivos que na organisação judicial haviam aconselhado a instituição dos juizes de fóra. Tudo, porém, havia sido baldado. Não era a imparcialidade que se queria: era a perseguição.

Revestidos de uma auctoridade que, em relação aos crimes de que lhes pertencia tomar conhecimento, não só os tornava independentes de todos os funccionarios e magistrados civis, mas até convertia estes em instrumentos seus, os inquisidores de Lamego podiam satisfazer a salvo suas ruins paixões. O bispo parece ter sido o menos barbaro, e por consequência o menos influente dos tres commissarios. Vaz e Almada dirigiam, a bem dizer, tudo. Os carceres eram, ás vezes, carceres privados, nas residencias dos inquisidores, e cada carcere tinha apenas oito palmos em quadro. Os que delles saíam vinham, não raro, por tal modo inchados que não cabiam no vestuario. Artigos de suspeição, breves de exempção comprados em Roma, por alto preço, allegações de innocencia, tudo era inutil. Os parentes dos presos que sollicitavam em nome destes eram repellidos: os procuradores e advogados que se incumbiam da defesa dos réus incorriam desde logo no odio dos inquisidores, embora fossem christãos-velhos e pessoas nobres. O escrivão do tribunal estava inhibido de dar instrumento aos culpados de cousa alguma, ao passo que a nenhum notario apostolico era licito receber qualquer declaração dos réus, sob pena de mulctas e excummunhões. Um, que se atreveu a ir intimar a Manuel d’Almada uma suspeição por parte de um dos presos, foi encarcerado e mulctado, sendo solto por grandes empenhos, mas com juramento de não tornar a involverse em negocios da Inquisição. Alguns réus que insistiam em não os acceitar por juizes eram mandados para Lisboa. Velhos, mulheres honestas, donzellas pudibundas marchavam em levas para a capital, e esse largo transito convertia-se em dilatado martyrio. Os guardas que os conduziam eram parentes de Gonçalo Vaz, a cada um dos quaes os réus deviam pagar dous cruzados por dia. Entretanto o processo proseguia em Lamego, sem audiencia dos interessados, tomando-se, conforme se dizia, testemunhas que faziam officio de depor contra os suspeitos de judaismo e pagas para isso. Duas entre estas tinham-se tornado distinctas naquella especie de industria. Eram marido e mulher. Correndo as casas dos christãos-novos fintavam-nos como entendiam e, se duvidavam de pagar, ameaçavam-nos de ir depor contra elles. Como se isto não bastasse, o proprio bispo, do alto do pulpito, no meio das solemnidades religiosas, impunha aos fiéis como um dever vingarem a paixão de Christo indo dar testemunho contra os christãos-novos, entre os quaes, dizia o prelado, não havia um unico bom. Ao mesmo tempo, em monitorios pregados nas portas das igrejas, fulminava aquelles que diziam que os inquisidores practicavam injustiças, ou que havia testemunhas falsas. Os que assim falavam eram, no seu conceito, fautores dos herejes e dignos de severo castigo.

Prendiam-se alguns indivíduos antes de denunciados : depois é que se tractava de lhes achar culpa. Para isto recorria-se não raro aos escravos e creados, que, conduzidos ao tribunal, quando de bom grado não queriam accusar seus senhores, eram a isso compellidos pelo terror. Outras vezes chamavam-se inimigos rancorosos dos presos e lisongeiavam-se com a perspectiva de tirarem, pelos seus depoimentos, completa vingança dos proprios aggravos. Até as confissões auriculares serviam para inspirar ás testemunhas o que deviam dizer, ao passo que se negavam papel e tincta aos encarcerados para communicarem com as pessoas que se interessavam na sua sorte, e quando se tractava de actos judiciaes em que os réus tinham de escrever alguma cousa, dava-se-ihes o papel numerado e rubricado pelo notario da Inquisição, examinando-se attentamente antes de se expedir. Apenas quaesquer christãos-novos entravam nos carceres, o inquisidor Almada divertia-se em ir designar o sitio em que se devia erigir o cadafalso, indicando com prolixidade infernal quaes dos novos réus teriam de ser queimados. Em summa, as tyrannias e violencias eram taes, que as pessoas mais conspicuas de Lamego e os proprios magistrados civis não podiam occultar a sua indignação. Os inquisidores, porém, longe de recuar diante dessas manifestações, respondiam com ameaças, lembrando-lhes que não estavam exemptos da sua jurisdicção[28].

Eram estes factos exaggerados? Naquelles em que o testemunho dos queixosos unicamente os abona, a suspeita de que o fossem é legitima. Não assim nos que eram practicados á luz do sol; porque seria absurdo que, mentindo, os conversos appelassem para o testemunho publico. Alguns ha tambem de cuja existencia temos provas irrefragaveis: tal é o seguinte, que se passava em Lamego naquella conjunctura. Um dos christãos-novos que alli primeiramente se prenderam foi o rendeiro do almoxarifado, Gabriel Furtado. Chegou o contador d'elrei para lhe tomar contas; estava preso. Tinham-no fechado numa gaiola de ferro dentro de uma torre, e a gaiola recebia apenas a escaça luz de uma fresta defendida por duas grades tambem de ferro. Dar contas alli era impossivel. A requerimento do agente fiscal, Gabriel Furtado foi conduzido fóra da prisão com guarda á vista, para ser ouvido. O rendeiro do almoxarifado devia, porque tambem lhe deviam. Naturalmente, os contribuintes tinham escrupulisado de pagar os direitos reaes a um judeu, a um hereje encarcerado pelos inquisidores. Ha muitas consciencias timoratas assim. Não obstante, o agente achou uma solução á difficuldade: os bens do preso chegavam para cubrir uma parte da divida; mas faltava completar essa facil solução. Sem apontamentos escriptos, incommunicavel, não podendo recorrer a ninguem para cobrar os impostos, com os bens em almoeda, e reduzido á mendicidade, como pagaria o desgraçado christão-novo o resto da propria divida? Recorreu-se a um arbitrio. Por graça do inquisidor Almada, um tincteiro, uma penna e seis folhas de papel, rubricadas pelo notario da Inquisição, acharam accesso á lobrega morada do hereje, e uma lista de devedores publicos, traçada por simples reminiscências no meio da agonia moral, habilitaram o contador d’elrei para salvar, até a ultima mealha, os haveres de sua alteza[29].

Se estas e outras scenas analogas se passavam na diocese de Lamego, não eram menos barbaras e oppressivas as que occoriam no resto do reino. A alçada da Inquisição de Coimbra estendia-se por todo este bispado e pelo da Guarda. Os commissarios eram o dominicano Fr. Bernardo da Cruz, bispo de S. Thomé e reitor da universidade, e o prior da collegiada de Guimarães, Gomes Affonso[30]. O bispo de S. Thomé tinha um genio irascivel e despotico, e detestava cordealmente os christãos-novos. Das suas luzes e da nobreza dos seus sentimentos póde-se fazer idéa por uma carta que delle nos resta, dirigida a D. João iii depois da sua nomeiação para inquisidor, em resposta a outra, na qual elrei o consultava sobre o modo de organisar a Inquisição em Coimbra e de prover os cargos della. Escripta num estylo deploravel, essa carta revela no bispo o não menos deploravel talento de cortezão abjecto. A acreditá-lo, a capacidade do principe, que não podera aprender os rudimentos da lingua latina, nem os de sciencia alguma, excedia a de todas as intelligencias do paiz reunidas. Propunha, a fim de se criarem recursos para as despesas do tribunal, se não os quizessem ir buscar aos rendimentos das mitras de Coimbra e da Guarda, que fossem supprimidas algumas cadeiras da universidade, nomeiadamente de direito romano, e reduzidos os salarios das que ficassem subsistindo. Dir-se-hia que o instincto lhe tornava odioso esse manancial inexgottavel da sciencia do justo. Dos lentes, só achava um capaz de ser promotor da justiça; os mais eram ou estrangeiros, ou christãos-novos, ou desassisados. Para sollicitador entendia ser propriissimo um offlcial de sapateiro de Coimbra, e para meirinho propunha um creado seu, o qual, aliás, elle continuaria a conservar em casa. O digno prelado affirmava fazer o sacrifício de o ceder para aquelle cargo, só pelo gosto que tinha em servir a Deus e a sua alteza[31].

Não tardaram a manifestar-se os intuitos do bispo dominicano na perseguição contra os christãos-novos. A bulla de 23 de maio de 1536 tinha mantido as disposições do breve de 12 de outubro de 1535 e da bulla de 7 de abril de 1533: todos os crimes de heresia anteriores á data desse diploma ficavam cancellados, e não era licito fazê-los reviver. Annunciando, porém, o estabelecimento do tribunal de fé em Coimbra e intimando os fiéis a que viessem denunciar todos os delictos contra a religião de que tivessem conhecimento, o bispo de S. Thomé deixou de fixar a data além da qual esses delictos eram como se não existissem. Esta circumstancia engrossava desmesuradamente a lista dos réus, muitos dos quaes foram presos e processados por factos que se diziam practicados mais de dezeseis annos antes. Como se isto não bastasse, nos depoimentos de testemunhas omittia-se a distincção entre as de vista e de ouvida. Processos intentados civilmente contra essas testemunhas provaram depois que muitas dellas eram falsas, e que as declarações de outras se tinham viciado. Atulhados de presos as escuras enxovias das torres do antigo Castello de Coimbra, muitos delles foram recolhidos em casebres immundos e fetidos. Carregados de ferros e incommunicaveis, quando algum obtinha dos inquisidores a permissão de falar com os seus, era preciso propiciar o alcaide[32], porque as chaves das prisões andavam em poder delle, e por mais supplicas que os encarcerados fizessem para terem um carcereiro fixo, nunca poderam obtê-lo. As audiencias eram a portas fechadas, sendo a principio só admittidos os advogados; e quando, á força de supplicas e clamores, se permittia aos filhos, irmãos, parentes, ou procuradores dos réus irem requerer verbalmente perante o tribunal, se falavam com liberdade, o bispo prendia-os e mulctava-os. A indignação que as suas arbitrariedades suscitavam era geral entre as pessoas illustradas. Na ordem do processo offendiam-se a cada passo as regras mais triviaes da justiça. Os interrogatorios das testemunhas faziam-se com a mais escandalosa parcialidade, e o bispo reduzia facilmente ao silencio as de defesa, u meaçando-as com excommunhões, assignando-lhes os limites dos depoimentos, e invectivando-as de mentirosas quando diziam cousas que lhe desagradavam. A's vezes servialhe de escrivão um rapaz de dezessete annos, seu sobrinho, que mal sabia escrever. Facil é de conjecturar qual seria a gravidade, o acerto e a moderação do tribunal da fé, onde servia de escrivão uma creança analphabeta, de sollicitador um sapateiro, de meirinho um creado particular do juiz, e onde o juiz era um homem para quem christão-novo significava judeu disfarçado.

Numa representação dirigida a elrei contra os abusos da Inquisição de Coimbra, a gente da nação não se limitou a apontar em geral estas violencias, ácerca de cuja exacção invocava o testemunho de pessoas conspicuas por letras e probidade. Desceu a individuar factos. Emquanto se não passava de generalidades, é possivel que as cores com que se fazia a pintura dos aggravos fossem carregadas de mais; mas quando se especificavam pessoas e circumstancias; quando o exame da veracidade das affirmativas era facil, suppor que se inventavam novellas sería levar o sceptismo ao mais subido grau. Julgamos por isso conveniente apresentar aqui a descripção de algumas das scenas que se passavam na Inquisição de Coimbra, servindo-nos, a bem dizer, textualmente da narrativa contemporanea. A imaginação do leitor poderá assim supprir a descripção de muitas outras que ficaram esquecidas debaixo das abobadas do castello de Coimbra, e a cujos actores a pedra do sepulchro ou as chammas das fogueiras sellaram para sempre os labios.

Simão Alvares era um christão-novo que viera do Porto, haveria nove annos, com sua mulher e uma filha de pouco mais de seis mezes, residir em Coimbra. Esta familia foi uma das primeiras sacrificadas. Pae, mãe e filha achavam-se nas prisões do castello. Segundo parece, a denuncia contra elles falava de crimes de judaismo perpetrados no Porto, e provavelmente faltavam testemunhas de accusação. O bispo precisava de provar esses crimes. Occorreu-lhe um arbitrio para sair da perplexidade. Mandou vir á sua presença a filha do Simão Alvares, e pondo-lhe diante um braseiro cheio de carvões accesos, disse-lhe que, se não confessasse ter visto seu pae e sua mãe açoutando um crucifixo, havia de le mandar queimar as mãos naquelle braseiro. A creança aterrada confessou que assim o vira fazer no Porto a seu pae, e o bispo teve a prova que desejava, embora a testemunha se referisse a uma epocha em que apenas contava pouco mais de seis mezes de edade.

Tractava-se do processo de uns presos de Aveiro, marido e mulher. Uma creada que os seguira foi chamada á Inquisição, e della exigiu o bispo que declarasse ter visto practicar a seus amos factos contrarios á fé. A declaração, porém, da testemunha foi exactamente o contrario. Irritado, o dominicano fê-la encerrar num carcere. De tempos a tempos, mandava adverti-la de que, se queria ser solta, accusasse os amos. Resistiu sempre. Desenganado de que nem o amor da liberdade, nem algumas demonstrações de benevolencia, a que recorreu, abalavam a constancia daquelle nobre caracter, chamou-a um dia ante si e, elle proprio tentou convencê-la. Tudo foi baldado. Acceso em cólera, o phrenetico frade começou a espancá-la com um pau até lh’o quebrar na cabeça e nas costas, deixando-a lavada em sangue, e o algoz sagrado fez lavrar o depoimento que quiz ao som dos gritos da desgraçada. Este methodo de apurar a verdade parece ter sido o systema predileto de Fr. Bernardo da Cruz, mas ás vezes obtinha o resultado sem recorrer ao uso extremo do baculo pastoral, e contentava-se com despertar os animos remissos com bofetões e punhadas, incumbindo das varadas e açoutes os esbirros inferiores. E’ verdade que o systema só era applicado a gente infima ou a escravos. E até, quando estava de bom humor, o bispo limitava-se a deixar apodrecer os teimosos no fundo dos carceres.

Na conjunctura em que os réus de judaismo começaram a povoar as enxovias do castello foram escolhidas para serventes dos presos uma creada do alcaide e a mulher de um mulato alli retido, ao qual tinham decepado as orelhas por crime de roubo. As duas serventes estavam possuidas da doutrina prégada pelo bispo de S. Thomé sobre a necessidade de vingar nos christãos-novos a morte do Redemptor. Os presos eram inexoravelmente roubados: roubavam-lhes até a comida. A fome vinha associar-se-lhes aos outros martyrios. Eram tão continuos os seus clamores, que o dominicano temeu lhe morressem de inedia essas victimas que destinava ás chammas. Foi-lhes permittido no fim de alguns mezes o serviço dos seus familiares, e que recebessem das mãos delles os alimentos necessarios á vida.

O dominicano era, pois, capaz de piedade. Tinha até accessos de bom humor, que manifestava de modo assás expressivo. Gostava de mandar vir á sua presença mulheres casais e donzellas pudibundas, encerradas nos escuros recessos do castello de Coimbra com seus paes, irmãos ou maridos. Tractava então com singular humanidade de lhes affastar do animo os tristes presentimentos, as idéas lugubres, que as acabrunhavam. Debalde se mantinham em silencio, e recusavam ouvi-lo: não lh’o tolerava. Fazia votos para que Deus lhes multiplicasse as venturas, e protestava que sua alteza, a rainha, não podia gabar-se de ter em seus paços tantas e tão formosas damas. Pundonoroso em provar o seu dicto, extasiava-o a belleza dos olhos desta, as fórmas airosas dest’outra. Não menos o enterneciam os padecimentos do sexo fragil. Se alguma adoecia, ía-se-lhe assentar ao pé da cama, e, apesar de todas as resistências, pegava-lhe no braço e tomavalhe o pulso. Talvez para esconder as suas apprehensões âcerca do estado das enfermas, distrahia-as, emquanto estudava o progresso do mal, com observações de entendedor ácerca dos contornos mais ou menos ideaes do braço que retinha, e essas observações serviam-lhe de thema a uma serie de facecias, por tal modo espirituosas, que o rubor do pejo subia ás faces das desgraçadas, reduzidas a invocar a futura justiça de Deus contra taes infamias, visto que os seus naturaes vingadores jaziam, como ellas, em ferros[33]

Quando a indole e os actos do primeiro inquisidor de Coimbra eram estes, póde conjecturar-se qual sería o procedimento dos seus delegados pelo vasto territorio que a jurisdicção daquelle tribunal abrangia. Nenhum, porém, mais que o d’Aveiro se mostrava digno de tal chefe. Era elle o vigario da igreja de S. Miguel, conhecido pela sua dissolução. Entregue á caça, ao jogo, e publicamente amancebado, a perseguição dos christãos-novos veio agradavelmente distrahi-lo das suas diversões ordinarias. Apenas revestido da delegação inquisitoria, tractou de arranjar delatores e testemunhas. Repellido por muitos que procurou seduzir para exercerem esse odioso mister, não lhe faltou, quem o acceitasse, tanto mais desde que recorreu ao meio, já vantajosamente experimentado, de atiçar odios pessoaes e de lisongeiar a sede da vingança. A pena d’excommunhão fulminada contra os que não denunciassem os actos de judaismo de que tivessem noticia deulhe tambem delatores, e as injurias, que não poupava aos que recusavam servir-ihe de instrumentos, submetteram ao seu imperio mais de um genio timido. Havia, comtudo, um recurso contra as violencias desse homem. Era a corrupção. Mais de um réu obteve a liberdade a troco de peitas, e até, quando as capturas dos christãos-novos eram mais frequentes, a concubina do vigario de S. Miguel andava de casa em casa, promettendo a uns e a outros que não seriam presos, se quizessem ser generosos. Accusavam-no geralmente de ter delapidado varias alfaias da igreja, de jogar as esmolas dadas para applicações pias, de ter prendido a mulher de um christão-novo, a quem devia dinheiro, para no meio do tumulto rasgar o escripto de divida; accusavam-no de mais de uma solicitação infame feita no confessionario, e de revelar o sigilio da confissão para chegar aos seus fins. Como agente da Inquisição, como sacerdote, e até como homem, o delegado do bispo de S. Thomé era um miseravel. O memorial dos hebreus portugueses, tractando da perseguição em Aveiro, menciona factos que nos repugna descrever, e que até seríam inacreditaveis, se não se invocasse naquelle memorial o testemunho de dezenas de individuos ecclesiasticos e seculares de todas as jerarchias. Se taes factos fossem inexactos, elles teriam sido altamente desmentidos por essas testemunhas que se invocavam, e que os christãos-novos pediam instantemente que se ouvissem[34].

No meio dos furores da intolerancia, o remoto e o impervio de alguns districtos que, de ordinario, ainda hoje como que esquecem, para o bem e para o mal, na vida administrativa do paiz, não eram obstaculo para a mão de ferro da tyrannia ir lá pesar duramente sobre a raça que, porventura, esperava nesses districtos montanhosos e agrestes obter o esquecimento de um rei fanatico e de uma corte hypocrita. Os desvios da Beira oriental formavam, como vimos, uma parte do vasto territorio dado para assolar ao dominicano D. Bernardo da Cruz. Entretido com a salvação dos encarcerados de Coimbra, o digno prelado não podia trabalhar com tanta actividade em manter a pureza evangelica por todos os logares commettidos ao seu apostolico zelo. Mas, ao menos, na delegação dada ao vigario de S. Miguel em Aveiro mostrara que sabía escolher agentes que comprehendessem as suas intenções. Além disso, o supremo tribunal da fé ajudava-o do modo possivel naquella laboriosa missão. Em 1543, quando a perseguição era mais violenta em Coimbra, um membro do conselho geral do Santo-Officio, Rodrigo Gomes Pinheiro, corria os districtos de Viseu e de Aveiro em perseguição do judaismo[35]. As denuncias e as capturas estenderam-se em breve para a parte oriental da provincia. Numerosas familias de christãos-novos habitavam nessa epocha em Trancoso, e é bem de crer que alli se tivessem conservado mais vivas as crenças judaicas. As scenas de violencia que se passaram naquella villa. então populosa e opulenta, foram terriveis. Apenas ahi chegou, o commissario da Inquisição mandou lançar bando prohibindo a saída da villa a todos os christãos-novos e declarando que os contraventores seríam desde logo considerados como herejes. Este bando, acompanhado das admoestações usuaes feitas dos pulpitos abaixo, chamando os fiéis a delatarem todos os suspeitos de judaismo e descrevendo miudamente quaes factos o deviam tornar suspeitos, produziu tão viva impressão, que, longe de obedecerem, os christãos-novos fugiram immediatamente quasi todos, abandonando casa, bens e filhos. Trinta e cinco que ficaram foram logo presos, prova evidente de que o medo dos fugitivos fora bem fundado, ou que de antemão sabíam a sorte que os esperava. A fama do que succedera em Trancoso soou pelos povos circumvizinhos e gerou uma verdadeira revolta. Os camponeses das cercanias correram armados á villa em numero de quinhentos, arrastados pela esperança de poderem commetter todos os excessos á sombra do zelo religioso. Os fugidos e presos eram ricos, as suas familias não tinham quem as protegesse, e a gentalha pôde a seu salvo perpetrar toda a sorte de violências e atrocidades. Trezentas creanças vagueiavam pelas immediações, sem abrigo, sem rumo e dispersas, chamando em alto choro por seus paes. Os trinta e cinco christãos-novos que se haviam deixado prender foram arrastados até Évora, e ahi lançados nas escuras masmorras chamadas as covas da Inquisição[36].

O tribunal da fé, funccionando por este modo , era mais do que tyrannia; era a anarchia vindo da auctoridade. Nas revoluções de iniciativa popular ha sempre os elementos de ordem que combatem os seus desvarios; que, mais tarde ou mais cedo, as subjugam ou as transformam, quando caminham á negação da sociedade; quando derribam mais do que lhes cumpre derribar. Aqui eram os elementos principaes da ordem, o sacerdocio, a monarchia, a magistratura, que tumultuavam na praça, que agitavam a plebe e a impelliam contra uma classe pacifica e obediente, que representava em grande parte, na maxima talvez, as forças economicas do paiz, era a subversão dos principios fundamentes da sociedade civil, subversão proclamada em nome do evangelho. Nunca, nem antes nem depois, o christianismo foi calumniado assim. Até os juizes pedaneos, que constituiam o ultimo annel da cadeia na jerarchia judicial, se erigiam de motuproprio em commissarios da Inquisição, mandavam publicar as monitorias dos inquisidores, e procediam como delegados do tribunal. Logares houve onde as auctoridades civis superiores e os donatarios das terras foram constrangidos a metter na cadeia aquelles defensores da religião improvisados, para obstar de algum modo a uma completa anarchia[37].

Se, porém, alguns officiaes publicos impediam ás vezes as ultimas consequencias da excitação do vulgacho, outros havia, que, assegurando-lhe a impunidade, mantinham a efficacia das causas que geravam tantos desconcertos. Na Covilhan o povo fez uma conjuração para em certo dia queimar todos os christãos-novos. Era a Inquisição reduzida á sua mais simples formula. Chegou a romper o tumulto, e a accenderem-se fogueiras diante das portas das victimas designadas. Ignoramos como se apaziguou a desordem. Abriu devassa o ouvidor do infante D. Luiz, donatario da Covilhan, interrogaram-se testemunhas, e verificaram-se os factos. Requereram os interessados certidão no processo. Negouse-lhes, apesar das leis do reino. Recorreram ao tribunal supremo, que ordenou se passasse a certidão requerida. Desobedeceu-se. Queixaram-se os aggravados ao regedor das justiças. Este mandou então vir á sua presença os escrivães do processo e o proprio processo. Vieram; mas os papeis sumiram-se nas mãos do chefe da magistratura. Pouco depois foi por elle chamado o procurador dos offendidos, e ordenou-se-lhe que não désse mais um passo ácerca daquelle negocio. Convencidos de que não podiam esperar da sociedade nem protecção nem justiça, os christãos-novos da Covilhan abandonaram os seus lares, fugindo do reino os que tiveram para isso ensejo[38].

Havia factos tão publicos, que não podiam ser negados pelos fautores da Inquisição, embora tentassem obscurecê-los e desculpá-los. As tyrannias, as violações do direito, do proprio direito excepcional inventado para os tribunaes da fé, os tormentos physicos e as agonias moraes que se curtiam no interior de lobregos calabouços, isso sim. Para os negar bastava uma pouca de impudencia. Devemos hoje, porém, acreditar as negativas dos algozes ou os queixumes das victimas? Os inquisidores tinham adoptado um arbítrio, que suppunham ou fingiam suppor efficacissimo Para apurar a verdade. Era servir-se da confissão de um réu contra outro réu, que, como e por se achar ligado a elles por laços moraes, devia ser-lhe favoravel. Estas confissões extorquiam-se com os tractos. No potro ou na polé, o filho não duvidava de accusar o pae, o marido a mulher, a mãe a filha. Accusariam Deus, se o inquisidor lhe désse a entender que semelhante accusação os livraria daquelles intoleraveis martyrios. Os christãos-novos applicavam á verificação das proprias affirmativas uma doutrina analoga. Pediam inqueritos civis, invocavam o testemunho de christãos-velhos, invocavam-no com confiança; citavam em favor do seu dicto sacerdotes, nobres, funccionarios, magistrados, homens, emfim, que por situação, por habito, por educação, por lisonja ao monarcha deviam ser, em these, parciaes da Inquisição. O que faltava era o potro, a polé, o leito de palha podre dos carceres, a escacez do alimento, a noite perpetua da masmorra, para as compellir a depor deste ou daquelle modo. Esperavam apenas os perseguidos que a probidade e a consciencia desses individuos falasse mais alto do que o espirito de parcialidade, do que as preoccupações religiosas, do que o temor do despeito ou o desejo da benevolencia do principe. A sua desvantagem em relação aos inquisidores, era incalculavel, immensa: e todavia, as atrocidades que se perpetravam em Aveiro, em Coimbra e por outras partes, não pretendiam que as acreditassem sob sua palavra: eram por dezenas as testemunhas que citavam na larga exposição dirigida a D. João iii em nome da gente da nação em 1543, documento solemne, em que ainda luz um resto de esperança na justiça humana. Que pediam elles ao rei? Que practicasse este negocio com os do seu conselho e com os grandes do reino, entre os quaes havia muitas pessoas judiciosas, prudentes, discretas, instruidas e de boa consciencia, mas que não attendesse a homens suspeitos, taes como os frades de S. Domingos, inimigos da raça perseguida, e cujo odio inveterado tinha por incentivo o castigo que D. Manuel dera aos motores dos assassínios de 1506[39]. Queixando-se em especial dos desvarios ferozes do bispo de S. Thomé, solicitavam apenas que se mandasse a Coimbra, á custa dos réus, qualquer individuo de sana consciencia e de alta jerarchia, que se informasse da verdade ácerca de cada um dos aggravos que enumeravam, dando-lhes tempo para provarem plenamente aquillo sobre que restassem duvidas. Apurada a verdade, pediam não a liberdade, não a reparação, mas simplesmente serem processados de novo por pessoa que respeitasse o direito e a justiça[40]. Que o leitor decida se quem mentia eram os que assim supplicavam, ou os que negavam que os seus actos, practicados a occultas, na escuridão dos calabouços, fossem accordes com os que, sem pudor, sem respeito á sua responsabilidade moral, practicavam á luz do dia.

O que se passava nos bispados de Coimbra, de Lamego, de Viseu e da Guarda repetia-se com leves mudanças nos do Porto, Braga, Évora e Lisboa. No Porto a Inquisição tomara uma physionomia particular. A sua existencia tinha-se ligado com uma questão economica. Era então bispo da diocesse o carmelita D. Fr. Balthasar Limpo, sujeito que passava por illustrado e austero, e que, conforme se póde ajuizar das memorias que delle nos restam e da sua correspondencia, não era de certo homem vulgar. Suppomo-lo, até, sincero no seu zelo religioso. A nobre e independente linguagem com que falava ao papa sobre a reforma da igreja, e a sua isenção de opiniões no concilio de Trento provam que o caracter do bispo do Porto era bem diverso do do bispo de S. Thomé[41]. Mas o desabrimento de D. Fr. Balthasar claramente indica um caracter impetuoso, ardente, inflexivel e absoluto nas suas opiniões. Que a uma indole destas se associem profundos sentimentos religiosos, e ter-se-ha um fanatico. A religiosidade, ou natural, ou adquirida pela educação, lançada no molde de um espirito tenaz mas suave, produz o martyr; unida a um génio irritavel e audaz, prodyz o perseguidor. O fanatismo e a violência são inseparaveis onde a violencia é possivel. Quando o fanatico ultrapassa os limites do moral e do justo ó porque, pervertida a razão, a consciencia que se offusca lhe diz que a religião o exige. Transposta a barreira da consciencia, não ha abuso ou crime a que elle não possa attingir sem ser em rigor criminoso. E' nisto que se distingue do hypocrita: é na differença de responsabilidade. Infelizmente, porém, na historia a distincção é difficil, e ás vezes inteiramente impossivel. Na presente hypothese, desejariamos bem achar plena prova da irresponsabilidade de D. Fr. Balthasar Limpo.

A existencia da Inquisição no Porto, dissemos nós, tinha-se ligado com uma questão economica, ou antes fora precedida por esta. O bispo concebera o designio de construir uma igreja no sitio onde estivera em outro tempo a synagoga, a qual era contigua ao bairro onde habitavam os christãos-novos da cidade, ou pelo menos a maioria delles. Os restos da synagoga que o bispo carmelita queria converter em igreja estavam situados na rua de S. Miguel[42], meia deshabitada, e cujos edificios em ruinas pertenciam pela maior parte a familias hebréas. Haviam os proprietarios sollicitado naquella conjunctura que, para se restaurar e repovoar essa rua, uma das principaes da povoação, fossem arruadas alli as lojas de tecidos de lan. Posto que já resolvida favoravelmente a supplica, tinham-se ainda suscitado difficuldades que retardavam a execução do designio. Querendo nessa conjunctura obter recursos para a edificação que tentava, o bispo convocou os christãos-novos, e pediu-lhes que declarassem a somma com que cada um se offerecia a contribuir para aquella piedosa empresa. Declararam elles que, no estado em que as cousas se achavam daria cada um tres ou quatro cruzados, mas que, se a preterição que tinham chegasse ô execução, construiriam elles a igreja, contribuindo para isso generosamente. Acceitou o bispo a condição; mas as dificuldades continuaram, e os christãos-novos, talvez injustamente, começaram a accusá-lo de deslealdade, e de que, longe de favorecer o negocio do arruamento, punha em segredo por obra tudo quanto era possivel para impedi-lo A desconfiança mutua trouxe a irritação: a irritação as pretensões infundadas. O bispo exigiu os recursos promettidos: os christãos-novos negaram-se positivamente a subministrá-los antes de se realisar a condição que limitava a promessa. A cólera do prelado traduziu-se então em ameaças terríveis de vingança, e a vingança não tardou a realisar-se desproporcionada á offensa, se é que realmente a havia.

A gente hebréa ficou aterrada. O Porto tinha presenceiado mais de uma scena violenta, fructo do caracter irascivel do carmelita. O procurador dos feitos da coroa fora já mandado espancar por elle, em consequencia de ter offendido certos direitos episcopaes no exercicio do seu cargo, e um sobrinho do conde da Feira, que passara pelo prelado sem se descubrir, fora por elle insultado e advertido de que a repetição da descortezia talvez lhe custasse a vida. O ruído que fez o successo trouxe um inquerito judicial, que o carmelita só pôde impedir, supplicando a intervenção do proprio conde da Feira. Tal era o homem que os christãos-novos tinham tido a imprudencia de irritar.

O bispo do Porto sabía até onde chegavam seus direitos episcopaes; sabía que para ser inquisidor na propria diocese não precisava da auctoridade da Inquisição. Começou, portanto, a processar os christãos-novos. O concelho geral não tardou a estabelecer uma delegação sua no Porto, mas o prelado, no qual virtualmente a propria bulla de 23 de maio de 1536 reconhecia o direito de se ingerir naquellas materias, não se esquecia, ou residindo na diocese ou na corte, de aggravar a sorte da raça proscripta, cujas queixas eram principalmente dirigidas contra a sua auctoridade. Não tardou que ao norte do Douro se repetissem as mesmas scenas de tyrannia, de espoliação e de immoralidade que se representavam no centro e no meio-dia do reino. Eram as mesmas monstruosidades na ordem dos processos, a mesma corrupção das testemunhas pelos affagos ou pelo terror, as mesmas extorsões dos agentes inferiores. A Memoria que nos serve de guia, dirigida ao infante D. Henrique ácerca do procedimento da Inquisição do Porto[43], não é assás explicita em relação ao membros daquelle tribunal. O que parece é que um dos inquisidores de Lisboa, Jorge Rodrigues, fora para alli enviado, mas que o bispo dirigia tudo, ou como principal commissario, ou pelo direito que lhe provinha da sua qualidade de diocesano, e pelo absoluto do seu caracter. O odio do antigo carmelita não se limitava já aos que o tinham offendido; era uma guerra de morte a toda a gente de raça hebréa. Dirigindo-se a Mesão-frio, cuja população não excedia naquelle tempo a centro e trinta ou cento e quarenta habitantes, ouviu, só num dia, o depoimento de quasi trezentas testemunhas ácerca dos christãos-novos da villa. E’ facil de imaginar como as perguntas seríam feitas, como escriptas as respostas, e quantos ficaram culpados. Em villa do Conde e Azurara passavam-se factos analogos. No Porto havia nove individuos que tinham tomado o officio de testemunhas contra o judaismo, jurando em quasi todos os processos por parte da justiça. Entre elles distinguia-se uma Catharina Rodrigues, mulher publica da mais baixa esphera, que se prostituia até a escravos. O escrivão do tribunal, Jorge Freire, antigo recebedor de certas rendas da mitra, até então assás pobre, enriqueceu brevemente no novo officio, exemplo que não foi baldado para os outros officiaes. Nada disto via o bispo, a nada attendia, cego pelo rancor. A propria Catharina Rodrigues achava nesse duro e terrivel sacerdote favor e tracto benevolo. Quando os réus, apesar de todas as difficuldades que lhes punham á propria defesa, alcançavam provar que as denuncias e depoimentos dados contra elles eram puras calumnias, e não havia remedio senão soltá-los, os denunciantes e as testemunhas falsas ficavam impunes, e se algum dos aggravados lhes movia acção nos tribunaes civis, era de novo acusado e preso. A parte immoderada que o bispo tomava na decisão das causas despertou o ciume do inquisidor Rodrigues; mas este ciume, que noutras circumstancias poderia aproveitar aos réus, tornava-se inutil pela situação relativa dos dous membros do tribunal. Jorge Rodrigues, velho e paralytico, posto que habil jurisconsulto, apenas oppunha frouxa resistencia ao fogoso carmelita, que, educado num convento, não tivera occasião de cursar os estudos canonicos. Assim, as sentenças em geral não representavam senão o voto incompetente do prelado, e o inqusidor delegado, quando as achava injustas, limitava-se a recusar publicá-las em audiencia, ou a declarar no acto da publicação que o seu voto fora contrario, mas que tivera de ceder á inflexibilidade de D. Fr. Balthasar. O promotor da Inquisição, João do Avellar, homem de costumes dissolutos, era, bem como todos os outros ministros e agentes do tribunal, creatura do bispo. Tinham-lhe conciliado o favor deste a violencia do seu genio e o profundo rancor que manifestava contra os christãos-novos. No exercicio das suas funcções, João do Avellar não reprimia aquella, nem occulteva este. Quando lhe apresentavam um desses breves de protecção especial que os christãos-novos costumavam comprar no mercado de Roma para se esquivarem ás atrocidades do tribunal da fé, protestava logo contra elle, chegando a ponto de dizer, escumando de raiva, que era mais facil deixar prostituir por elrei uma filha sua, do que reconhecer a validade de taes breves. As audiencias e julgamentos da Inquisição do Porto davam campo a scenas não menos apaixonadas da parte de D. Fr. Balthasar; scenas que são faceis de imaginar, lembrando-nos de que, como era natural, aquelles que tinham suscitado a perseguição, recusando dar as sommas promettidas para a nova igreja, não foram dos ultimos a entrar nos carceres do Sancto-Officio. Henrique Luiz, um delles, foi condemnado a dez annos de reclusão; mas o bispo achou repugnancia nos seus collegas a irem mais longe, e a condemná-lo a vestir o sambenito. Venceu, por fim, declarando que, se nisso havia injustiça, tomaria a responsabilidade della perante Deus. Pôde suppor-se quão accesa colera deviam excitar no seu animo as testemunhas favoraveis aos réus, sobretudo quando os depoimentos eram precisos, e não achava meio de os atenuar ou de fazer titubeiar a testemunha. Prorompia não raro em affrontas contra esses que assim ousavam contrariar os seus intuitos. Os epithetos que lhes dava de cães, de judeus mais judeus que os accusados, e o cuspir-lhes na cara eram amenidades a que Fr. Balthazar recorria ás vezes para os conduzir ao silencio. Os abusos dos ministros subalternos condiziam com este odio fanatico do bispo, ao qual a cegueira da paixão levava quasi á demencia. Alguns officiaes honestos, a quem aquellas demasias repugnavam, demittiam-se dos cargos, e por esse mesmo facto os agentes que debaixo da capa do zelo encubriam as suas ruins tenções mais facilmente podiam realisá-las. O primeiro escrivão do tribunal havia-se escusado por desgostos desta especie, mas o que lhe succedera, membro como elle do cabido, soubera amoldar-se melhor ás idéas do prelado. O carcereiro e o guarda dos carceres tambem pertenciam ao bando dos zelosos. Antigo creado de D. Fr. Balthazar Limpo, o carcereiro escolhera um guarda que fosse instrumento da propria maldade. De concerto, os dous opprimiam por mil modos os réus para lhes extorquirem dinheiro e submetterem-nos a todos os seus caprichos, fazendo ao mesmo tempo acreditar ao bispo que as suas mãos eram puras, e que só o zelo os tornava rigorosos até a crueldade. A carceragem de cada preso era de ordinario uma ou duas dobras; mas quando a riqueza, verdadeira ou supposta, de alguns delles accendia a cubiça do carcereiro, a taxa subia, ás vezes, a vinte. A sorte dos que não podiam pagar era desgraçada. O guarda completava por sua parte as extorções do carcereiro. Sem dinheiro não se abriam as portas para os advogados e sollicitadores falarem aos presos, e nem sequer para entrarem nas lobregas masmorras as cousas mais necessarias á vida. Posto que casado, Antonio Pires (era este o nome do chaveiro) parece que achava longas e tediosas as horas passadas nos claustros inquisitoriaes. Havia ahi duas christãs-novas, mãe e filha, julgadas já, e cuja sentença fora carcere perpetuo com o trajo chamado sambenito. Estas mulheres estavam á mercê de Antonio Pires, e palavras de um amor brutal soaram, acaso pela primeira vez, naquelles recessos humedecidos do suor de mil agonias. A donzella foi deshonrada. Essa infeliz, para quem na primavera dos annos tinham deixado de existir as torrentes da luz do sol, os aspectos do firmamento, os verdores dos bosques e campinas, a alvorada e o crepusculo, o aroma e o matiz das flores; para quem, ao passo que, por assim dizer, se lhe affundira ante os olhos a natureza physica, se lhe haviam aflundido tambem todas as esperanças do mundo moral, e cuja vida de dilatados horisontes só ficara povoada por dous sentimentos, o da perpetuidade do carcere e o de saudades inuteis, devia ser bem desgraçada! A masmorra era-lhe como patria adoptiva; o sambemto vestidura e mortalha. Que pensamentos seríam os seus quando, prostituida, e tendo por testemunha da prostituição um amor de mãe, a consciencia lhe disse que descera ainda um degrau que parecia não poder existir na escala das miserias da vida? Em circumstancias daquellas, o coração humano ou estala, ou se alevanta á terrível grandeza de um coração de demonio. Verificou-se o segundo phenomeno. A victima de Antonio Pires chegou a gloriar-se da deshonra, mostrando orgulho de trazer no seio o fructo de torpe adulterio. Euménide no meio das suas antigas companheiras, era ella quem completava os tractos de polé e do potro, quando os esbirros davam treguas aos martyrios. A humilhação e as privações das que eram infelizes sem serem infames como que lhe refrigeravam o espirito. Os seus caprichos eram lei. A' menor desobediencia, a vingança descia prompta; o feroz Antonio Pires distribuía com mão larga os maus tractos e as injurias, impedia a entrada dos alimentos, e inventava quantas oppressões lhe suggeria o seu animo damnado. Se acreditarmos as memorias dos christãos-novos, estes factos eram publicos no Porto. Não podia, portanto, o bispo ignorá-los. E D. Fr. Balthasar Limpo, esse homem, que, poucos annos depois, trovejava no Vaticano contra a immensa corrupção de Roma; que fazia curvar a fronte do pontifice diante das ameaças proferidas por elle em nome de Deus, tolerava ot dramas repugnantes que se passavam nos calabouços da Inquisição, como se fossem uma obra pia e digna de louvor. Exemplo tremendo dos principios a que podem arrastar-nos as tres peiores paixões humanas, o fanatismo, a vingança, e o orgulho insensato[44]

Em Évora o procedimento da Inquisição, posto que regulado pelo mesmo espirito de malevolencia implacavel que dominava esta instituição nas provincias do norte, apresentava um caracter particular. D. João iii e o infante inquisidor-mór tinham singular predilecção pela cidade de Sertorio, onde não raro residiam por mezes. O rei e a corte estavam accordes em pensamentos com os inquisidores, mas os actos em que ás perseguições atrozes se associavam publicamente a devassidão, o roubo, os insultos grosseiros, os actos tumultuarios nas praças ou no tribunal, não poderiam tolerá-los. Isso sería a negação de todo o governo, e não ha governo, por mau que seja, que se negue a si proprio. A tirannia mesma busca a plausibilidade. As scenas de perversão infréne que se repetiam ao longe tornavam-se moralmente impossiveis na presença de uma corte pontual, culta e beata. Aqui, a hypocrisia devia ser cauta, e o fanatismo grave. Assim succedia. Os calabouços da Inquisição d’Évora eram, como já vimos, os mais temidos: as covas tinham adquirido terrivel celebridade. Ahi as relações com as pessoas de fóra offereciam maiores difficuldades; essas abobadas subterraneas affogavam melhor os gemidos das victimas, e o segredo occultava com mais denso véu o que lá dentro se passava Era que alli se carecia de mais trevas. Dirigia a Inquisição d’Évora um castelhano, Pedro Alvares de Paredes, inquisidor que fora em Llerena, d’onde, se acreditarmos as memorias dos christãos-novos[45], havia sido expulso por actos de falsificação e por outros crimes. Já se vê que o individuo fora escolhido com discernimento. Não só tinha as artes de fabricar provas pró ou contra, conforme as conveniencias do negocio, mas tambem tinha aprendido á sua custa que a prudencia e a astucia deviam ser companheiras da maldade disfarçada. A longa experiencia havia-lhe revelado quantos recursos cabiam na industria humana para comprometter a gente da nação em crimes de impiedade. Aos seus conselhos se attribuiam a maior parte dos horrores que se estavam practicando em Portugal. Ninguem havia tão destro em fazer confessar delictos, quer os réus os tivessem perpetrado, quer não. Um dos seus expedientes para obter este fim era fingir bilhetes escriptos em nome dos parentes dos presos e introduzi-los no pão ou nos outros alimentos que passavam pelas mãos dos guardas antes de entrarem nos carceres. Nestes bilhetes, o imaginario pae, irmão, ou amigo supplicava instantemente ao réu que confessasse tudo quanto se podesse imaginar, porque sem isso a morte era certa, ao passo que uma confissão plena, embora mais ou menos inexacta, lhe assegurava a vida. A letra desconhecida dos bilhetes não gerava suspeitas no animo do preso; porque não era natural que o offisioso conselheiro quizesse arriscar-se a metter nas mãos dos inquisidores um documento do proprio punho, se casualmente o bilhete fosse apprehendido. O outro meio que empregava para justificar todas as crueldades da Inquisição, todos os seus assassinios juridicos, era fingir concluidos os processos, e ler aos réus suppostas sentenças, pelas quaes ficavam relaxados ao braço secular e condemnados á morte. Depois, quando o terror lhes desvairava o espirito, e o suor frio da intima agonia lhes manava da fronte, ou quando, no impeto da desesperação, se rolavam por terra, mordendo os punhos, e a escuma sanguinolenta lhes borbulhava nos labios por entre os dentes cerrados, o compassivo inquisidor alumiava de subito a noute daquellas almas com um clarão de esperança. A confissão que se exigia delles salvá-los-hia; porque tal confissão sería o prodromo do arrependimento. Naquella situação angustiada, qualquer réu confessaria, se o exigissem delle, ter devorado a lua. Era o ideal do potro e da polé; era o tracto moral. Confessavam quanto se lhes dictava. Escreviam-se estas confissões, que os confitentes firmavam. Separava-se então dos autos a parte relativa ao supposto julgamento final e a sentença definitiva. A confissão escripta, juncta ao processo, vinha depois a servir para uma sentença verdadeira, e a justiça do tribunal da fé ficava perfeitamente illibada. Estes expedientes poupavam as irregularidades do processo, as testemunhas falsas, a denegação dos meios de defesa. Pedro Alvares de Paredes era o modelo dos juizes respeitadores das formulas e da justiça. As appelações vindas do tribunal d'Évora para o infante inquisidor-mór, e deste para o conselho supremo, haviam-se tornado inuteis. Que provimento teria cabida contra um juiz typo d’integridade ?[46]

Bem como em Evora, em Lisboa o procedimento da Inquisição devia ser mais decoroso do que nas provindas remotas, assim porque tambem e corte se demorava aqui uma grande parte do anno, como porque Lisboa era a capital, o centro da civilização do paiz, e a residencia ordinaria do nuncio. Os actos do tribunal estavam nesta cidade incomparavelmente mais arriscados a uma appreciação desfavoravel, e os gemidos das victimas eram mais difficeis de abafar. A Inquisição de Lisboa compunha-se de quatro inquisidores. Fr. Jorge Sanctiago, dominicano, Jorge Rodrigues, transferido em commissão para o Porto. Antonio de Leão e João de Mello. Presidia este e póde-se dizer que era a alma do tribunal. João de Mello fora um dos primeiros escolhidos em 1536 pelo inquisidor-mór Fr. Diogo da Silva para membro do conselho geral. O caracter moderado de Fr. Diogo da Silva não consentira ao seu assessor desenvolver as proprias tendencias; mas a renuncia de Fr. Diogo, e a nomeiação do infante D. Henrique para aquelle cargo deram-lhe grande preponderancia. João de Mello era quem no conselho representava melhor o espirito da epocha; era o mais inexoravel inimigo da gente da nação. Como Jorge Rodrigues foi transferido para o Porto, do mesmo modo elle descera para um tribunal de primeira instancia; mas o commissario em Lisboa não tivera que submetter-se á vontade de um prelado irascivel e impetuoso e mais perseguidor dos christãos-novos do que o proprio delegado do conselho. A actividade de João de Mello podia na sua nova situação desenvolver-se melhor do que num tribunal de recurso: e os factos provaram em breve que o inquisidor-mór não se tinha enganado, collocando-o á frente da mais importante das Inquisições especiaes[47].

O chefe da Inquisição de Lisboa, conforme o que se póde inferir das memorias que ácerca delle nos restam e daquella parte dos seus actos que nos são conhecidos, era um caracter que, participando mais ou menos das diversas indoles do bispo do Porto e do inquisidor Pedro Alvares, não se confundia com nenhum dos dous caractéres. O seu odio entranhavel contra a raça hebréa não era menor que o de D. Fr. Balthasar; mas que a cegueira do fanatismo fosse quem lh’o inspirava é para nós mais que duvidoso. Não lhe faltava certo grau de intelligencia e de saber positivo, adquirido pelo estudo; mas faltava-lhe a austeridade de costumes do prelado portuense. De genio, talvez, tão violento como este, sabía-o reprimir melhor, e posto que não igualasse na sciencia de simular equanimidade e ternura o inquisidor d’Évora, tinha arte de as fingir nas occasiões em que a falta dos ademanes e esgares pios e de uma linguagem agri-doce podesse compromettê-lo na opinião popular. Como Pedro Alvares de Paredes, João de Mello amava a plausibilidade.

Entretanto, debaixo dos tectos da Inquisição de Lisboa repetiam-se as mesmas scenas de corrupção e de maldade que se representavam por outras partes. A dar credito aos christãos-novos, aqui o segredo era maior, maior a falta de communicações para os desgraçados que cahiam nas mãos dos inquisidores. Por tristes e infectas que fossem as famosas covas de Évora, a soledade nos carceres de Lisboa era mais completa. Nem um raio de luz nocturna ou diurna transsudava jámais nessas lobregas moradas, e a unica voz que por vezes ouvia qualquer novo habitante daquella especie de sepulchros era a dos ministros do tribunal, que desciam a consolá-lo para que pedisse misericordia, asseverando-lhe que a existencia das suas enormes culpas estava plenamente provada[48]. Se não cahia no laço e resistia constante a estas importunações prolongadas, levavam-no ao logar do martyrio. Primeiro davam-lhe um tracto de polé. Se, culpado ou não, continuava a affirmar a sua innocencia, retalhavam-lhe as plantas dos pés, untavam-lh'as com manteiga e aproximavam-lh'as do fogo[49]. Ordinariamente, o resultado deste expediente era uma confissão absurda, mas satisfactoria para os inquisidores.

A bulla de 23 de maio de 1536 auctorisava os réus para nomeiarem os seus procuradores e advogados como entendessem. Esta livre escolha podia trazer serios embaraços. Podia uma voz eloquente fazer soar na capital a negra historia de tantas atrocidades. A Inquisição qualificou para litigarem perante ella apenas dous a tres advogados dos mais obscuros. Aos réus não era licito escolher senão um delles. Ajuramentados pelos inquisidores não para ultrapassarem nas defesas as métas que lhes eram prescriptas, esses homens, collocados entre morrerem de fome por inhabeis na sua profissão e enriquecerem á custa dos seus clientes forçados, que não sabíam nem lh’as importava salvar, reduziam as suas allegações a uma pura formalidade, a um vão symulachro de defesa. Não havia assim para o réu outra esperança senão pedir misericordia. Mas qual era a condição para a obter? Era confessar; confessar tudo quanto se achasse contido no libello de accusação, embora fosse contradictorio, absurdo, impossivel. Restava, porém, saber se ne supplica de perdão guardava pontualmente o formulario prescripto; restava calcular se o arrependimento vinha dos labios ou do coração. A quantidade das lagrimas do supplicante pesava-se na balança moral dos inquisidores, e aquelle que tinha o coração assás de homem para as não verter pagava caro o ter os olhos enxutos no momento solemne. Reduzia-se tudo, em summa, a ficar a sorte dos culpados só dependente do arbitrio dos seus julgadores. Era a jurisprudencia, a doutrina practica, a organisação completa e irresistivel do assassinio legal.

Entre os muitos factos atrozes que se mencionam nos varios memoriaes dos christãos-novos, e cuja confirmação ás vezes vamos encontrar ainda hoje nos processos daquella epocha, talvez nenhuns são tão odiosos como os que se referem á Inquisição de Lisboa. Se alguns desses quadros irritam pela crueldade, outros ha que repugnam pela villania, embora lhes suppunhamos carregadas as cores nas memorias que no-los transmittiram. Entre os individuos que atulhavam as masmorras do Tribunal da fé havia uma mulher, Maria Nunes, accusada de judaismo. As provas contra ella faltavam, e seu marido forcejava por salvá-la; mas parece que os inquisidores tinham resolvido perdê-la. Era preciso adduzir testemunhas. Souberam achá-las. Um certo Montenegro , queimado cinco annos antes, com a esperança de escapar tinha culpado muitas pessoas. Entre estas figurava Maria Nunes. Conduzido, porém, ao patibulo. Montenegro declarara que as suas denuncias haviam sido falsas, e que as fizera por lhe terem promettido em troco dellas a vida. As accusações de Montenegro poseram-se, portanto, de parte; mas a necessidade de buscar provas contra a pobre mulher fê-las recordar, e a voz do suppliciado foi evocada contra ella. Um mendigo, habitualmente embriagado, e que meio nú corria as ruas da cidade, deixando, a troco de um real, que os rapazes o levassem preso por uma corda de singular maneira[50], foi a segunda testemunha. A terceira, que faltava, suppriu-se no processo com um depoimento anonymo. Era com provas taes que ás vezes se lançavam nas fogueiras réus do supposto crime de crerem no Deus de Moysés. Votada ao exterminio, uma familia inteira, marido, mulher e filha, fora conduzida aos carceres do Sancto-Officio. A mulher não tardou a ser queimada num auto-de-fé. O marido, fechado numa estreita masmorra e carregado de ferros, era atormentado diariamente para se confessar culpado, ao que o infeliz tenazmente resistia. Tentaram a filha com a esperança da liberdade para que accusasse o pae; mas, apesar de saír apenas da puericia, a donzella houve-se com valor. A chave do seu calabouço foi então entregue a um gallego, servente do tribunal, unica pessoa com quem lhe era permittido falar, e que entrava alli quando queria. Suspeitou-se que esse homem abusava da captiva; mas quem poderia devassar taes segredos? O processo, tanto della como de seu pae, não se fez, e o ulterior destino das duas victimas ficou sendo um mysterio[51].

Pôde imaginar-se qual sería o terror dos indivíduos da raça proscripta quando ouviam da boca de um familiar do Sancto-Officio a ordem para o acompanharem aos carceres do tribunal. Entrando alli, aquelles cujos animos eram mais fracos perdiam não raro o juizo. Dous presos conduzidos de Aveiro a Lisboa receberam taes tracios pelo caminho, possuiram-se de tal afflicção com a perspectiva do futuro, que, chegando ao seu destino, estavam completamente alienados. Uma pobre mulher, rodeiada de cinco filhinhos, o mais velho dos quaes contava apenas oito annos, conduzida á Inquisição, perguntava porque a prendiam e qual sería a sua sorte. Divertiam-se os familiares em persuadi-la de que ía ser queimada. Num accesso de loucura, a desgraçada precipitou-se de uma janella abaixo, e quando a foram buscar ao pateo onde cahira, acharam-na completamente desconjunctada. Esses terrores que cercavam aquella situação angustiada produziam o aborto quando as presas vinham gravidas[52]. Nem a belleza e o pudor dos annos floridos, nem a velhice, tão digna de compaixão na mulher, eximiam o sexo mais debil da ferocidade brutal dos suppostos defensores da religião. Havia dias em que sete ou oito eram mettidas a tormento. Essas scenas reservavam-nas os inquisidores para depois de jantar . Serviam-ihes de pospasto. Muitas vezes, naquelle acto, competiam uns com outros em mostrar-se apreciadores da belleza das fórmas humanas, Emquanto a desgraçada donzella se estorcia nas dores intoleraveis dos tractos ou desmaiava na intensidade da agonia, um applaudia-lhe os toques angelicos do rosto, outro o fulgor dos olhos, outro os contornos voluptuosos do seio, outro o torneado das mãos. Nesta conjunctura os homens de sangue convertiam-se em verdadeiros artistas[53]. E João de Mello, no vigor da mocidade, devia achar aquellas scenas deliciosamente exquisitas.

O numero das pessoas que entraram nos carceres de Lisboa de 1540 a 1543 nem remotamente se pode calcular. Tinham-se construido prisões especiaes para réus de judaismo; mas em breve esse receptaculo de supremas miserias ficou atulhado. Converteu-se em masmorra o vasto edifício das Escholas-geraes

mas as novas prisões dentro em pouco se tornaram insufficientes. Os Estáos, paços reaes situados no Rocio, foram então entregues ao Sancto-Officio. Não bastaram, porém. Os edificios publicos da capital corriam risco de ser transformados, uns após outros, em calabouços. Pararam, talvez, diante desta idéa; mas a corrente de entes humanos que se precipitava nos antros da Inquisição não cessava. Nos pateos interiores edificaram-se umas como pocilgas para se receberem novos hospedes [54]. A frequencia dos autos-de-fé devia, portanto, tornar-se em providencia hygienica. Uma epidemia podia surgir daquelles logares infectos, d'entre uma população empilhada em recintos sem ar e sem luz, devorada pelos padecimentos physicos e enfraquecida pela dor moral. A saude publica, a boa ordem das prisões, o serviço do rei e do estado exigiam de tempos a tempos a reducção daquelle acervo enorme de carne humana a proporções mais razoaveis. As fogueiras dos autos-de-fé, ao passo que eram uma diversão, para o povo, satisfaziam ás indicações administrativas. As cinzas dos mortos nem sequer occupavam um breve espaço de terra; porque as correntes do Tejo íam depositá-las no fundo solitario do mar.

Resta-nos uma carta de João de Mello escripta a elrei, sem data de anno, mas que coincide com esta epocha[55]. E’ a descripção de um auto-de-fé, redigida no mesmo dia, e poucas horas depois daquella festa de canibales . Ao tomar nas mãos o horrivel documento, como que nos sussurra aos ouvidos o crepitar das ’chammas e o murmurio anhelante dos que se asphvxiam nos rolos de fumo; como que respiramos o cheiro das carnes que se carbonisam, dos ossos que se calcinam. E’ uma illusão de phantasia. O que está diante de nós é uma folha de papel, que os seculos amarelleceram, cuberta de caractéres legiveis e firmes, traçados por mão que não tremia, por mão que está alli revelando um coração de bronze. Feliz o nosso seculo, em que taes corações são pouco vulgares! O chefe da Inquisição em Lisboa começa por dizer a elrei que o céu estava esplendido. Aquelle homem ousava olhar para o céu. Os dias antecedentes haviam sido procellosos, e João de Mello notava essa circumstancia, porque o povo acreditaria que a formosura do dia era signal do favor celeste. O prestito saíu depois das seis horas da manhan da Misericordia e dirigiu-se ao cadafalso. A fidalguia rodeiava o clero. Os membros do tribunal da fé foram assentar-se ao lado do juizes do tribunal ecclesiastico da diocese. Não tardaram a chegar os sentenceiados. Eram proximamente cem, que, notava o inquisidor faziam um prestito magnifico. Conduziam-nos as justiças seculares, e acorapanhava-os a clerezia das duas parochias de Sanctiago e de S. Martinho. Chegados juncto ao cadafalso, cantou-se o hino Vent creator Spiritus. Um frade subiu ao pulpito, e orou. Devia ser o discurso um admiravel tecido de blasphemias. Foi breve o frade; porque a obra talhada para aquelle dia era longa. Começou a leitura das sentenças; primeiro as de degredo e de prisão temporaria, depois as de carcere perpetuo, a final as de morte. Estas eram vinte. Os padecentes, sete mulheres e doze homens, foram successivamente atados ao poste fatal e assados vivos. Uma só mulher pôde escapar ao seu horrivel destino, porque, diz a carta, se mostrou verdadeiramente arrependida, confessando melhor as suas culpas. Além disso, no entender do inquisidor, aquelle acto de indulgencia servia para provar a commiseração e brandura do tribunal. Quanto ao arrependimento dos outros, esse era mais duvidoso. Tinham, em geral, sido relaxados ao braço secular por judaisarem nos carceres. Isto provava quanto era necessaria a inflexibilidade. Advertia o inquisidor que conservava ainda aferrolhada muita gente prestes para servir em igual espectaculo, e que o pejamento das masmorras era excessivo, restando, além disso, muitos réus que processar. A inferencia destes factos tirá-la-hia elrei. Se naquelle dia não queimara ou não atirara para a sepultura em vida, destino talvez mais atroz, maior numero de individuos, era que não gostava de excessos de severidade. É difficil dizer o que predomina naquella carta, se a hypocrisia, se a ferocidade. No fim della escapa, todavia, ao inquisidor um grito de remorso. Uma cousa havia que lhe tinha feito impressão. Ao separarem-se os paes dos filhos, as mulheres dos maridos, os irmãos dos irmãos, nem uma lagryma cahira, nem um gemido soara. A ultima benção paterna, o ultimo beijo d’esposos o ultimo e estreito abraço fraterno tinham sido silenciosos e tranquillos. Era uma tranquilidade que o algoz não comprehendia. João de Mello devia espantar-se de ver martyres e heroes. Na corte de D. João iii não era facil encontrá-los, e elle provavelmente ignorava a historia dos primitivos christãos. Se não a ignorasse, e cresse que era verdadeira, não seria inquisidor[56].

As memorias dos christãos-novos completam o quadro da carta dirigida a D.João iii[57]. Se as acreditarmos, perante aquelle espectaculo João de Mello vertia lagrymas. Aperfeiçoava assim o effeito que esperava tirar da subita commiseração para com uma das victimas. No que varia o memorial dos perseguidos é na explicação dessa inesperada piedade. A confissão da mulher, tão extraordinariamente salva, não versava sobre as proprias culpas; versava sobre as alheias. Reconduzida do patibulo aos carceres, a penitente convertia-se em accusadora de metade dos habitantes de Aveiro. Aquella redempção inesperada não fora, porventura, senão uma scena preparada e prevista, um tracto moral dado á infeliz, sem deixar por isso de ser, como se colhe da carta, um embeleco para a grosseira credulidade popular.

Em que se fundavam as sentenças de tantas creaturas votadas ao atroz supplicio das chammas? Em terem judaisado nos carceres, segundo dizia o inquisidor. Mas o que diz o senso commum? Era possivel que velhos enfraquecidos de animo e de corpo, que mães rodeiadas de filhos, que donzellas timidas ousassem repetir nas masmorras, sob as chaves dos inquisidores, no meio de guardas inexoraveis, de espias vigilantes, actos externos de uma religião que não tinham esforço para confessar, quando interrogados ácerca da sua crença? Que ritos de judaismo eram esses que se practicavam sem templos, sem sacerdotes, sem formulas, sem preces? Se abrimos os processos que nos restam daquella epocha de sangue, que é o que vemos de ordinario servir de pretexto á ruina e ao exterminio de tantas familias? O limpar candieiros ou vestir roupa lavada á sexta-feira, o abster-se de certas comidas, o trabalhar ao domingo, o ignorar ou repetir mal esta ou aquella passagem do catechismo, e outras cousas analogas; em parte accusações ridiculas, em parte factos mais ou menos reprehensiveis, mas que nunca se poderiam qualificar de crimes capitaes, e que seria absurdo reputar essencialmente inherentes á crença judaica. Como, pois, acreditar que esses mesmos que não ousavam confessar os dogmas do mosaismo, que blasphemavam delle proclamando-se christãos, exposessem as vidas só para conservar cerimonias e actos puramente accidentaes? Admittindo, porém, tamanho absurdo, como explicar o modo por que esses individuos morriam? Se pelas memorias dos christãos-novos não soubessemos que os padecentes expiravam abraçados ao crucifixo e com todos os signaes de christãos, a carta de João de Mello bastaria para no-lo revelar. Era, portanto, uma adivinhação que fazia, suspeitando que não acabavam contrictos e verdadeiramente arrependidos. E’ evidente que os actos externos dos suppliciados não o auctorisavam para ir mais longe. Um que morresse invocando o Deus de Moysés justificaria a Inquisição e os seus ministros, segundo as idéas de então. Não era facto que o inquisidor omittisse na sua carta. Se, porém, morriam com as exterioridades de christãos, suppor que os desgraçados, no trance tremendo do passomento, quando já não lhes restavam senão alguns momentos de vida, e a ponto de apparecerem diante de Deus, mentiam a si e ao mundo, e blasphemavam da crença que tinham no coração e que era toda a sua esperança futura, sem um unico interesse em conservar a mascara hypocrita de simulado christianismo, é uma idéa tão extravagante, que sería infallivel prova de loucura o refutá-la seriamente[58].

Depois do precedente extracto da carta de João de Mello e das reflexões que ella suggere fora inutil multiplicar os exemplos, que aliás abundam nas memorias dos christãos-novos, das violencias e atrocidades que, debaixo de apparente regularidade, se practicavam na Inquisição de Lisboa. Advertiremos só que o homem cuja indole e cujas idéas se revelam naquelle documento era o mais influente entre todos os inquisidores, e que, debaixo das apparencias de justiça, a vida ou a morte de qualquer encarcerado dependia pura e simplesmente do seu alvedrio. Para obrigar o accusado a confessar-se criminoso tinha os tractos physicos e a coação moral; tinha os expedientes de Paredes e os que lhe inspirava a propria inventiva. Logo, porém, que o réu confessava, todos os caminhos de salvação ficavam fechados a este, menos o de pedir misericordia, e em tal conjunctura João de Mello nada perdia em ser misericordioso. O perdão importava sempre uma retenção mais ou menos dilatada nos carceres, para a penitencia de culpas que o proprio accusado reconhecera existirem. Desde esse momento, o penitenciado equivalia a uma rez, a uma peça de caça, que João de Mello podia quando quizesse enviar ao matadouro para despejar os seus estabulos. Reduzia-se tudo a um processo de reincidencia, em que os accusadores e as testemunhas unicas de accusação ou de defesa eram forçosamente os guardas e serventes dos carceres, creados e familiares do inquisidor. A reincidencia manifestava-se em qualquer acto indiferente, como vestir ou deixar de vestir roupa lavada neste ou naquelle dia. Então o criminoso, já uma vez confesso, convertia-se em relapso, e para os relapsos a pena legal era a fogueira. Debalde se appelava do tribunal para o infante inquisidor-mór, ou deste para o conselho. O infante rejeitava a appelação, porque, a sua confiança naquelle homem era illimitada, e no conselho, a que João de Mello tambem pertencia, quem teria bastante audacia para reprovar o procedimento daquelle de quem tudo confiavam o infante e até o proprio rei[59]?

A estes factos, que ainda guardavam, ao menos pelas formulas, um symulachro de ordem, associavam-se outros francamente brutaes, mas que aos olhos do vulgo se cohonestavam como resultado do zelo religioso. Conforme vimos em outro logar, a torrente da emigração era continua e caudal, e dirigia-se em boa parte para os Paizes-baixos, o que bastaria para explicar o favor que em Carlos v achavam os loucos esforços do cunhado para destruir a classe mais rica e mais industriosa dos proprios estados. As cidades commerciaes de Flandres offereciam aos christãos-novos portugueses, não só um refugio contra a intolerancia, mas tambem um theatro adequado á sua industriosa actividade. Muitos, mais previdentes ou menos affectuosos para com a patria, haviam com tempo buscado alli a segurança e a paz que a terra natal lhes não promettia. A prosperidade e a opulencia, que lhes douravam os dias do desterro, eram um incitamento irresistivel para os que tinham esperado a pé firme o estourar da tempestade. Embarcar de Lisboa para um porto de Flandres não era, porém, o mesmo que dirigir-se á Italia; não havia o pretexto de ir a Roma sollicitar o favor ou a justiça da sé apostolica para um parente ou um amigo perseguidos; e a urgência de negocios nem sempre, nem para todos era explicação plausivel. Fiado na protecção da corte, João de Mello julgou, portanto, dever por si mesmo pôr cobro no abuso da emigração. Embora o incommodasse o pejamento dos carceres, tinha receitas mais heroicas para remediar esse inconveniente do que soffrer que lhe escapassem incolumes algumas victimas possiveis. Acompanhado de um collega e rodeiado dos familiares e esbirros, viam-no ás vezes entrar de subito em um navio prestes a desfraldar as vélas. Não tardava a saír, trazendo maniatados alguns christãos-novos, que ainda não eram réus, mas que podiam vir a sê-lo, e que preventivamente se lançavam nas masmorras do Sancto-Officio. A noticia destas prisões animava o povo a practicar actos analogos contra esses homens que lhe tinham ensinado a detestar. Assim, mais de uma vez aconteceu verem-se repentinamente presos pelos camponeses e conduzidos á cidade, sob pretexto de que pretendiam fugir, christãos-novos conhecidos pela sua fortuna ou pelas suas qualificações que se atreviam a saír de Lisboa e alongar pelas cercanias[60].

O quadro que extrahimos, assim do Memorial e das narrativas e documentos que o acompanham, como de outros que lhe são correlativos, é apenas um esboço desenhado com traços soltos. Omittimos numerosos factos, que talvez lhe avivariam as cores e lhe tornariam os contornos mais precisos, mas que seríam demasiado minuciosos. Baste dizer que, além de provarem a deliberação antecipada de exterminar a raça hebréa, levam tambem á evidencia que essas mesmas garantias, estabelecidas na bulla de 23 de maio de 1536 e nos outros diplomas pontifícios de execução permanente, a favor dos réus de judaismo eram diariamente postergadas e escamecidas , e que os breves relativos a individuos ou a familias cujas causas o papa avocava a si, ou a que dava juizes especiaes, eram por via de regra illudidos, ou pela resistencia formal da Inquisição auxiliada pelo poder civil, ou pelo temor que os juizes apostolicos tinham de despertar a malquerença do rei ou de seus irmãos, desempenhando a missão que lhes era imposta e sustentando com vigor a propria auctoridade. Accrescente-se a isto a indifferença do nuncio, inteiramente submisso á vontade d'e!rei, e imagine-se quão desesperada sería a situação a que os hebreus portugueses tinham chegado.

Nem este estado de cousas podia ser desconhecido em Roma, nem delle era licito duvidar, á vista desse acervo de factos e de provas que os procuradores dos christãos-novos apresentavam em justificação dos seus reiterados clamores. Ainda suppondo que as provisões da bulla de 23 de maio de 1536 e os actos posteriores que a haviam modificado ou completado fossem perfeitamente justos, nem essa mesma bulla e os actos consecutivos a ella haviam sido respeitados. As providencias do pontifice para reparar um ou outro abuso individual de que tomava conhecimento eram systematicamente ludibriadas. A responsabilidade de tão graves males recahia toda sobre elle, que, instituindo a Inquisição em Portugal, abrira largo campo aos desvarios de um odio fanatico. Paulo iii mais de uma vez o confessara, e mais de uma vez tinha invocado a sua responsabilidade para repellir pretensões exaggeradas de D. João iii sobre o assumpto. A nimia condescendencia que ultimamente mostrara para com os desejos do monarcha, em vez de ensinar a moderação aos inquisidores, só servira para exaltar mais as suas ruins paixões. Quando nenhuns motivos occultos movessem a curia romana a mudar de systema, as cousas tinham emfim chegado a termos taes, que se tornava altamente escandalosa a especie de indiferença e torpor em que o pontifice parecia sepultado ácerca da Inquisição de Portugal.

Apesar, portanto, das diligencias de Balthasar de Faria para illudir os espiritos ou corromper as vontades, Paulo iii entendeu que era tempo de intervir de novo a favor dos hebreus portugueses. O espectaculo que Portugal estava dando ao mundo tornava esta resolução mais que plausivel. Ás considerações moraes de humanidade e justiça outras vinham associar-se de interesse material, igualmente se não mais efficazes, para mover a curia romana . No principio deste livro vimos quaes ellas eram: a renovada generosidade dos christãos-novos, e o despeito pela isenção quasi grosseira com que D. João iii respondera ás propostas relativas á mitra de Viseu, isenção que mostrava o seu odio inextinguível contra D. Miguel da Silva, a quem, aliás, o cardeal Farnese continuava a proteger mais ou menos disfarçadamente. Tomou-se a final a resolução de intervir e de verificar os factos cuja negra historia se repetia diariamente em Roma. O nuncio bispo de Bergamo não era, porém, o homem proprio para isso na situação subserviente em que se collocara, nem é provavel que os christãos-novos o acceitassem para defensor. Foi pois escolhido para o substituir João Ricci de Montepoliziano, clerigo da camara apostolica e mordomo do cardeal Farnese. Tanto este como o papa occultaram a Balthasar de Faria os verdadeiros fins daquella nomeiação, e parece que chegaram a convencê-lo de que, se era possivel, o novo nuncio sería nas mãos de D. João iii um instrumento ainda mais docil do que o seu antecessor[61]. A acquiescencia do agente d'elrei era um argumento que se deixava em reserva para as inevitaveis discussões futuras.

A corte de Lisboa não se illudiu, porém, com as informações que a este respeito lhe dava Balthasar de Faria, talvez por saber de mais segura origem que a substituição do representante pontificio não era tão indifferente como se antolhava ao procurador da Inquisição em Roma. Assim, cuidou desde logo em prevenir-se para aparar o golpe. Era porventura o ultimo combate que havia a vencer, e em que a victoria, acabando de levar a desanimação aos arraiaes adversos, podia fixar de uma vez para sempre a sorte, ainda até certo ponto dubia, do tribunal da fé.

Notas editar

  1. «temo que me ande vir árrombar, porque desbaratam o mundo com peitas»: C. de B. de Faria de 15 de outubro de 1543, l. cit.
  2. C. d'elrei para B. de Faria de 4 de fevereiro de 1544 na correspondencia de B. de Faria, fl. 49, na Biblioth. da Ajuda.
  3. «he impossivel resistir ao suborno desta gente, porque exactissima diligencia não basta: á mister mão de Deus: os officiaes são muitos, e nesta terra é gram maravilha serem bõos: e a maior parte delles, da follosa até o grou, promtos a tomar sem pejo quanto lhes dam: ora veja vossa alteza a impresam que faram nelles clinstãos-novos necesitados , que naturalmente tem por officio peitar»: de B. de Faria a elrei de 18 de fevereiro de 1544 na G. 2, M. 5, N.° 19, no Arch. Nac.
  4. Ibid.
  5. Ibid.
  6. Ciacconius, T. 3 (Paul. iii.—xxxiii), p. 667.
  7. C. de B. de Faria a elrei de 18 (aliás 19) de fevereiro de 1544, G. 2, M. 5, N.° 32, no Arch. Nac.
  8. C. de B. de Faria a elrei de 8 de maio de 1544, G. 2, M. 5, N.° 24.
  9. Veja-se o § da carta de um certo Fr. Antonio a elrei, escnpta poucos annos depois, e que se refere a este facto: G. 2, M. 9, N.° 44.
  10. C. de mestre Simão (jesuita) a D. João iii (1544) de Ancona, na G. 2, M. 5, N.° 31. Veja-se tambem a carta de Gaspar Barreiros publicada por Cunha (Hist. Ecclesiastica de Braga, P. 2, c. 81) documento suspeito, mas cuja narrativa é nesta parte assas plausível.
  11. Instrucç. ou Memor. sem data no vol. 3 da Collecç. Ms. de S. Vicente, f. 139.
  12. «Quindecim totos annos quibus Paulus pontifex vixit, ecclesiam ferè universam prudentissimè gubernavit (Farnesius); legationes apoatolicæ sedis aut ipse obivit, aut quibus voluit à pontifice delatae. Ad pontificem atque à pontifice per ipsum Alexandrum provinciarum et principum manabant negotia»: Ciacconius, T. 3 (Paul iii. — i), p. 563.
  13. Ibid.
  14. O titulo da memoria a que nos referimos e que muitas vezes temos citado é Memoriale porrectum â noviter conversis Regni Portugalliae continens narrativam rerum gestarum cirza eos a Regibus et Inguisitoribus illius Regni spatio 48 annorum '. Seguem-se ao memorial 44 apensos, contendo em parte instrumentos judiciaes sobre os factos indicados naquella memoria, e narrativas especiaes em relação a actos dos inquisidores e a assumptos passados no interior da Inquisição, de que não era possível obter certidões. Parte dos annexos são destinados à discussão de varios pontos relativos à extensão da auctoridade do tribunal da fé, ás condições da sua existencia, ás formulas dos processos, etc. Desde o numero 33 em diante os appensos referem-se principalmente ao periodo decorrido desde 1540 até 1544, e por isso são estes que aproveitaremos aqui, bem como a correspondente narração do Memorial. Este e os appendices formam os volumes 31 e 32 da Symmicta Lusitanica (vol. 38 e 39 da Collecção Geral vinda de Roma) na Bibliotheca da Ajuda. A copia foi tirada do Ms. 893 da Bibliotheca Borghesi.
  15. «illorum sanguine incrassatus et impinguatus est regius furor. Heu! Deplorandum tempus!» Memoriale, Symm., vol. 31, f. 60 v.
  16. Memoriale, i. cit. f. 62. O processo de Margarida de Oliveira, que ainda existe nos archivos da Inquisição de Lisboa N° 2847 e 3911, prova que, nesta parte, a narrativa do memorial não só não é exaggerada, mas até que é incompleta. A existencia dos autos originaes nos archivos da Inquisição deixa logo ver o nenhum caso que os inquisidores fizeram da segunda resolução do papa. Appensos a elles encontram-se o mandado avocatorio do arcebispo do Funchal e a contestação do promotor da Inquisição, allegando que, tendo sido o procedimento dos inquisidores para com a ré justo e regular, o breve que nomeiava juizes extraordinarios era sob e subrepticio. A desobediencia dos inquisidores fundou-se. portanto, em dar por provado justamente o que estava em questão. O mais curioso daquelle processo (a que parece, por nos servimos de uma phrase, vulgar, ter-se posto pedra em cima, porque não se acha concluido) é a materia das testemunhas. As do libello foram seis, das quaes tres de ouvida. A ré deu mais de cem em seu abono. Entre as testemunhas de defesa figuravam pessoas principaes, tanto da classe nobre como da burguesia. Dada a lista, interrogaram-se apenas algumas e parou o processo. Queixou-se a ré, e pediu que fossem ouvidas as outras. A sua situação era horrivel. Tinha 74 annos e estava cuberta de chagas. O promotor impugnou o requerimento, allegando que aos juizes tocava appreciar o numero de testemunhas que eram necessarias para os esclarecer, fundamentando esta admiravel doutrina com textos numerosos. Taes eram a justiça e a indulgencia da Inquisição, ainda suppondo a legitimidade da sua existencia. A circumstancia de não figurar o nuncio no mandado avocatorio mostra bem ou a timidez do bispo de Bergamo, ou a insignificancia do papel que representava na corte de D. João iii.
  17. Ibid.
  18. Não existe o original; o que transcrevemos aqui é a traducção da traducção latina, que se acha inserida no instrumento N.° 33, appenso ao Memoriale, na Symm., vol. 32. fol. 192.
  19. Carta do doutor Gonçalo Vaz a elrei, de 15 de janeiro de 1543, na G. 2, M. 1, N.° 39, no Arch. Nac.
  20. Instrumento N.° 35, appenso ao Memoriale, l. cit. fol. 217.
  21. Instrumento N.° 34, appenso ao Memoriale, l. cit fol. 197.
  22. Instrumento N.° 36, appenso ao Memoriale, l. cit. foi. 219 v.
  23. Excessus Inquisitorum Ulrixbon, no appendice ao requerimento feito pelos christãos-novos a elrei, de que adiante havemos de falar: Symm., vol 32 fol. 311.
  24. «quod quaecumque persona ibi cognoverit christianum novum, ostendat illum.»: Ibid. fol. 312. E' evidentemente uma exaggeração de phrase. Gil não podia exigir que lhe indicassem os christãos-novos para os prender, mas sim os christãos-novos suspeitos de judaismo. E’ provavel, todavia, que em muitas partes o fanatismo tornasse synonimas as duas expressões.
  25. Ibid.
  26. O documento que seguimos diz que Francisco Gil mulctava quem vinha a Algoso, e que lhe impunha a pena de desterro: é evidente que estas expressões são exaggeradas.
  27. Instrumento N.° 37, appenso ao Memoriale, l. cit. fol. 228 v. e segg. Este documento curioso resumimo-lo, omittindo algumas circumstancias que nos pareceram desnecessarias para o quadro geral da grande perseguição de 1540 a 1544.
  28. Excessus Inquisitorum Civitatis Lamacensis, l. cit. fol. 320 e segg.
  29. Instrumento N.° 39, l. cit. fol. 247 v.
  30. Sousa, Aphorismi Inquisitor. (De Orig. Inquisit.) p. 28.
  31. Carta do bispo de S. Thomé a elrei (sem data), G. 13. M. 8, N.° 6.
  32. Traduzimos por conjectura; a memoria dos christãos-novos que vamos seguindo chama-lhe praefectum carceris.
  33. Este paragrapho da exposição feita pelos christãos-novos a D. João iii em 1543 é assás curioso para não deixarmos de o transcrever aqui: «Praefatus episcopus, non advertens ad honestatem sui habitus et dignitatis, conferebat se multotiès in castellum et mandabat venire coram se mulieres conjugatas et personas honoratas, ac puellas erubescentes sivé timidas, et punebat se cum eis, ipsis renuentibus, ad aloquendum, dicendo illis: quod Deus illas augeret: Regina siquidem non habebat tot damiceilas et tam pulchras prout illic habebat: dicendo uni quod habebat bonos oculos, et aliis quod erant benò formatae. Et si aliqua earum inflrmabatur, ibat ad lectum, et contra illius voluntatem, assumebat illius brachium, dicendo illae quod volebat videre illius pulsum, subdens quod habebat brachia crassa, macra, aut carnosa prout ipse volebat, cum aliis rebus et facetiis mullum inhonestis, ex quo praefatae mulieres manebant multum verecundatae. Verum quia existebant sub illius dominio, non poterante aliud facere nisi suferre suas injurias quam honesté poterant, cúm illic non haberent cui conquerentur de hujusmodi rebus, et eandem quaerelam habent sui mariti quoniam existentes carcerati etc.» Excessus Inquisitor. Civit. Colimbriens., Symm., vol. 32, f. 346 v. Quanto aos precedentes §§ veja-se ahi f. 332 v. e segg.
  34. Excessus Inquisitor. in Oppido d'Aveiro, l.cit. fol. 348 v. e segg.
  35. Excessus Inquisitor. Civit. Colimb., l. cit. f. 339.
  36. Doc. da G. 2, M. 2, N.° 27, no Arch. Nac. «Oh piétá grande! che girano in volta per le contrade disperse 300 creature fanciulli senza governo ne albergo alcuno di persona vivente dando voei et gridando per lor padri et madri»: Ibid.
  37. Ibid.
  38. Annotationes Criminum et Excessum Inquisitor. per tolum Regnum, Symm., vol. 32, f. 267.
  39. Petitio Regi, na Symm., vol. 32, p. 278 v.
  40. Excessus Inquisitor. Civit. Colimbr. Ibid. f. 348.
  41. Nada, talvez, dê uma idéa mais clara do espirito de D. Fr. Ballhasar Limpo do que uma longa carta sua a D. João iii datada de Roma a 7 de novembro de 1547, que se acha na G. 2, M. 5, N.° 37, no Arch Nac. e que adiante havemos de aproveitar.
  42. Não é provavel, como se vé da narrativa, que a rua de S. Miguel no Porto uma das principaes, fosse a que actualmente tem este nome. Devia ser outra mais central, talvez, a rua dos Mercadores.
  43. Excessus Inquisitorum Civitatis Portugallensis: Symm., vol. 32, foi. 365 e segg.
  44. Ibid. passim.
  45. Excessus Inquisitorum in Civit. Elbor., Symm., vol. 32, f. 318. A narrativa refere-se quanto aos crimes, pelos quaes Pedro Alvares de Paredes fora expulso da Inquisição de Llerena, publicis instrumentis quae debent ostendi Nuntio Portugaliae insimul cum allegationibus eorum quae commisit postquam existit in regno.
  46. Ibid. pasim.
  47. Veja-se Sousa, De Origine Inquisit. §§ 2 e 4.
  48. Ácerca do segredo dos carceres è curiosa a defesa de João de Mello (G. 2, M. 1, N.° 21) em resposta a uma consulta feita por quatro christãos-novos por ordem d'elrei, que adiante havemos de aproveitar. Segundo o honrado inquisidor nada havia mais accessivel do que os carceres. O segredo só durava emquanto não começava o processo (que podia tardar annos) ou quando os réus andavam em perguntas, ou estavam em confissão, ou em outros casos semelhantes, ou para não receberem avisos de fóra, ou para elles os não darem a outrem. De resto podiam falar com quem lhes cumpria. Dir-se-hia que Beaumarchais, descrevendo espirituosamente no Figaro a liberdade de imprensa sob um governo absoluto, tivera por modelo esta singular allegação de João de Mello.
  49. «et quando ea via non possunt, ponunt eos ad torturam funis, et si cum illa non id efficiunt, incidunt sibi plantas pedum, et ungunt sibi cum butiro atque admovent igni»: Excessus Inquisitor. in Civitate Ulixbon., Symm, vol. 32, f. 289 v.
  50. «pro auxilio deducunt quendam Petrum Alvarez hominem quidem mendicantem, ebrium, contra quem fuit exceptum quod detegebat sua podenda, et incendebat cum illis patenlibus, ac permiserat pueris pro uno regali, quem sibi tradiderunt, ut ponerent sibi laqueum in illis et ducerent eum per stratam». Ibid. f. 294.
  51. Ibid. f. 295.
  52. Ibid. f. 207 e 366 v.
  53. «ponunt illas ad torturam, septem vel octo quolibet die; et unus dicit «oh quae facies judeae!» alius «oh qui oculi!» alter verò «ho qualia pectora et manus!» taliter quod supra prandium suscipiunt illud gaudium et solatium pro recreatione suae vitae»: Ibid. f. 297 v.
  54. Ibid f. 302.
  55. G. 2, M. 2, N.° 40, no Archivo Nacional. A carta é original e datada de Lisboa a 14 de outubro. Elrei, portanto, estava fóra da capital, provavelmente em Évora. De 15 de novembro de 1542 existe tambem uma carta original de D. João iii datada de Lisboa e dirigida ao infante D. Henrique, dando-lhe conta de um auto-de-fé que se acabava de celebrar. (Corpo Chronol. P. 1, M. 73, N.° 16 no Arch. Nac.) Na carta de João de Mello mencionase o supplicio da mulher e da filha de um mercador chamado mestre Thomaz, o que do Memorial dos christãos-novos, na Symmicta, se vê tinha sido anterior a 1544. Assim a carta de João de Mello é com probabilidade de 1542, sendo de crer que queixando-se elle do pejamento dos carceres em 14 de outubro, se fizesse outro auto-de-fé de ahi a um mez para os despejar e que elrei viesse assistir a elle. Além disso, João de Mello allude na carta aos autos-de-fé dos annos passados em que interviera, e elle só fora transferido para a Inquisição de Lisboa nos meiados de 1539. Em todo o caso a carta não pode ser posterior a 1543.
  56. «de nenhua cousa estou táo espantado como dar nosso senhor tanta paciencia em fraqueza humana, que vissem os filhos levar seus pais a queimar, e as mulheres seus maridos, e huns irmãos aos outros, e que não ouvesse pessoa que se fallasse nem chorasse nem fizesse nenhum outro movimento senão despedirem-se huns dos outros com suas benções, como que se partissem para tornar outro dia»: Carta de João de Mello, l. cit. O inquisidor esquecia-se do que anteriormente dissera que duvidava da contricção dos suppliciados. Aqui attribue a sua admiravel constancia á graça divina. A giria devota faz és vezes cahir, ainda os mais habituados, em erros de theologia.
  57. O paragrapho allusivo a um auto-de-fé que se encontra no Excessus Inquisitor. Civit. Ulissipon. (Symm., f. 366 v. e 367) refere-se evidentemente ao de 14 de outubro.
  58. Este argumento acha-se repetido em mais de a allegação dos christãos-novos, com maior ou menor perspicuidade. Como é de suppor, os defensores da Inquisição nas suas apologias ou o metteram no escuro, ou replicaram deploravelmente: nem outra cousa era possivel.
  59. Excessus Inquisitor. Civit. Ulissip. passim, l. cit., signanter, f. 300 e segg.
  60. Ibid. fol. 309-311.
  61. C. de B. de Faria a elrei de 12 de junho de 1544, G. 2, M, 5, N.° 43 no Arch. Nac. Existem breves de recommendação a favor do nuncio Ricci dirigidos aos infantes D. Luiz e D. Henrique datados de 27 de junho de 1544 no M. 36 de bullas N.° 75 e M. 37, N.° 53 no Arch. Nac. Uma copia em vulgar do breve de crença de João Ricci, bispo eleito sypontino, datado de 27 de junho de 1544, acha-se na Collecção de Sr. Moreira, Quad. 2 in fine.