LIVRO X



Ultimas resoluções do papa sobre o perdão dos christãos-novos e organisação definitiva do tribunal da fé, que Balthasar de Faria acceita ad referendum. Instrucção de Farnese ao nuncio Ricci ácerca da intelligencia daquellas resoluções e ácerca do preço da concessão. — Pouco satisfeito das restricções que ainda se lhe impunham, elrei, revalida a lei de 1535, prohibindo á gente da nação a saída do reino, e communica ao seu agente em Roma alterações que acceita. — Faria abstem-se de propor estas ultimas e insiste na concessão pura e simples. Motivos que para isso havia. — A corte de Roma resolve-se a enviar a Portugal o cavalleiro Ugolino com as bullas e breves redigidos na fórma das decisões tomadas. Instrucções secretas que elle recebe. — Mutuos receios das duas cortes. — Procedimento encontrado de Faria em Roma e de Ricci em Lisboa. — O bispo do Porto D. Fr. Balthasar Limpo em Italia. Intervenção deste no negocio do tribunal da fé. Temor que o prelado português incute pela audacia da sua linguagem. A curia cede gradualmente. — Partida de Ugolino para Lisboa. Diplomas pontificios trazidos por elle. A Inquisição é inslituida na sua fórma mais completa pela bulla de 16 de julho de 1547. — Termina-se a questão das rendas de D. Miguel da Silva, e a administração da diocese de Viseu é entregue a Farnese. — Calculo incompleto do que a Inquisição custou ao paiz. — Situação e procedimento do cardeal de Viseu. — Idéa rapida da ulterior historia da Inquisição. Testemunho insuspeito do bispo de Chisamo. Epilogo.

Tal era o estado a que as cousas tinham chegado nos primeiros mezes de 1547. O drama precipitava-se evidentemente para o desenlace. Em abril, os cardeaes encarregados de tractar aquelle difficil assumpo tomaram, emfim, um accordo, que Balthasar de Faria, cansado de longos debates, entendeu dever communicar a elrei como derradeira resolução do pontifice. Esta decisão satisfazia em grande parte ás ultimas proposições feitas por intervenção do nuncio. O perdão sería applicado aos réus convictos, que, confessando os seus erros, os abjurassem solemnemente, pelo que ficariam soltos e livres sem penitencia alguma. Não era, porém, uma amnistia completa, porque o delicto não esquecia de todo: novos actos de judaismo collocariam desde logo o réu perdoado na condição de relapso ou reincidente. Os que na conjunctura do perdão se achassem já nesta categoria seríam penitenciados a arbitrio dos inquisidores, não podendo, todavia, ser relaxados á curia secular; isto é, ficariam salvos da pena ultima, que em regra se impunha aos relapsos. Excluiam-se do beneficio do perdão: 1.°, todos os deliquentes que não fossem de raça hebréa; 2.°, todos os confitentes, contumazes no erro; 3.°, todos os que, julgados e sentenceiados já a penas temporarias, andassem cumprindo sentença. Tal sería, em substancia, a materia da bulla do perdão. Acompanhá-la-hia um breve, pelo qual se revogariam de golpe todos os que se haviam concedido a quaesquer individuos, ou para os exemptar de serem mettidos em processo, ou para os subtrahir á jurisdicção dos inquisidores, dando-lhes juizes apostolicos especiaes. Roma tinha havido, durante vinte annos, sommas avultadas pela venda desses breves; mas fazendo aquella especie de bancarrota de misericordia, ainda mostrava uns restos de boa consciencia: a revogação não se estendia aos breves concedidos aos procuradores que defendiam na corte pontificia a causa dos christãos-novos ou aos seus parentes que residiam em Portugal. Entretanto, a excepção não promettia demasiada segurança aos favorecidos. Uma carta, dirigida officialmente a elrei por Santafiore, em nome do papa, modificaria aquella excepção. O pontifice mantê-la-hia emquanto o exceptuado procedesse bem, e o exceptuado procederia bem emquanto elrei não representasse ao papa que procedia mal. Supposta semelhante queixa, o respectivo breve de exempção seria revogado. Finalmente, dirigir-se-hia a elrei outro breve, não preceptivo, para que fosse permittida durante um anno a saída do reino aos christãos-novos que delle quizessem ausentar-se, sem os prenderem ou metterem em processo emquanto durasse aquelle praso, e para que podessem levar o que possuiam, não sendo cousas cuja exportação fosse prohibida. Neste ponto, os agentes da raça votada ao exterminio tinham tirado do excesso do desalento energia para um derradeiro esforço. Tinham supplicado e clamado que se deixasse aos seus infelizes committentes ao menos a liberdade do desterro voluntario. Observavam que, de outro modo, o perdão sería perfeitamente illusorio; porque os perdoados poderiam ser presos, apenas soltos, ou por novas denuncias, ou por simples suspeições de recentes delictos, que, suppondo-se provados, os levariam immediatamente á fogueira como relapsos. Pediam, pois, que lhes fosse permittido fugir, não se procedendo contra elles durante um certo praso, sem o que tambem essa permissão sería inutil. Tão justificada parecera a supplica, que Paulo iii não se atrevera a desattendê-la inteiramente, e por isso se devia expedir aquelle breve. Mas, suppostos o animo impiacavel d’elrei e a inflexibilidade dos inquisidores, as disposições desse breve, privadas de caracter preceptivo, eram bem fragil garantia. Entretanto, como se isso não bastasse, as simples rogativas do papa ainda eram modificadas pelo mesmo meio por que se modificara a exempção dos procuradores dos christãoâ-novos em Roma. Santafiore escreveria outra carta a elrei em que se daria uma interpretação mais restricta ás sollicitações do pontifice. Deviam estas entender-se como só relativas aos suspeitos ou accusados de delictos occultos e não quanto áquelles cujos actos hereticos fossem publicos e notorios, contra os quaes se procederia, dando depois conta ao papa. Exigir-se-hia. além disso, da gente da nação uma fiança de quarenta a cincoenta mil ducados, pela qual se obrigassem em geral os christãos-novos a que nenhum dos que obtivessem a permissão de saír do reino se acolheria a terra de infiéis. O preço que dessa somma se havia de deduzir por cada contravenção, deixava o papa a elrei determiná-lo; mas a sua applicação havia de ser para as obras de S. Pedro em Roma. Era uma applicação que aplanava todas as difficuldades, e Faria chegara facilmente a esse accordo[1].

Ao passo que o agente português communicava a D. João iii o estado do negocio, Farnese communicava-o igualmente a Ricci, expondo-lhe os motivos e a significação das ultimas resoluções, e habilitando-o assim para satisfazer a quaesquer reparos e para obviar a interpretações menos exactas, que podessem falseiar as intenções do pontifice. O ponto que elle reputava, com razão, mais grave era o da liberdade que se pedia para os christãos-novos de saírem do reino por espaço de um anno, tomando-se as providencias para que esta concessão não fosse sophismada. A certeza, dizia o cardeal ministro, que sua sanctidade tinha de que elrei nunca impedira essa saída, conforme elle proprio affirmava, e por consequencia a esperança de que accederia facilmente a semelhante condição, fora um dos principaes motivos que o haviam movido a conceder a Inquisição em toda sua plenitude. Aquella providencia era da mais alta justiça, visto que cessavam todos os favores e exempções concedidos até ahi á gente hebréa, e que o tribunal da fé ía pesar sobre ella todo o seu rigor. A propria reputação do rei e dos inquisidores ganhava com tal concessão, porque, de outro modo, poder-se-hia dizer que os fins occultos de tanto zelo vinham a ser sómente despojar os christão-novos dos bens e da vida, e não manter o reino illeso de heresias. As intenções do papa e este respeito eram decisivas. O preferir-se a formula de as manifestar em breve separado, e em fórma de exhortação, fora só porque o agente português o exigira, como demonstração de confiança em elrei e com a promessa de que effectivamente se daria licença para saír do reino a quem quer que a pedisse, não se podendo recorrer a nenhum pretexto para a denegar, nem sequer ao de estar o individuo que a pretendesse indiciado já de heresia occulta. Assim, os que se ausentassem não fariam damno, e os que expontaneamente ficassem poderiam ser castigados, em passando o anno, se delinquissem, ou ainda dentro do anno, se perpetrassem algum delicto contra a fé publico e escandaloso. No ponto que particularmente lhe interessava, Farnese advertia o nuncio de que o papa conviera em o encarregar a elle cardeal-ministro da administração do bispado de Viseu e em provê-lo nos beneficios de D. Miguel da Silva, sobre o que íam ser expedidas as bullas e os mais despachos necessarios; mas prevenia-o de que sua sanctidade tinha applicado todos os fructos e rendas, até ahi sequestrados, á fabrica de S. Pedro, fazendo assim o gosto a elrei de não ir nem um ceitil parar ás mãos do cardeal da Silva, e de se dar a essas avultadas sommas uma applicação inteiramente pia, desprezada, aliás, a inaudita pretensão do religioso manarcha, que suspirava por ser quinhoeiro naquelles despojos opímos. Bastava o que bastava. Muito fizera sua sanctidade em não pugnar pelas immunidades ecclesiasticas, mantendo os direitos de D. Miguel da Silva. Fazia o sacrifício de ficar com tudo. Se elrei se mostrasse pertinaz em querer o seu quinhão, podia estar certo de que todo o negocio da Inquisição se transtornaria, o que sería pena, visto haverem chegado as cousas a termos tão plausiveis[2].

Não achou, porém, D. João iii esses termos tão vantajosos, quando soube do ultimo accordo. Se o papa não queria perder um real do preço do sangue dos christãos-novos e da vingança implacavel contra D. Miguel da Silva, tambem elle pela sua parte não estava muito inclinado a acceitar concessões incompletas e limitações que diminuíam o valor intrinseco do genero que comprava. A primeira resposta que deu ás communicações que se lhe faziam, por via tanto do nuncio como de Balthasar de Faria, foi revalidar por mais tres annos a lei de 1535, que prohibia a todos os christãos-novos a saída do reino sem expressa licença regia, ou sem darem fiança de quinhentos cruzados, pelo menos[3]. Mandou depois escrever para Roma uma carta severa ao seu agente por ter admittido naquella fórma a conclusão do negocio. Ahi, analysandose o perdão, mostravam-se os inconvenientes de se deixarem ir soltos e livres os que confessassem e abjurassem seus erros, sem serem doutrinados e penitenciados espiritualmente. Faziam-se altas queixas de que os que estavam já relapsos ficassem exemptos do castigo civil, o que nem no tempo de Clemente vii se fizera. Ponderava-se a necessidade que havia de se declarar que os presos, os suspeitos, e os que já estavam accusados em juizo deveriam abjurar tambem, vista a suspeição vehemente, e indicava-se a não menor necessidade de se ordenarem reconciliações secretas para os que se sentissem culpados, a fim de gosarem do perdão. Recordava-se a Balthasar de Faria que era com estas prevenções que se conviera em admittir aquelle perdão, quando o papa, tendo suspendido a auctoridade dos inquisidores, parecia inclinado a não ceder sem esse acto de clemencia. Taes haviam sido as instrucções que recebera naquella conjunctura e que não deveria ter esquecido. Repellia-se igualmente a idéa de não se haverem de syndicar durante um anno os crimes occultos de judaismo e de se dar conhecimento á curia romana dos processos por crimes publicos antes da sentença final. Estas dilações não faziam senão escandalisar o povo e annullar os salutares effeitos do castigo. Rejeitava-se, ainda com maior energia, a idéa do breve exhortatorio para se deixarem os christãos-novos saír livremente do reino durante um anno. Era materia que já se havia debatido largamente em Portugal numa juncta de theologos e jurisconsultos, os quaes haviam resolvido negativamente a questão. O arbítrio da fiança geral, no entender da corte de Lisboa, era cousa inexequivel, além de que nenhum proveito d’ahi vinha nem ao rei nem ao reino. Tudo, pois, quanto nas resoluções pontificias relativas ás ultimas propostas enviadas para Roma desdizia destas devia rejeitar-se, e quando, em ultimo caso, o papa recusasse formalmente mudar de resolução, ordenava-se a Balthasar de Faria que cedesse em tudo, menos em se conceder o anno de espera para a Inquisição proceder contra os delinquentes occultos. Supposto fazer-se uma excepção a favor dos procuradores dos christãos-novos e das suas familias na revogação geral dos breves de exempção, cumpria tambem que se declarassem especificadamente os nomes de todos os individuos a quem a excepção era applicavel, para que não succedesse aproveitarem-se muitos indevidamente dessa vantagem[4].

Das cartas tanto de Farnese para Ricci, como d’elrei para Faria, conhece-se evidentemente que a ultima esperança dos hebreus portugueses consistia em abandonarem a patria, num novo exodo, como o do Egypto, desenganados já de que não lhes restava outro meio de evitar a perseguição implacavel do Pharaoh christão. A resolução em que estavam não a escondiam, affirmando publicamente que nem um ficaria em Portugal[5], imprudencia grave, a que, talvez, os excitava o excesso da desesperação, ou o terem já noticia, provavelmente pelo nuncio, de que o papa, concedendo o estabelecimento definitivo da Inquisição, lhes facilitava a saída do reino. Na realidade, o breve que se referia a este assumpto, puramente exhortatorio, estava longe de ser na apparencia garantia sufficiente; mas da carta de Farnese a Ricci conhece-se que havia a intenção de se lhe dar um valor mais positivo. A idéa reservada que estava, digamos assim, atraz delle, como veremos em breve, faria com que Roma o mantivesse com mais energia do que se fosse preceptivo. Por outra parte, é evidente que D. João iii receiava não ter meios para obstar á fuga dos conversos. Numa epocha em que era cem vezes mais facil do que hoje esquivar-se o individuo á vigilancia da auctoridade e em que a policia interna e a dos portos maritimos e fronteiras quasi que não existia, nem sempre sería facil obstar á saída occulta de individuos dispostos a tentar tudo para salvarem as vidas. A diffieuldade, porém, subiria de ponto, se durante um anno ficassem reduzidos á inacção os olhos perspicazes dos inquisidores e as firmes garras dos seus agentes. Na verdade, a lei de 15 de julho, que renovava por tres annos a de 1535 sobre a saída do reino dos hebreus convertidos, declarava crime a fuga occulta; mas nem num paiz profundamente corrompido se devia contar demasiado com a incorruptibilidade dos magistrados e officiaes publicos, nem a lei serviria de nada para os que podessem e quizessem perder a fiança de quinhentos cruzados, mediante a qual, todos os hebreus um pouco abastados poderiam abandonar o reino com pretextos commerciaes. A longa lucta que se havia sustentado, a victoria que-se podia dizer estava alcançada, o preço por que se tinha obtido, tudo ficava em grande parte inutilisado. Sem victimas, sem carceres atulhados, sem autos de fé, a Inquisição era uma puerilidade. A phrase energica dos cardeaes ácerca dos desejos dos inquisidores portugueses era uma terrivel verdade: queriam carne. As riquezas dos hebreus podiam locupletar os ministros e agentes do tribunal ou os cofres regios, pelos sequestros e confiscos dos bens dos que se ausentassem, mas aos echos das masmorras falleceriam os gemidos, ás fogueiras o alimento, aos odios profundos o espectaculo de variadas agonias, á hypocrisia os mais favoraveis ensejos para simular zelo religioso. Em tudo se podia ceder, menos em consentir a livre saída dos christãos-novos, concedendo para isso, depois do perdão, o longo praso de um anno, em que a Inquisição ficaria inerte. Nesta condição estava principalmente o veneno. Sem ella, era facil illudir o indulto: com ella tudo ficava perdido. Por certo, pertencia exclusivamente ao rei manter a prohibição da saída do reino aos christãos-novos, mas tambem pertencia exclusivamente ao papa, estabelecendo a Inquisição com a maior latitude, prohibir que ella funccionasse por certo período. Nesta parte, pois, estava a difficuldade. No fim da carta a Balthasar de Faria indicava-se-lhe, dada a hypothese de se conservar firme o papa em todas as condições que estabelecera, o ultimo meio a que devia recorrer. Referiase-lhe, em substancia, o que resultara da consulta dos quatro conversos, da qual anteriormente démos particularisada noticia. Elrei estava resolvido a annuir em parte a essa consulta, mantendo por mais dez annos a exempção dos confiscos e tolerando que se estatuisse preceptivamente a revelação dos nomes dos delatores e das testemunhas de accusação aos réus não poderosos. Convinha igualmente em que se admittisse a reconciliação dos relaxados ao braço secular, não depois de entregues aos magistrados civis, como os consultores propunham, mas antes daquelle acto. Supposto este accordo, nem o papa devia extranhar que elle tivesse revalidado a lei de 1535, nem insistir nas suas resoluções. Propunha aquellas vantagens para os conversos como compensação, uma vez que fossem supprimidas as condições respectivas destinadas a embaraçar a livre acção do tribunal da fé. Era a ultima concessão que estava resolvido a fazer ao pontifice[6].

Esta concessão, porém, era um erro politico em tal conjunctura. Não só desvendava os intuitos dos inquisidores, o preferirem a tudo não deixar escapar as victimas, justificando os que em Roma os accusavam de devoradores de carne humana, mas tambem provava que a firmeza que até ahi se ostentara não era tão inteira e incontrastavel como a linguagem adoptada recentemente pela corte de Lisboa parecia indicá-lo. Balthasar de Faria, tantas vezes taxado de falta de perseverança, mostrou nesta conjunctura mais tacto que os acérrimos fautores da Inquisição. Dissimulou as instrucções que recebera e continuou a insistir na manutenção das bases que aceitara, escrevendo a elrei para o persuadir de quanto eram inconvenientes as novas propostas. Ajudava-o a manter na sua persistencia um passo imprudente que dera a curia romana. Segundo parece, os agentes dos hebreus portugueses tinham obtido um salvo-conducto geral para estes serem admittidos nos estados da igreja[7]. Descuberta a existencia deste diploma secreto, Faria queixou-se altamente, não só da concessão, mas tambem da fórma della, porque os fundamentos do breve eram injuriosos para o governo português. Fossem quaes fossem os motivos pelos quaes aquelle diploma se redigira na chancellaria romana, occorreu desde logo o pensamento de que o salvo-conducto e a insistencia para que se permittisse a livre saída dos christãos-novos durante um anno tinha mutua correlação. Assim, a questão tomava outra face, e as bases de um accordo que elle acceitara e a favor das quaes insistira com o seu governo, tornavam-se inacceitaveis. Sem o descubrimento do salvo-conducto, e prevalecendo a resolução do papa sobre a faculdade da expatriação para a gente da raça hebréa, D. João iii, que comprara por tão alto preço a Inquisição na sua mais completa fórma. teria feito uma acquisição quasi inutil e ficaria, a bem dizer, burlado em tudo, menos na vingança contra o velho cardeal da Silva, que Farnese atirava rindo ás garras do tigre coroado. Dir-se-hia que Roma adoptava, em conjunctura infinitamente mais opportuna, a politica que noutro logar vimos ter adoptado Carlos v, e da qual era seu instrumento na corte do cunhado o infante D. Luiz[8]. Offerecendo um asylo aos hebreus fugitivos, o governo pontificio achava mais um meio de se locupletar com os despojos de Portugal. A existencia da Inquisição romana não obstava a que fossem tolerados nos dominios da igreja os que faziam profissão publica de judaísmo, e os hebreus portugueses que ainda guardassem intacta no coração a crença de seus paes alcançariam na Italia a liberdade e a segurança que não encontravam na patria, levando para alli todos os cabedaes que podessem salvar.

Faria mostrara-se altamente escandalisado com aquelle acto de evidente dobrez e enchera Roma dos seus clamores, tanto contra um procedimento que denunciava intenções reservadas, como por causa das expressões inconvenientes do breve. Não houve remedio senão applacá-lo para salvar, quando mais não losse, as apparencias de desinteresse. Proposeram-lhe que de tres partidos se escolhesse um: ou que mandasse elrei ao papa um alvará secreto em que concedesse por mais dez annos a suspensão dos confiscos, mantendo a prohibição da saída dos hebreus; ou que se permittisse esta, tomando-se as precauções que se julgassem convenientes para que não se acolhessem a terras de infiéis, e ficando para o fisco os proventos das penas impostas aos infractores; ou, finalmente, que se deixassem saír, tirando-lhes os filhos. O agente português conhecia, porém, que a minima hesitação lhe faria perder a vantajosa situação que a imprudencia ou a corrupção da chancellaria apostolica lhe proporcionara, e todos os tres arbitrios foram formalmente rejeitados. Faria não tinha outra resposta senão que, deixando-se tudo á clemencia delrei, elle saberia ser amplamente generoso, mas que impor-lhe a generosidade era cousa que não se podia acceitar[9].

A’ vista desta inflexibilidade, a curia romana desauctorisada pelo seu procedimento duplice, que o agente português não se esquecia nunca de lhe recordar, resolveu-se a expedir um commissario que trouxesse a Portugal as bullas defiinitivas da Inquisição e do perdão, e os mais diplomas e cartas, que, segundo anteriormente vimos, deviam completar ou modificar as disposições daquellas bullas. Era uma especie de appelação que se fazia do agente diplomatico para o soberano. O cavalleiro Ugolino, sobrinho do fallecido cardeal Santiquatro, foi escolhido por mensageiro daquelles despachos. Posto que, na apparencia, o papa insistisse nas suas ultimas resoluções, a realidade era que Ugolino trazia instrucções secretas para fechar os olhos, presupposto o caso de elrei não attender ás restricções que se lhe impunham ou ás concessões que se lhe pediam nas cartas que acompanhavam as bullas. Communicando a D. João iii esta circumstancia, que occultamente lhe havia sido revelada por Santafiore e pelo proprio Ugolino, Balthasar de Faria lembrava que sería prudente, no que tocava á prohibição da saída dos hebreus, não fazer demasiado ruído com a repulsa, ruído em que Paulo iii veria uma intenção de acinte e menoscabo. Devia elrei contentar-se com a promulgação da lei de 15 de julho e com empregar a maxima vigilancia para que os christãos-novos não podessem fugir. Ugolino trazia um breve em que auctorisava a apprehensão dos bens da quelles que tentassem acolher-se a terras de infiéis. Com este breve podia-se fazer tudo, e até obrigar a voltarem muitos dos que andavam ausentes. De resto, Faria aconselhava que elrei fizesse espontaneamente e como pura mercê as concessões que, como transacção, se lhe haviam mandado fazer a elle. Desvantajosas a esta luz, desde que se tornassem voluntarias não só serviriam para aquietar os christãos-novos, mas tambem conciliariam a estima publica ao soberano, que assim se mostrava indulgente[10].

Nas questões politicas entre dous governos, a pertinacia das mutuas pretensões, e não raro as exaggerações de amor proprio, suscitam a cada passo incidentes que augmentam as difficuldades com que os negociadores têem de luctar e demoram o accordo, ás vezes pouco difficil, na materia essencial. Naquella conjunctura, porém, o incidente que veio pôr novos estorvos a um negocio que parecia terminado nasceu de uma causa singular; a mesma de que Faria tirara vantagens para obter um resultado com que elle proprio não contava inteiramente. Esta causa era o medo. A curia romana, colhida numa deslealdade, e presa pela transacção feita entre o rei de Portugal e o papa em beneficio de Farnese, resolvera sacrificar completamente os malfadados hebreus. Enviando os breves e cartas destinados a protegê-los no primeiro impeto da perseguição, mas recommendando ao mesmo tempo ao seu agente que não curasse de saber se o rei fazia ou não caso delles, cria salvar as apparencias e desonerar-se da propria responsabilidade moral, deixando-a a D. João iii. Importava-lhe pouco o julgamento d’Aquelle que vê nu o coração do homem. Corrompida e mundana, bastava-lhe que o mundo a absolvesse. O essencial era não arriscar uma tão excellente veniaga. Se, porém, havia temores em Roma, tambem em Portugal não faltavam entre os fautores implacaveis da Inquisição. Vimos já porque. Eram esses temores que tinham inspirado as ultimas instrucções a Balthasar de Faria, o qual, mais experiente e mais desassombrado, lhes medira o alcance e soubera evitar as suas consequencias. Mas o medo não fora em Lisboa corrigido pela cordura de alguém, como o tinha sido em Roma. O nuncio não sómente descubrira que se trepidava; obtivera, até, que se lhe communicassem as novas concessões que elrei estava resolvido a fazer em tudo, comtanto que se abandonasse a ídéa de facilitar, pela immunidade temporaria, a fuga dos christãos-novos momentaneamente libertados. E’ facil de conjecturar se Ricci se apressaria a transmittir para Roma o que se sabia ácerca do sobresalto em que ficara a corte fradesca de D. João iii[11]. Os effeitos das communicações do nuncio experimentou-os desde logo Faria. No dia seguinte áquelle em que chegou um estafeta com as cartas de Montepoliziano devia o cavalleiro Ugolino partir para Portugal; mas suspendeu-se immediatamente a sua partida, visto que elrei vacillara. Não se enganava o nuncio, asseverando que o excesso da inflexibilidade, com que se buscava fosse resolvido a final o negocio dos christãos-novos, provinha unicamente de Balthasar de Faria, que ultrapassara as suas ultimas instrucções. Deu-se então a entender ao agente português que o papa sabía tudo, e que attenta a sua pertinacia, em vez de se tractar com elle a conclusão do negocio, seria Ricci incumbido de o terminar em Lisboa. Tinha Faria prevenido já elrei, e por isso dissimulou, mantendo-se firme nas suas ultimas declarações. Os factos subsequentes vieram ainda uma vez provar que a energia e a firmeza são as armas de mais fina tempera para domar as pretensões ou desbaratar as astucias da curia romana[12].

Achava-se então em Roma um personagem que o leitor conhece já de sobejo. Era o bispo do Porto, D. Fr. Balthasar Limpo. Tinha elle passado á Italia para assistir ao concilio, que então se continuava em Bolonha, depois de celebradas algumas sessões em Trento. No meio da corrupção geral, o caracter austero e o genio violento do prelado portuense faziam-no temer na curia. O inquisidor Fr. Jorge de Sanctiago, que igualmente fora enviado a Trento como theologo de D. João iii e que se achava casualmente na corte pontificia quando as cartas de Ricci vieram complicar o negocio da Inquisição, dirigiu-se a Bolonha e, pintando a D. Fr. Balthasar os novos obstaculos que o demonio parecia suscitar á final conclusão de um negocio em que ambos tão vivamente se empenhavam, ponderou-lhe quanto sería conveniente que elle corresse a auxiliar os esforços do agente de elrei para se obter prompto e favoravel desenlace. Estavam suspensos os trabalhos conciliares por disputas entre o papa e o imperador Carlos v, que protestava contra a mudança do concilio de Trento para aquella cidade. O bispo do Porto partiu, portanto, para Roma, onde, aliás, tambem o chamava o desejo de dizer duas verdades ao papa sobre as intrigas que se agitavam na assembléa de Bolonha[13]. Que idéa se fazia em Roma do pensar do bispo do Porto e do seu caracter, vimo-lo já noutra parte. No que essa appreciação parece ter sido menos exacta é no que dizia respeito á sua pouca ousadia. Se, como tambem vimos, recuava, e até se humilhava diante do perigo, quando os excessos do seu genio arrebatado encontravam resistencia e o collocavam numa situação difficultosa, onde e quando o perigo material não existia, e elle sinceramente acreditava ter razão, D. Fr. Balthasar Limpo, longe de ser timido, era dotado de illimitada audacia. A liberdade da sua linguagem, a severidade com que revocava os discolos ao sentimento do dever, tinham-lhe dado certa importancia entre os padres do concilio, o que talvez o illudia sobre a extensão da propia capacidade. O primeiro encontro com o papa foi tempestuoso, apesar das demonstrações de affecto com que o recebeu Paulo iii, empenhado em conciliar os ânimos dos prelados estrangeiros no meio das suas discordias com Carlos v sobre o logar onde se deviam celebrar as sessões do concilio. O prelado portuense, antes de entrar no assumpto especial que o trouxera a Roma, falou asperamente ao pontifice nos negocios geraes da igreja. Humilhando-o primeiro num terreno em que toda a vantagem era sua, tirava d’ahi força moral para vencer as resistencias nas menos justificadas pretensões ácerca da Inquisição. Entendia elle, e era o que teria aconselhado, se, quando se tractava da celebração do concilio, estivesse em Roma, que este devia ter sido convocado só para ventilar e resolver as questões de doutrina e condemnar as heresias que pullulavam na Europa, mas que a reforma disciplinar devia partir do papa e unicamente do papa. Quanto ao dogma, confiava no concilio: quanto á reforma disciplinar, não. «O remedio da igreja, dizia o bispo, está em evacuar os maus humores». Era preciso que o clero voltasse aos canones apostolicos e aos conselhos dos sanctos-padres. Sem isso, o christianismo perder-se-hia quasi irremediavelmente. Aconselhava ao papa que se mostrasse grato a Deus pelos bens terrenos que lhe concedera, ao menos agora que tão poucos dias de vida lhe restavam, e que reformasse os costumes da igreja; porque Deus lhe retribuiria conforme as suas obras. Lembrava-lhe que, se não o fizesse, talvez experimentasse a vingança divina nos proprios interesses temporaes. Era inevitavel acudir á igreja. Se elle papa ou o seu successor o não fizessem, fá-lo-hiam os príncipes seculares: se o não fizessem estes, fá-lo-hia Deus. Rogava a sua sanctidade que interviesse com firmeza neste assumpto, recordando-se da gloria que tinha cabido a Innocencio iii pelo que fizera por occasião do terceiro concilio lateranense, e da infamia que recahira sobre o procedimento de Leão x na conjunctura de um novo concilio geral de Latrão. O estado da igreja era intoleravel, e a reforma devia começar pela curia romana, que era origem das desordens de toda a christandade. De que serviam as reformações do concilio, se elle papa não lhe dera faculdade para as fazer em Roma? E ainda pelo que tocava ás outras igrejas, assevera, como testemunha ocular, que não havia no concilio dez bispos que quizessem essas reformas. Nada esperava daquella assembléa de prelados e theologos, nem cria que d’alli viesse remedio para acabarem as heresias; porque não era possivel chamar ao gremio catholico os dissidentes emquanto elles contemplassem o espectaculo que lhes estava dando a igreja[14]. Na materia da Inquisição portuguesa, objecto principal da sua vinda a Roma, Fr. Balthasar Limpo repetia todos os logares communs que se reproduziam havia dez annos por parte da corte de Portugal; mas chegou, finalmente, ao assumpto capital da questão pendente, aos destinos do breve destinado a facilitar a saída do reino aos judeus portugueses. Affeiou em especial ao papa o acolhimento que estes achavam nos estados pontificios. Saíam, ás claras e occultas, de Portugal, com o nome e caracter de christãos, trazendo comsigo seus filhos, para os quaes tinham acceitado voluntariamente o baptismo. Chegavam a Italia, declaravam-se judeus e circumcidavam publicamente aquelles innocentes. Fazia-se isto, a bem dizer, perante o papa e o concilio, ás portas de Bolonha e de Roma; fazia-se, porque sua sanctidade lhes dera um privilegio para ninguem os poder inquietar em Ancona por motivos de religião. Em tal estado de cousas era impossivel querer elle que elrei lhes permittisse a livre saída do reino, para virem declarar-se judeus nas terras da igreja, só porque a corte de Roma ganhava com isso. Longe, pois, de empecer a Inquisição portuguesa, sua sanctidade deveria generalisá-la nos proprios dominios. Aconselhava isto em nome da religião: exigia aquillo em nome do seu soberano, e em recompensa dos serviços que ao christianismo tinha feito e estava fazendo o reino de Portugal[15].

A eloquencia de D. Fr. Balthasar não parece ter attrahido a attenção do pontifice, na segunda parte do seu discurso, do mesmo modo que a despertara nas questões geraes da igreja. Tinha ouvido tantas vezes repetir aquelles logares communs em abono da Inquisição, que os olhos se lhe cerravam somnolentos no meio do enthusiasmo do antigo carmelita. Se este, porém, se calava, o papa, até ahi embalado por aquelle som monotono, despertava com o silencio e dizia-lhe que continuasse [16]. Mal podendo resistir, por fim, ao somno, Paulo iii ergueu-se e começou a passeiar pelo aposento. Redobrava o zelo do prelado. Faria estava presente, e é crivei que forcejasse tambem por excitar o animo dormente do velho e aborrido pontifice. Emfim, este despediu-os com expressões corteses e com vagas promessas ácerca da Inquisição, recommendando ao bispo que repetisse o que lhe dissera sobre a reformação do clero aos cardeaes seus netos e que se recolhesse a Bolonha, confiando na sua sollicitude pelo bem da igreja universal[17].

Mas nem o prelado do Porto, nem Balthasar de Faria eram homens que se embalassem com vans palavras. O bispo não tardou a descubrir que, imbuido pelo cardeal De Crescentiis, o papa queria manter em grande parte o que resolvera ácerca dos hebreus portugueses, acaso porque as ultimas informações do nuncio lhe faziam esperar que elrei se resignasse a acceitar essas resoluções. Occultavam, porém, a Faria o proposito do papa , o que indicava que não era uma simples astucia a insinuação que lhe haviam feito de que prefeririam negociar por intervenção do nuncio, se elle não descesse da sua pertinacia. D. Frei Balthasar dirigiu-se de novo ao Vaticano. Exigia do pontifice uma solução precisa, sem o que não voltaria a Bolonha. Era tão positiva a linguagem do carmelita, que Paulo iii teve de dar clara e terminante resposta. Foi esta que estava resolvido a conceder tanto quanto elrei quizesse, uma vez que se não negasse aos christãos-novos a liberdade de saírem do reino, só limitada pela promessa de não se acolherem a terra de infiéis, de que dariam fiança. O despeito do prelado suggeriu-lhe então phrases que, de certo, não peccavam por excesso de brandura. Aquella condição de darem fiança, querendo saír do reino, era uma burla. Que monta, dizia elle, irem para terras de infiéis ou para Italia! Vem circumcidar-se a Ancona, a Ferrara ou a Veneza, e d’aqui passam para a Turquia. Têem privilegio pontifício para ninguem lhes perguntar se porventura são judeus: não trazem sequer signaes que os distingam, e vão livremente celebrar o seu culto nas synagogas. Ponderava quão grande numero delles as frequentavam, uns baptisados em Portugal na infancia, outros condemnados á pena ultima e queimados em estatua por judaisarem. Com a liberdade que se lhes queria dar, todos os christãos-novos portugueses poderiam ser judeus á sua vontade, sem um só pôr pé em terra de infiéis. Nunca, porém, elrei acceitaria tal situação; nem haveria theologo, ou sequer simples christão, que para isso o aconselhasse. Em vez de tentar pôr a salvo os judeus portugueses, o papa devia multiplicar as Inquisições nos seus estados, e punir não só os herejes lutheranos que os inficionavam, mas tambem os réus de judaísmo que se acolhiam á Italia[18].

Provavelmente no meio do seu discurso o intolerante prelado deixara transparecer alguma allusão ao preço por que elrei comprara as complacencias que exigia do papa. Este, pelo menos, respondendo ao bispo, confessou os favores que ultimamente recebera do monarcha nas mercês feitas a Farnese e a Santafiore, que de facto estava exercendo o pingue cargo de protector de Portugal; mas limitou-se a dizer-lhe que tractasse o negocio com De Crescentiis, dando a entender que tudo se faria como elle sollicitava. De feito, ajudado por Farnese e por Balthasar de Faria, o bispo chegou a obter do cardeal De Crescentiis que cedesse na questão capital da livre saída dos christãos-novos. Se acreditassemos Faria, o prelado portuense mostrou-se então inclinado a admittir que, assentado este ponto, fossem os crimes de heresia processados segundo as regras de direito commum, e não conforme os estylos e formulas especiaes da Inquisição. A sua ignorancia nas materias juridicas, de que dera tantos documentos como inquisidor, não lhe deixava alcançar as consequencias de semelhante concessão. No entender do agente ordinario, isso equivaleria a renovar todos os anteriores debates. Convenceu-se D. Fr. Balthasar, e ambos accordes continuaram em manter as suas pretensões absolutas. A pertinacia dos dous triumphou a final: successivamente foram supprimidas todas as limitações ao amplo exercicio do poder concedido aos inquisidores. Teriam plena faculdade para prenderem os christãos-novos logo depois de perdoados, e de os processarem em conformidade do absurdo systema dos tribunaes da fé, ao passo que a auctoridade civil poderia pôr quaesquer obstaculos á sua saída do reino, convertendo-se assim numa graça illusoria a bulla do perdão. As unicas restricções que deviam manter-se consistiam na suspensão dos confiscos por mais dez annos, e em não serem relaxados ao braço secular por um anno os réus de crime capital. Estas duas concessões eram, porém, daquellas que elrei espontaneamente admittira entre as que lhe haviam sido suggeridas na consulta dos quatro conversos[19].

Das correspondencias do bispo do Porto e do agente ordinario vê-se que ambos elles buscavam attribuir-se a principal gloria do feliz desenlace daquelle espinhoso e tão disputado negocio, sem, todavia deixarem de elogiar-se mutuamente pelo seu zelo. A verdade é que, embora a longa experiencia e os conhecimentos juridicos tornassem Balthasar de Faria mais habil negociador, o genio impetuoso, a austeridade fanatica e a situação especial do antigo carmelita foram que romperam por uma vez a rede das astucias romanas. No estado vacillante em que se achavam as cousas do concilio, o que sobretudo o papa não queria era que D. Fr. Balthasar se retirasse para Bolonha descontente delle[20]. Forçava-o isso a ceder ás suas vivas, ou antes rudes instancias, ácerca da Inquisição portuguesa. Mas acima disso estava uma consideração de maior momento. O bispo, que parece ter-se limitado nos seus debates com o papa a allusões indirectas sobre o preço por elrei pagara as concessões que pedia, foi um pouco mais explicito com o cardeal De Crescentiis e com o cavalleiro Ugolino, fazendo-lhes perceber que o negocio de Farnese não chegaria jámais a conclusão definitiva emquanto a ella não chegasse igualmente o assumpto da Inquisição. Para resistir a um argumento tão peremptorio não havia arma que valesse no arsenal das subtilezas de Roma[21]. Assim se immergia no horisonte a ultima luz de esperança dos desditosos hebreus. Noticiando a elrei a próoxima partida de Ugolino e a feliz solução do negocio, Faria inculcava com arte a conveniencia da moderação. Mostrava quão pouco valiam certas particularidades da bulla de perdão a que em Lisboa se dava grande importancia, e sobre que se haviam feito recommendações pueris: talvez eram o não se terem auctorisado os inquisidores para darem penitencias espirituaes aos que pela bulla ficavam perdoados, o eximir os relapsos de serem entregues, por aquella vez, á curia secular, e não se mandarem abjurar os vehemente suspeitos, nem fazer reconciliações secretas a quaesquer outras pessoas que quizessem aproveitar-se do beneficio do perdão geral. Tudo isso importava pouquissimo, visto que, relapsos ou não relapsos, processados ou não processados, suspeitos ou não suspeitos, todos ficavam, passada a van cerimonia do perdão, sujeitos á ilimitada auctoridade dos inquisidores, sem appelação, sem garantias, sem a esperança sequer de poderem declinar o foro do tribunal da fé, obtendo juizes apostolicos. A batalha estava completamente ganha desde que se decidira que as victimas não saíssem do reino, e que os algozes podessem exercer livre, plena e immediatamente seu officio. O agente advertia elrei dos inconvenientes que poderia trazer insistir-se em bagatellas e em vans subtilezas, quando tudo quanto era essencial se tinha amplamente obtido, sem exceptuar a remoção do nuncio Montepoliziano que se mostrara tão parcial dos christãos-novos, e que o papa promettia substituir[22].

Ao passo que D. Fr. Balthasar partia para Bolonha, saía de Roma para Lisboa, pelos fins de novembro[23], o cavalleiro João Ugolino com a bulla definitiva da Inquisição e mais diplomas concernentes a este objecto. Trazia igualmente poderes para convir no modo practico de se realisar a translação das rendas do bispado de Viseu e dos mais benefícios de D. Miguel da Silva para o antigo protector do infeliz prelado. Antes de partir João Ugolino recebeu do cardeal-ministro largas instrucções, tanto sobre um como sobre outro assumpto. Dividiam-se os diplomas pontificios relativos ao negocio dos christãos-novos em duas categorias: uma dos que lhes eram, ou antes simulavam ser favoraveis: outra dos que se referiam ao estabelecimento definitivo do tribunal da fé. Eram os primeiros, além da bulla de perdão, um breve eximindo do confisco por dez annos os criminosos sentenceiados; outro suspendendo por um anno a entrega ao braço secular dos réus de crime capital; outro, emfim, dirigido a elrei para interpor a sua paternal sollicitude, a fim de que a Inquisição procedesse com brandura[24]. Explicava-se, porém, nas ínstrucções a interpretação, na verdade demasiado lata, que o papa queria se désse áquella vaga recommendação de benevolencia. Tanto o commissario como o nuncio deviam insistir com elrei para que acceitasse essa interpretação. Era, sob a forma exhortatoria, quasi o mesmo que anteriormente se exigira como condição forçada. O papa desejava ardentemente que se não prendessem durante o primeiro anno os réus de crimes occultos. Ficava-lhe assim, a elle pontifice, alliviada a consciencia do remorso de ter submettido a raça hebréa a todos os rigores da Inquisição, ao passo que elrei tiraria dessa inesperada indulgencia grandes vantagens materiaes. Desejava tambem o papa que por algum tempo não usassem os inquisidores das faculdades da nova bulla em toda a sua plenitude, ou mais claro, que se procedesse nos crimes de heresia como se estatuira na bulla de 1536, conforme as regras do processo civil para os crimes communs. Na bulla de perdão estabelecia-se que os convictos e confitentes fizessem abjuração publica, e todavia desejava sua sanctidade que só abjurassem perante um notario e algumas testemunhas, em vez de servirem de espectaculo ao povo num cadafalso[25]. Os diplomas relativos ao tribunal da fé eram a nova bulla organica, outra por que se annullavam e cassavam todas as exempções, e um breve dirigido a elrei que devia servir de carta de crença ao cavalleiro Ugolino. Todos estes documentos, ignoramos porque, vinham com antedata[26]. Na bulla organica, destinada a substituir a de 23 de maio de 1536, depois de um preambulo, onde se epitomava a historia das phases por que até ahi passara a Inquisição portuguesa desde a sua primeira fundação, alludia-se ao perdão geral que se acabava de conceder aos até então culpados do crime de heresia. Depois desta prova de indulgencia, o pontifice estava resolvido a proceder severamente. Para isso, abrogando a bulla de 1536, avocava a si todos os poderes conferidos por ella ou della derivados, dando-os de novo ao infante cardeal D. Henrique e aos inquisidores seus delegados. Supprimia todas as modificações e limitações até ahi impostas á Inquisição de Portugal e cassava sem excepção a auctoridade concedida a qualquer delegado apostolico para conhecer de tal ou tal delicto contra a religião. A Inquisição, assim constituida, procederia em conformidade da jurisprudencia que geralmente regulava aquella instituição, e os inquisidores usariam de toda a jurisdicção, preeminencias e prerogativas que por direito, uso e costume pertenciam aos individuos revestidos de semelhante dignidade, continuando e terminando todos os processos de heresia, sem exceptuar sequer os avocados á curia pontificia. Concluia declarando irrito e nullo tudo quanto podesse contrariar as amplissimas disposiçães daquella bulla[27]. Todavia, o proprio papa a limitara noutra bulla (que se fingia preceder aquella) destinada á revogação expressa dos breves de exempção, singulares ou collectivos, passados a favor da raça hebréa, mas em que se declaravam exemptos da jurisdicção do Sancto-Officio os procuradores e agentes dos christãos-novos que estavam ou tinham estado em Roma tractando dos negocios communs e os individuos pertencentes ás familias dos mesmos procuradores e agentes[28].

No breve dirigido a elrei em que se annunciava a expedição das precedentes bullas, e que era como a carta de crença do cavalleiro Ugolino, resumia-se a materia dellas, manifestando ahi o papa os seus desejos e as suas esperanças de que a Inquisição, revestida de tão illimitados poderes, procedesse com a maior moderação. Esse breve era, porém, ao mesmo tempo um triste documento de impudencia. Sobre o que elle mais se dilatava era ácerca da questão das rendas da mitra de Viseu e dos beneficios de que fora espoliado D. Miguel da Silva. Como dissemos, João Ugolino vinha auctorisado para reduzir a effeito aquelle ignobil contracto, e não houvera sequer o pudor de annunciar isto num diploma diverso. Conforme a opinião dos membros do sacro collegio, os inquisidores queriam carne humana: a curia subministrava-lh’a; mas na carta de aviso certificava aos compradores que tinham de pagar á vista o preço da mercadoria[29].

Para sermos justos cumpre, todavia, confessar que se Roma levava a tal ponto as precauções commerciaes manifestava tambem os instinctos dessa generosidade honesta que para o negociante é uma parte do seu capital. Nas instrucções a Ugolino, Farnese prohibia-lhe, não só a elle, como tambem ao nuncio e a qualquer ministro da nunciatura, que recebessem dos pobres christãos-novos cousa alguma, ou como dadiva, ou por outro qualquer titulo[30]. Como se a bulla do perdão fosse mais do que uma burla, o neto de Paulo iii advertia o agente pontificio de que seu avô não quizera que em Roma se levasse aos interessados nem um ceitil por aquella mercê, quando, noutra conjunctura, sería graça essa para render bem vinte mil ducados ao pae commum dos fiéis[31].

A lucta estava concluída. A Inquisição, na plenitude do seu terrivel poder, ía emfim apresentar-se rodeiada de instrumentos de martyrio sobre um throno de cadaveres. Podia fartar-se de carne humana, por nos servirmos do estylo pinturesco dos mesmos que lhe subministravam este repugnante alimento. A chegada de Ugolino a Lisboa e a publicação dos depachos que trazia eram a apotheose da intolerancia. E todavia D. João iii e a sua corte fradesca não ficaram ainda plenamente satisfeitos. Avisando o seu agente em Roma da chegada do commissario pontificio, elrei declarava ter acceitado sem reserva as ultimas resoluções do papa; mas advertia que, se não fosse o desejo de pôr termo a tão longa contenda, haveria ainda que replicar ácerca do perdão, embora fosse o pontifice, e não elle, quem teria de dar contas a Deus do excesso de indulgencia com que os christãos-novos eram tractados. Assim, o monarcha deplorava ainda esse transitorio allivio que se concedia aos seus subditos de raça hebréa e que se reduzia quasi unicamente a ficarem exemptos por um anno de serem relaxados ao braço secular, e de expirarem nas fogueiras os que nesse praso fossem sentenceiados por delidos de judaismo[32]. Das cousas, porém, que por parte do papa se insinuavam, não como preconceito, mas como conselho, nenhuma era admittida. Só num ponto se consentia uma leve modificação. As abjurações dos réus que se íam pôr em liberdade, as quaes o papa desejava se fizessem sem estrondo e unicamente perante um notario e poucas testemunhas, seríam feitas á porta da igreja do Hospital, situada em frente da praça mais frequentada de Lisboa, em vez de o serem num cadafalso publico para isso expressamente levantado. A indulgência regia reduzia-se, pois, a poupar as despezas da construcção de um tablado[33].

Pelo lado da corte de Roma o contracto ácerca do sangue dos miseros hebreus estava honramente cumprido. Restava receber o preço. A mercadoria era excellente, por mais que elrei a menoscabasse. Os defeitos que lhe punha eram o desdenhar costumado de comprador. Roma sabía bem o que vendera. O cavaileiro Ugolino trazia as bullas, breves, instrucções e poderes necessarios para liquidar o negocio do bispado de Viseu e dos outros benefícios que pertenciam a D. Miguei da Silva. Em harmonia com as suas anteriores declarações, o papa não cedia a elrei um ceitil das rendas passadas: tudo devia ir para Roma, salvo o que fosse indispensável para reparos da cathedral viseense. A vontade de satisfazer aos desejos d’elrei tinha-a o supremo pastor mostrado de sobejo calcando aos pés os canones e considerando como vaga de certo modo a sé de Viseu, sem que o prelado legitimo resignasse ou fosse deposto, e sem sequer se falar nelle[34]. Que sacrificasse as leis da igreja e ao mesmo tempo avultadas sommas parecia pretensão excessiva. No que se convinha era em que o individuo que devia fazer na diocese portuguesa as vezes de prelado estrangeiro e ausente fosse português e pago pelas rendas da mitra, e em que, pela morte de Farnese, não fossem os benefícios de D. Miguel, que passavam para elle, provido por nomeiação do papa[35].

Entretanto os ministros de D. João iii procuraram ainda salvar uma parte das grossas rendas do bispo foragido, accumuladas por todos esses annos durante os quaes pesara sobre ellas o sequestro. O bispo do Porto e Balthasar de Faria tinham sido demasiado faceis em ceder á pertinacia da curia romana nesta parte, e o agente ordinario, tão costumado a duras arguições, foi ainda mais uma vez reprehendido da sua imperdoavel condescendencia[36]. Os debates sobre o assumpto com o procurador de Farnese protrahiram-se por alguns mezes; mas Ugolino, embora de antemão vendido a D. João iii[37] no que respeitava á Inquisição, era, no que tocava aos interesses de seu amo, de inteira confiança para elle. Na verdade, essas rendas anteriores destinavam-se á fabrica de S. Pedro; mas a fabrica de S. Pedro não era, as mais das vezes, senão um dos muitos pretextos de religião ou de credulidade que Roma empregava para colorear as suas rapinas e corrupções, rapinas e corrupções que, na opinião D. Fr. Balthasar Limpo, obstavam invencivelmente a um accordo com os protestantes. Demais o cardeal era arcipreste da igreja de S. Pedro, e ministro omnipotente de seu avô. Nisto se diz tudo. Assim, em Lisboa considerava-se esta questão das rendas sequestradas como materia de puro interesse particular de Farnese[38].

A final, Ugolino e Ricci chegaram a ajustes definitivos com os ministros d’elrei, não só sôbre o destino das rendas accumuladas, mas tambem sobre o regimen futuro da diocese, cujo prelado era agora nominalmente o neto de Paulo iii. A escolha da pessoa que em nome delle devia governar o bispado ficaria a elrei, e deduzir-se-hiam das rendas da mitra mil e quinhentos cruzados para a sua sustentação e dos seus officiaes. Todos os mais redditos, fossem quaes fossem, dar-se-hiam ao cardeal-ministro. As conesias, beneficios e curatos, cujo provimento pertencesse ao prelado, seríam por elle conferidos só a portugueses, mas poderia impor pensões moderadas nesses beneficios para dar aos seus familiares e creados. Os reparos futuros dos paços episcopaes ficaram a cargo de Farnese, sendo feitos lodos os de que se carecesse naquella conjunctura pelas rendas jacentes. As commendas dos mosteiros de Sancto Thyrso, Nandim e S. Pedro das Águias, que haviam pertencido a D. Miguel, bem como o direito de apresentação das igrejas cujo padroado andava annexo á dignidade dos abbades comenendatarios daquelles mosteiros, tudo passada para o cardeal Farnese, com a condição de recahirem as nomeiações em portugueses, embora com a reserva de pensões para os clientes do cardeal. Dos fructos e rendas sequestradas pagar-se-hiam as dividas contrahidas por D. Miguel da Silva legalmente, isto é, antes de banido. A quarta parte do remanescente , deduzidos ainda desta quarta parte dous mil e quinhentos cruzados para Farnese, deixar-se-hia na mão delrei para as despezas das reparações e fabrica da cathedral de Viseu e para outras applicações necessarias. Emfim, o nuncio e o bispo de Angra foram nomeiados para examinarem o estado do sequestro e para resolverem as questões sobre as dividas activas e passivas da mitra, realisando o accordo na sua parte economica, aliás confiada á gerencia material do banqueiro Lucas Geraldo[39].

A Inquisição estava, pois, comprada e paga. A concessão fora completa: não admira que fosse cara. Não sabemos ao certo quaes eram naquella epocha os redditos da mitra de Viseu, mas sabemos que, tractando-se por esses annos da erecção de novas sés em varias partes, como em Miranda, Leiria, Freixo, Portalegre, Vianna, Covilhan, Abrantes, das quaes algumas vieram effectivamente a erigir-se, nos calculos que se faziam para estabelecer as dotações das designadas dioceses procurava-se attingir sempre, e ainda ultra passar a verba de quatro a cinco mil cruzados. Sabemos tambem que por aquella epocha o arcebispado de Braga e o bispado de Coimbra rendiam, cada um, acima de seis contos de réis, e o da Guarda excedia a seis mil cruzados[40]. Não será exaggeração suppor que a mitra de Viseu não fosse mais pobre que a da Guarda. Os mosteiros de Santo Thyrso, de Nandim e de S. Pedro das Águias eram abastados, e não é provavel que as mesas abbaciaes dos tres mosteiros produzissem pouco para o commendatario, que tambem tinha, como padroeiro de muitas parochias apresentações rendosas. Assim, ficaremos provavelmente áquem da verdade, se reputarmos os rendimentos annuaes de que fora privado D. Miguel da Silva em oito mil cruzados, e portanto a importancia total do sequestro em cincoenta mil. Deduzida a quarta parte (menos dous mil e quinhentos cruzados) para applicações pias, o que restava para Farnese eram quarenta mil cruzados.

Annos depois, abriram-se negociações para cessar aquella especie de episcopado nominal do neto de Paulo iii, e para ser provido o bispado de Viseu de modo regular; mas é obvio que nessas negociações, as quaes não cabe aqui historiar, o cardeal-ministro cederia de tudo, menos dos proventos materiaes que lhe resultavam de um direito indubitavel. Esses proventos podiam ser substituidos, porém não recusados. Assim, um dos elementos indispensaveis, não para calcular, mas para conceber vagamente o que custou a Portugal a Inquisição, é o achar com alguma approximação as sommas absorvidas por Alexandre Farnese. Viveu elle mais de quarenta annos depois de 1548, e ainda que não tenhamos provas directas de que continuasse a receber, senão os rendimentos da mitra viseense, ao menos o seu equivalente, tambem nos faltam provas do contrario, e o mais crivel é que o governo português respeitasse o direito de um homem collocado em situação de o fazer valer. Desta hypothese, a unica plausivel, resulta uma somma superior a trezentos e vinte mil cruzados. Na verdade, Farnese devia deixar annualmente mil e quinhentos para a administração da diocese; mas isso era sobradamente compensado pelo direito de impor pensões nas conesias, beneficios e curatos de sua nomeiação, em proveito dos proprios apaniguados.

A mercê dos tres mil e duzentos cruzados annuaes que Farnese recebia, deduzidos dos rendimentos das mitras de Braga e Coimbra, continuou a vigorar ao lado dos beneficios novamente adquiridos[41]. Subsistindo durante os largos annos que ainda viveu o cardeal, aquella pensão representa uma quantia de mais de cento e vinte mil cruzados.

Só, portanto, o neto de Paulo iii auferia do estabelecimento definitivo da Inquisição em dinheiro corrente e em titulo seguro para o receber successivamente, perto de meio milhão de cruzados.

Isto era negociado num periodo assás curto e pago pelo vencedor na lucta. Mas quem pôde dizer hoje o que anteriormente haviam repartido com o cardeal-ministro Sinigaglia e Capodiferro, e o que elle obtivera, não só dos agentes d’elrei, mas tambem e principalmente dos procuradores dos christãos-novos? O calculo dos proventos destas transacções tenebrosas sería hoje impossivel.

A differença do valor da moeda entre a primeira metade do seculo xvi e a primeira metade do seculo xix é como de 6 para 1. Assim, aquelle meio milhão de cruzados corresponderia hoje (attendendo á diminuição gradual do valor dos metaes preciosos na segunda metade do seculo xvi, durante a qual uma parte dessa somma saíu para Roma gradativamente) a mais de dous milhões e meio da nossa moeda actual[42]. Tanto custou a victoria da intolerância, só para corromper um homem, embora o mais importante na curia romana pela sua situação. Mas o que o calculo não abrange, e só a imaginação pôde vagamente figurar, é a somma total do que a astucia romana soube extrahir, durante mais de vinte annos, das bolças dos christãos-novos, quando a plebe fanatica, tendo por corypheus o rei, o clero hierarchico e os frades, se agitava furiosa contra uma porção notavel dos cidadãos mais opulentos, laboriosos e pacificos, que só tinham por defesa a protecção, tantas vezes inefficaz, que Roma lhes vendia tão caro, e que sabía negar-lhes com plausibilidade quando o fanatismo e a hypocrisia pagavam melhor. Por grandes que fossem, porém, os sacrificios dos christãos-novos, os do rei eram maiores. Nada se podia comparar com o estabelecimento de pensões vitalícias, concedidas das aos cardeaes e ministros da curia, que não era facil corromper solida e permanentemente com peitas limitadas. Nenhum, talvez, desses individuos que no decurso desta narrativa nos tem apparecido na curia romana servindo com mais ou menos zelo a causa da Inquisição o fazia de graça. O celebre Santiquatro só do bispado de Lamego recebia uma pensão de mil e quinhentos cruzados, que hoje equivaleriam a nove mil. Um terço della passou, por morte do zeloso protector de Portugal, para um sobrinho seu. A de Pier Domenico sobre as rendas do mosteiro de Travanca era mais modesta, porque não excedia a sessente mil réis, acaso porque se achavam gravadas aquellas rendas com outra pensão de cem mil réis destinada para um membro do sacro collegio menos influente que Santiquatro. Ainda depois de terminado o negocio da Inquisição, assegurava elrei ao cardeal De Crescentiis mil cruzados annuaes nas commendas dos mosteiros de Tarouca e Ceiça. Até. ás vezes, o pensionado tinha o direito de transmittir parte da sua pensão para um terceiro. Tal era o cardeal Farnese, que dos tres mil e duzentos cruzados impostos nos redditos das mitras de Braga e Coimbra podia fazer mercê de duzentos a quem lhe aprouvesse[43]. Por este modo, as forças economicas do reino, atenuadas diariamente pela expatriação ou pelo exterminio dos christãos-novos, eram-no tambem por esses dilatados sacrificios de uma parte da renda da terra, que se ía consumir improductivamente fóra do paiz.

Qual era a situação de D. Miguel da Silva depois do desfecho da sua causa e da causa dos hebreus portugueses, as quaes a força das circumstancias tornara communs? E’ uma pergunta que, sem duvida, o leitor nos fará. Essa situação era cruel. Mas o prelado devia ter bastante orgulho para a supportar nobremente. Requeriam-no o pundonor da sua raça, a illustração da sua intelligencia, os curtos horisontes do tumulo, a consciencia de que sustentara braço a braço uma lucta de seis annos com o implacavel filho de D. Manuel e de que tinha passado imperterrito no meio das aggressões de toda a ordem, desde a insinuação perfida até a tentativa de assassínio; de que, emfim, cahia victima da transacção mais ignobil que homens podiam conceber e effeituar. Pela energia moral, pela dignidade na extrema desventura, obteria sympathias, se não uteis, ao menos honrosas, e o espectaculo da sua miseria, ao lado da opulencia de Farnese, sería o processo e o castigo deste e do papa no tribunal de todas as consciencias rectas.

Não succedeu assim. D. Miguel era homem da sua epocha. As cortes de Lisboa e de Roma, que frequentara desde a mocidade, tinham-no educado pela norma commum. A ambição, a vaidade e o odio haviam-lhe emprestado a mascara de nobre altivez. Quando a esperança morreu a mascara cahiu, e appareceu mais um desses Jobs de ordem moral, asquerosos, não no corpo, mas na alma, que constituiam a grande maioria dos homens publicos daquelle tempo. Já noutro logar vimos a que apuros chegara o foragido prelado pela dificuldade de receber soccorros pecuniarios de Portugal. Os dos christãos-novos íam escaceiando á medida que a influencia de D. Miguel diminuia. Chegara a termos taes, que o proprio Balthasar de Faria o reputava mais digno de compaixão do que de malevolencia. Com brutal graciosidade, o agente d’elrei observava, ao concluir-se a compra da Inquisição á custa delle, que o papa e seu neto, depois de o escorcharem, curavam tanto da sorte futura do pobre cardeal como se nunca houvera existido[44]. Os ultimos creados dos que trouxera de Portugal, perdida para elle a derradeira esperança de recuperar as antigas rendas, abandonaram-no. Os desgostos tinham ajudado os effeitos dos annos, e a velhice e uma doença cruel, a gota, acabrunhavam o altivo prelado. As dores e as lagrymas teciam os seus ultimos dias[45].

Esta situação teria talvez inspirado a almas de outra tempera o pensamento criminoso do suicidio. Parece, porém, que o antigo bispo de Viseu ainda cria descortinar no horisonte a possibilidade de estancar no coração de um rei devoto fel ahi accumulado por annos contra elle. Na desgraça extrema, até nisto se chega a acreditar. Dos christãos-novos nada havia a temer nem a esperar: a gente da nação assemelhava-se a um pouco de gado disperso, que os familiares dos inquisidores íam gradualmente arrebanhando no matadouro, para d’alli se proverem os açougues de carne humana, que a hypocrisia se obrigara a subministrar á intolerancia. O velho prelado fez aos hebreus o que Farnese lhe fizera a elle. A differença estava em que o cardeal-ministro tinha-o vendido por um preço elevado, pago em boa moeda, e elle vendia os seus protegidos de tantos annos por uma esperança insensata. Que se retirasse da lucta, comprehende-se: a sua influencia para com aquelles que o haviam espoliado, a fim de se locupletarem a si, não devia ser demasiada, nem, que o fosse, havia já influencia capaz de pôr obstaculos ao triumpho completo da Inquisição; mas repugna ver o soberbo prelado unir os seus insignificantes esforços aos do bispo do Porto e de Balthasar de Faria para apressar o desfecho daquelle drama ao mesmo tempo torpe e horrivel. Em mais de um logar das suas ultimas correspondencias com elrei, elles mencionam os serviços de D. Miguel com expressões de uma compaixão insultuosa, expressões em que, aliás, transparece o temor de desagradarem ao vingativo monarcha por esses tristes elogios feitos ao homem que elle jurara perder. Assim como a dignidade altiva na desgraça é a manifestação mais elevada da grandeza moral do homem, assim o aviltamento perante o que o fez desgraçado é a mais asquerosa hyperbole da abjecção. Tal era, naquella conjunctura, o procedimento de D. Miguel da Silva. Não escondia os seus desejos de se aproximar do bispo do Porto, mas o bispo do Porto evitava o contacto do empestado politico. Ousado com o papa, increpando-o pela corrupção da igreja, o prelado portuense não queria practicar algum acto que significasse desapprovação das baixas vinganças de D. João iii, porque as consequencias do descontentamente do rei podiam ser mais serias do que as do descontentamento do pontifice. O fanatico não se esquecia de que era cortezão[46]. Entretanto, nas disputas entre o cardeal De Crescentiis e D. Fr. Balthasar, ou nos debates deste com Paulo iii, D. Miguel, se porventura se achava presente, collocava-se do lado dos procuradores da Inquisição com o mesmo ardor com que outr'ora os combatera, e, não contente com isso, empregava esses restos da influencia que exercera em promover a prompta conclusão do negocio[47]. Na opinião de Faria, não era tanto a esperança de se rehabilitar que o levava a assim preceder, como a de se lhe darem algumas treguas na perseguição incessante que lhe fazia o monarcha[48]. Essa ultima baixeza sería nesse caso inspirada por um excesso de covardia.

Tal foi o desfecho dessa lucta de mais de vinte annos, cujas phases e peripecias nosproposemos narrar. Como já noutro logar dissemos, as familias hebréas, que não poderam esquivar-se a uma situação intoleravel fugindo de Portugal, ainda, na successão dos tempos, mais de uma vez ergueram as mãos supplicantes para o supremo pastor e fizeram rolar o ouro nos covis da corrupção humana; ainda mais de uma vez souberam despertar ou comprar a compaixão e o favor da corte papal; mas os resultados estavam longe de corresponder aos esforços e aos sacrificios. Podia por esse meio salvar-se algum raro individuo, ou retardar-se por alguns mezes a torrente impetuosa da intolerancia; mas o edificio da Inquisição ficava cada vez mais solido e o terror e o silencio que ella fazia em redor de si tornavam-se cada vez mais profundos. Depois de 1548, posto que ás vezes parecesse renovar-se a lucta, esta não existia realmente. Era apenas, como já observámos, o estrebuxar, mais ou menos agitado, das victimas. A seguinte narrativa pôde dar-nos uma idéa da negra historia do tribunal da fé em 1561, depois da sua constituição definitiva.

Tinham passado doze annos, e era nuncio em Portugal Prospero Santa-Croce, bispo de Chisamo. D. João iii morrera, e regia o paiz, na menoridade de D. Sebastão, a rainha D. Catharina. O infante D. Henrique continuava a presidir ao tremendo tribunal. Não era demasiado o affecto entre a rainha e o cunhado; mas quanto ás idéas de intolerancia estavam accordes: pertenciam ambos á sua epocha. A corte de Roma achava-se na melhor harmonia com a de Lisboa, e o nuncio recebera instrucções para se amoldar era tudo aos intuitos do inquisidor geral. Os christãos-novos que não tinham logrado saír do paiz mal podiam esperar favor efficaz da curia, não só por causa daquelle bom accordo, mas tambem porque a emigração occulta havia naturalmente levado para longes terras muitos dos mais opulentos e dos mais ousados. O excesso, porém, do padecer arranca ás vezes, ainda aos menos insofridos, queixumes inuteis. A gente da nação, cujos males subiam de ponto, ergueu ainda uma vez os seus clamores até o solio pontifício, occupado então pelo duro Pio iv. Apontavam na supplica as principaes tyrannias que supportavam: prendiam-nos sem indicios sufficientes, retinhamnos nos carceres annos e annos sem processo, e continuavam a queimá-los sem piedade, apesar de expirarem nas fogueiras como verdadeiros christãos, invocando o nome de Jesus. Ordenou-se então ao bispo de Chisamo que verificasse até que ponto existiam aquelles aggravos. Respondeu que effectivamente os christãos-novos eram, não só presos, mas tambem postos a tormento sem sufficientes indicios. Tinha-se distinguido neste genero de violencias um homem de alta reputação litteraria, o celebre Oleastro, ou Fr. Jeronymo da Azambuja[49], o qual, como inquisidor, disputara a palma da crueldade a João de Mello. Os seus excessos haviam sido taes que o infante fora obrigado a demitti-lo. O proprio D. Henrique confessou ao nuncio que Oleastro ultrapassara todas as métas da moderação. Não era menos exacto o que allegavam ácerca do barbaro systema de deixarem apodrecer nas masmorras, esquecidos até para os tractos e para o supplicio, grande numero de individuos. Partiam os inquisidores da idéa de que todos os que se prendiam não eram christãos senão no nome, e que por isso pouco importava impor-lhes a pena de longo e triste captiveiro, ainda antes de se lhes provar o crime de heresia. Finalmente, o bispo de Chisamo concordava em que muitos dos queimados como judeus convictos morriam abraçados com a cruz, dando todas as demonstrações de sincero christianismo; mas observava que, apesar disso, era indispensavel continuar a queimar os réus sentenciados; porque, se demonstrações taes podessem salvá-los nessa hora tremenda, recorreriam áquelle expediente todos os verdadeiros herejes, e nenhum sería punido. A opinião do bispo de Chisamo era que não se tocasse neste assumpto, ou, quando muito, que se insinuasse de algum modo suave ao cardeal inquisidor e ao poder civil que não seria talvez conveniente levar aquelles desgraçados até o grau de desesperação, lendo, aliás, provado os rigores presentes e passados que a crueldade não subministrava meios demasiado efficazes de conversão[50].

Taes eram os factos mais importantes que o nuncio verificara; tal era a appreciação insuspeita que delles fazia; taes as idéas de justiça daquella epocha. Nesses tres factos capitaes, manifestação completa das tendencias e do espirito da mais atroz, da mais anti-christan instituição que a maldade humana pôde inventar, se resume a historia da inquisição portuguesa: — nas capturas arbitrarias; nos longos captiveiros sem processo; nas fogueiras devorando promiscuamente o christão e o judeu por honra da Inquisição e gloria de Deus. Eis o que se fizera antes de 1547; eis o que se fazia depois. Os escandalos especiaes num ou noutro caso, as espoliações, as falsificações, as mentiras impudentes, os attentados contra os bons costumes, as hypocrisias insignes, as barbaridades occultas, as hecatombes publicas de victimas humanas não podiam ser diversos. O que, á vista dos documentos relativos a tempos posteriores, se poderia escrever ácerca do tribunal da fé não passaria de reproducção das scenas repugnantes que delineiámos, e cuja continuação não interrompida o indisputavel testemunho do bispo de Chisamo nos attesta. Repetir isso tudo poderia ser um pasto para a curiosidade; não já um estudo para o entendimento. As phases da lucta entre os fautores da Inquisição e as suas victimas naquelles primeiros vinte annos, as peripécias dessa lucta, o espectaculo da gangrena moral que tinha invadido a igreja e o estado, eis o que encerra profícuas licções para o presente e para o futuro. Coordenar e expor essas graves licções foi o intuito deste livro; cremos ter satisfeito ao nosso proposito. Forcejámos para que fossem mais os documentos do que nós quem falasse: tambem cremos tê-lo obtido. Nas ponderações que o assumpto exigia, ou para clareza da narrativa, ou para concatenação dos successos, buscámos ser justos com os oppressores e não nos deixarmos prevenir pelo dó dos opprimidos. Precavia-nos contra as fraquezas da compaixão a baixeza dos ultimos na desgraça: a extrema hediondez moral dos primeiros temperava-nos pelo asco quaesquer demasias de odio. Na verdade, uma ou outra vez, o espectaculo da suprema depravação humana, impondo silencio á voz tranquilla da razão historica, impelliu-nos a traduzir num brado de indignação as repugnancias irreflexivas da consciencia irritada. Mas este senão, se é senão, nunca poderá evitá-lo inteiramente o historiador que conservar os sentimentos do homem e tiver de estudar á luz dos documentos, infinitamente mais sinceros que os analystas, um ou diversos periodos da historia do se culo xvi, daquelle seculo corrupto e feroz, de que ainda hoje o absolutismo, ignorante do seu proprio passado, ousa gloriar-se, e que, tendo por inscripção no seu adito o nome obsceno do papa Alexandre vi e por epitaphio era seu termo o terrivel nome de Philippe ii, pôde, em Portugal, tomar tambem para padrão que lhe assignale metade do curso o nome de um fanatico, ruim de condição e inepto, chamado D. João iii.


FIM DO TOMO III E ULTIMO

Notas editar

  1. C. de B. de Faria a elrei de 3 de maio de 1547, «a qual fiança se aplicase polas obras de S. Pedro: que com isto lhes armei; que d'outro modo nunca fora possivel»: Ibid.
  2. Lettera al nunzio di Portogallo, na Symmicta. vol. 29, f. 75. Para que ninguem suspeite que substanciamos essa incrivel carta inexactamente, transcreveremos aqui os seus ultimos periodos; «non lasciarô etiam daggiungere come sua beatitudine na concesso et applicato alla fabrica di S. Pietro tutti li fruti passati delle chiese et beneficii sopradetti del tempo che sua altezza gli ha fatti pigliare, acciochê non solo se li satisfaccia in non darli a esso Viseu, ma etiam in convertirli in uso pio, perche per lasciarne una parte per distribuire di costa, secondo domandava sua altezza, non c’é stato ordine ottenerlo da sua santità, parendoli d'haversi por troppo lasciato andare nelle altre cose, in modo che se si fosse voluto per la parti di sua altezza star pertinace in questo, si sarebbe perturbato tutto il resto della spedizione, la quale per la grazia de Iddio, é condotta a quel buono porto, etc.» O haversi pur troppo lasciato andare nelle altre cose explica-se por uma passagem anterior da carta, não menos singular, em que Farnese allega o sacrificio que o papa fazia em lhe melter na bolça os rendimentos do bispado de Viseu e dos outros benefícios do infeliz D Miguel da Silva. Tinha consentido nisso, dizia o neto, para contentar elrei, posto que non si satisfaceva al debito della libertà ecclesiastica, e dell'honore di questa sede, nondimeno per levare, quanto a se, materia de mala satisfazione, et quanto a sua altezza carico, ha finamente aconsentito, .etc»
  3. Lei de 15 de julho de 1547, em Figueiredo, Synops. Chronol., T. i, pag. 401.
  4. C. d’elrei a B. de Faria de 22 de julho, na Corresp. Orig., f. 246 e segg.
  5. Ibid.
  6. Ibid.
  7. Cartas de B. de Faria a elrei na G. 2, M. 5, N.° 46 e N.° 64, que adiante havemos de citar. Não apparece a correspondencia de Faria desde maio até outubro de 1547. Entretanto, das cartas deste ultimo mez e de novembro do mesmo anno vé-se lue escrevera mais de uma vez a elrei nesse intermedio, e que remettera copia de um breve de salvoconducto affrontoso para Porugal, concedido aos christãos-novos. Descubrindo a existencia desse diploma occulto, fizera grande rumor em Roma. Um breve de saivo-conducto não podia servir senão para os christãos-novos portugueses serem recebidos sem gravame nos estados do papa. Provavelmente, no preambulo do breve havia algumas phrases duras contra os inquisidores que queriam carne. Da carta do bispo do Porto de 22 de novembro, que adiante havemos de aproveitar, se vê tambem qual era o salvo-conducto a que se referia o agente português.
  8. Vide ante pag. 19.
  9. C. de B. de Faria a elrei de 17 de outubro de de 1547, na G. 2, M. 5, N. 46.
  10. Ibid.
  11. Effectivamente das instrucções dadas depois ao cavalleiro Ugolino por Farnese, as quaes havemos de aproveitar adiante, se vê que o nuncio communicou tudo para Roma em carta de 21 de junho.
  12. C. de B. de Faria a elrei de 17 de novembro de 1547, na G. 2, M. 5, N.° 64, no Arch. Nac.
  13. A narrativa deste e dos subsequentes §§ é tirada do documento citado na precedente nota, e da carta de D. Fr, Ballhasar Limpo a D. João iii de 12 de novembro de 1547, que se acha na G. 2, M. 5, N.° 37, no Arch. Nacional. D. Rodrigo da Cunha, na Historia Ecclesiastica de Braga, P. 2, C.31, publicou uma carta attribuida a Gaspar Barreiros, de 22 de novembro de 1547, em que se contém uma narrativa dos successos occoridos em Roma nessa conjunctura relativamente ao negocio da Inquisição, que, concordando em grande parte com os documentos que vamos seguindo, se affasta delles em varias circumstancias. A carta de Barreiros foi communicada a Cunha por Lousada, que dizia tê-la copiado da Torre do Tombo. O que podemos asseverar é que hoje não se encontra alli tal carta. Não queremos dizer com isto que fosse inventada na sua integra por aquelle celebre falsario. Entretanto, entendemos que se deve ler com cautela. Nós seguimos as narrativas de Faria e de D. Fr. Balthasar Limpo, porque existem originaes, e porque são suficientes para esclarecer os successos.
  14. C. de D. Fr. B. Limpo, l. cit.
  15. Ibid.
  16. «E como elle tosquenejava eu me calava, e elle tornava a encommendar-me que fosse ávante»: Ibid.
  17. Ibid.
  18. Ibid.
  19. C. de B. de Faria a eirei de 17 de novembro de 1547, l. cit. — C. de D. Fr. B. Limpo cit.
  20. «e porque lhe eu dizia que me queria partir, e elles desejavam muito que eu fosse ao concilio, me disse o cardeal Crescencio «o papa não quer que vades d’aqui descontente»: Ibid.
  21. «algumas vezes dei a entender ao cardeal Crescencio e ao cavaleiro Golino, creado de Farnés, que lá vai, que não cuidasse ninguem que so avião dacabar as cousas do cardeal Farnés nos negocios de Viseu com ficarem por acabar as da Inquisição, que eram de Deus e d’ElRei nosso Senhor; e quem lá fosse sem ellas irem acabadas, hia gastar dinheiro e tempo em vam»: Ibid.
  22. C. de B. de Faria de 17 de novembro, l. cit.
  23. Tres cartas de Margarida d’Austria e dos cardeaes Farnese e Santaflore para a rainha D. Catharina trazidas por Ugolino (Collecç. do Sr. Moreira. Quad. 8) são datadas de 24 e 26 de novembro.
  24. Instruzíone per il cavalier Ugolino: Symmicta, vol. 33, fol. 140 e segg. Acha-se uma versão portuguesa desta Instrucção na G. 2, M. 3, N.° 41, no Arch. Nac. É singular que de todos estes diplomas só se encontre na vasta collecção de bullas e Breves da Torre do Tombo o ultimo, dirigido a elrei: Breve Licet nos de 15 do novembro de 1547 no M 7 de Bull. N.° 3. De certo, era sobretudo aos christãos-novos que importava promover a expedição daquelles diplomas, e vê-se da Instruzione que Ugolino trazia ordem de os entregar aos chefes da nação, mas é incrivel que náo fossem transmittidos tembem a elrei. Quem sabe se esta falta corresponde a algum mysterio de iniquidade hoje desconhecido?
  25. Instruzione: Ibid.
  26. A bulla organica, que começa Meditatio cordis, é datada de 16 de julho de 1547 (M. 9 de Bull. N.° 11 e N.° 16, no Arch. Noc.): a bulla Romanus Pontifex, em que se revogam as exempções, é datada de 15 do mesmo mez (M. 7 de Bull. N.° 21): finalmente o breve Cúm saepiús, annunciando a elrei a remessa da bulla Meditatio cordis, é datado de 5 de julho (M. 7 de Bull. N.° 6)
  27. Bulla Meditatio cordis, l. cit.
  28. Bulla Romanus Pontifex, l. cit.
  29. Breve Cum saepius, l. cit.
  30. «cosi da voi, quando sarete lá, e dal nunzio e suoi ministri si deve astenere d'accetare um soldo, sendovi offerti in qualche modo: Instruzione, l. cit.
  31. «avvertendo sopro tutto, che siccome per l’assoluzione e venia predetta, per la quale sua santitá altre volte avrebbe possuto cavare bene venti millia ducati, ha proibito quà espressamente che non si pigli un quattrino»: Ibid.
  32. «antes quis deixar de repricar naquillo de que sua santidade hade dar conta a Deus, por carreguar somente sobre elle, que dilatar o serviço que a Nosso Senhor se faz com a Inquisição» Minuta da Carta d’elrei a B. de Faria, sem data (primeiros mezes de 1548), na G. 2, M. 1, N.° 33, no Arch. Nac.
  33. Ibid.
  34. «dei quali (vescovato e benifizii) é fatta la provisione in persona mia come vacanti certo modo, senza far menzione alcuna dei cardinale di Silva, ne di sua resignazione, solo per compiacere a S. A. che l’a cosi de sideratoe ricerco»: Instruzione, l. cit.
  35. Ibid. e C. de B. de Faria de 17 de novembro, l. cit. Breve de 15 de julho no M. 7 de Bull. N.° 5, no Arc. Nac.
  36. Minuta da C. a B. de Faria, etc., na G. 2, M. 2, N.° 33.
  37. Vejam-se a este respeito as cartas do bispo do Porto e de Balthasar de Faria de 17 e de 22 de novembro anteriormente citadas.
  38. «e quanto aos socrestados (fructos) asentou-se que, tiradas as despesas, do que ficase levase sua alteza a quarta parte para se despender em obras pias, e as três partes levase Farnés»: Instrucc. ou Memor. na Collecç. de S. Vicente, vol. 3, f. 141 no Arch. Nac.
  39. Tres documentos originaes sobre este assumpto se acham na Collecçáo do Sr. Moreira (Quad. 9 in medio). São dous accordos assignados por Ugolino e por Montepoliziano a 24 de março de 1549, contendo o que fica substanciado neste §, e uma declaração de Lucas Geraldo, em que se obriga a pagar as dividas legalisadas de D. Miguel e a parte que devia ser posta à disposição d’elrei.
  40. Estes algarismos são deduzidos de um calculo sobre as pensões que pagavam diversos bispados em 1244 (Collecção do Sr. Moreira, Quad. 16, in fine); de outro calculo para estabelecer rendimentos convenientes para os novos bispados que se tractava de crear em 1548, e parte dos quaes efectivamente se crearam (Dieta Collecção, Quad. 5, 13 e 14, passim); finalmente dos papeis relativos á erecção de Miranda e Leiria, e provimento de Braga, Coimbra, etc. (Dicta Collecção, Quad. 18).
  41. Consta isto positivamente da minuta das instrucçôes dadas a Balthasar de Faria em 1548, para requerer o provimento de varios bispados, annexações, commendas e translações de diversos mosteiros, fixação ou creação de pensões, etc. na Collecçâo do Sr. Moreira, Quad 17.
  42. Os economistas calculam a differença do valor da prata (que era a moeda geral) entre as duas epochas, como de um a seis. A do ouro é um pouco menor. A base adoptada para estes calculos é o preço dos cereaes. Effectivamente, quando a fome ameaçava Portugal em 1545, e Simáo da Veiga foi enviado á Sicilia a comprar trigo, fixou-se-lhe o maximo preço deste, posto em Lisboa, em 160 réis por alqueire. Hoje o de 960, seis vezes superior, sería alto, mas não excessivo em circunstancias identicas. Os papeis, relativos a esta missão de S. da Veiga acham-se na Collecção do Sr. Moreira. Quad. 2.
  43. Estes e outros factos analogos revelam-se incidentemente nas instrucções a Balthasar de Faria, sobre o provimento e erecção de varios bispados e annexações de mosteiros em 1548, ha pouco citadas.
  44. «depois que o pellaram non se curam mais delle que se nunca nacera»: C. de B. de Faria de de novembro de 1547, l. cit.
  45. «Vendose sacudido de cá (da curia) e em desgraça de vossa alteza, me dizem pessoas que o sabem que chora como menino, falando em Portugal: anda magro, envelhentado, e co a gota que lhe chega já aos hombros»: Ibid.
  46. «porque me pareceo que D. Miguel da Silva e queria falar, me guardei de todolos lugares onde nos podíamos encontrar»: C. de D. Fr. B. Limpo a elrei de 22 de novembro, l. cit.
  47. Ibid.
  48. «já que se nam espera remir pera com V. A. ao menos querers’á co isso soster e honrar pera que nam o apicacem mais»: C. de B. de Faria de de novembro, l. cit.
  49. Oleastro, depois de ter voltado do concilio de Trento, foi nomeiado inquisidor de Évora em 1552, e transferido para a Inquisição de Lisboa em 1555; Sousa, De Orig. Inquisit., p. 20 e 24.
  50. Negoziato di Monsignore Prospero Santa-Croce, Vescovo di Chisamo in Spagna et in Portogallo: Lettera al cardinalle Borromeo 23 maggio 1561: Collecçào Geral de Doc. de Roma, vol. 2, f. 372, na Biblioth. da Ajuda.