XI

No harem de Marrocos


(Outubro de 1867)


A doença do sultão de Marrocos, Muley Hassan, envolve-se n'um veu romantico, através de cuja gaze a imprensa europêa tem descoberto uma intriga de serralho.

O sultão, que, de resto, parece revelar maiores tendencias para cultivar a monogamia do que o harem, affeiçoou-se a uma só mulher tão absorventemente, que todas as outras, reduzidas a uma ociosidade desprezivel, ter-se-iam lembrado talvez de deitar um veneno qualquer na taça de café do sultão.

Se assim foi, deveria ter havido interessantes e secretos conciliabulos, que os eunuchos, apesar de toda a sua vigilancia, não lograriam surprehender.

Estou d'aqui a ouvir uma oradora do harem discursando, cheia de indignação, ás suas companheiras de desgraça.

—Senhoras, diria porventura ella, um sultão que não faz uso do seu harem, por amor de uma só mulher, póde ser um bom marido, mas é com certeza um detestavel sultão.

Longos e repetidos apoiados.

—Se Muley Hassan está apaixonado, mande-nos embora, e case. Que fique fazendo uma vidinha santa com a sua querida mulhersinha e os seus meninos; que saia a passeio com a madama pelo braço; que vá orar á mesquita com ella e que, inclusivamente, pegue nos pequenos ao collo servindo de ama sêcca...

Hilaridade geral.

—Mas que seja para nós ama sêcca, como o poderia ser para os seus meninos, não se admitte.

Novos e prolongados applausos.

—Porque a verdade, senhoras, é que nós somos de carne e osso como a favorita, e que o sultão não chega senão para marido...

Uma voz, com sobresalto:

—Silencio!

—O que é?

—Parece-me que vai passando no corredor a ronda dos eunuchos...

A oradora, intrepidamente:

—Deixal-os! Não ha nada que eu repute n'este mundo tão insignificante como um eunucho.

Interrupção:

—Ainda ha alguma coisa mais insignificante talvez.

—O que é?

—São dois eunuchos.

Hilaridade.

Uma outra voz:

—Pois eu digo que ainda ha uma coisa peor do que dois eunuchos...

—São tres?

—Nada, não. Vejam lá se adivinham...

—Diga, diga!

—É um sultão eunucho.

Hilaridade geral.

No meio d'esta assembléa tumultuosa, uma das odaliscas puxa d'um jornal francez.

—O que é isso? perguntam.

—É o Temps, uma folha da republica franceza.

—Mas o que tem isso com o sultão?

—Esperem, senhoras! O general Boulanger foi preso.

—Preso!

—Por ter proferido em Clermont-Ferrand umas palavras que o ministro da guerra julgou attentatorias da disciplina militar.

Vozes:

—Mal feito!

Outras vozes!

—Bem feito!

A mesma odalisca, com o Temps na mão:

—Segue-se que o ministro da guerra ordenou que o general Boulanger soffresse trinta dias de de tenção.

Uma voz:

—E depois?

—Depois Boulanger submetteu-se.

Outra voz:

—O que eu admiro é a energia do ministro da guerra!

Muitas vozes:

—Pois isso é que é!

Uma voz:

—Como se chama o ministro da guerra?

—É o general Ferron.

—Velho?

—Decerto.

—Não importa. Ahi está um general que ainda servia para sultão.

A odalisca do Temps:

—Ahi mesmo é que eu queria chegar...

Muitas vozes:

—Apoiado! Apoiado!

A discussão entre as mulheres do harem prolongar-se-ia decerto cada vez mais animada e cortada de repetidos incidentes.

Quando porventura se tratou da especie de droga que se devia lançar na taça de café do sultão, é provavel que as opiniões se dividissem,—querendo estas que fosse veneno, querendo aquellas que fosse outra coisa.

Afinal decidiram pelo veneno, allegando talvez alguma odalisca que um sultão retirado difficilmente readquire os seus antigos habitos, seja qual fôr a droga que se lhe propine.

E emquanto as odaliscas conspiravam, é provavel que a favorita, depois de ter enfiado na cabeça do sultão o barrete de algodão branco, e de lhe haver conchegado aos sovacos a roupa da cama, principiasse a cantar-lhe qualquer canção terna que o acalentasse, como por exemplo:

Dorme, que eu vélo, seductora imagem,
Grata miragem que no ermo vi!

E o sultão, espirrando:

—Ora esta! Estou constipado!

A favorita:

—Não é nada, meu maridinho. Se queres, mando o primeiro ministro á botica comprar borragens para tomares um suadouro.

—Deixa vêr se isto passa.

—Pois sim. Pois sim...

E cantando:

Dorme, dorme, meu sultão rurú,
Canta Mafoma, e dorme tu.

E o sultão, como um bom chefe de familia, apesar de constipado:

—Os pequenos?

—Deixa lá os pequenos, que já estão recolhidos.

—É que, tendo havido hontem um caso de variola no imperio, preciso mandar vaccinal-os.

—Então! snr. meu marido! Deixe lá isso e durma, quando não ralho muito comsigo.

E o sultão, espirrando de novo:

—Atchi! Atchi!

A favorita:

—Queres um lenço?

—Quero. Tira alli da gaveta. Agora, como já não atiro lenço nenhum ás odaliscas, devo ter ahi muitos.

A favorita, fingindo-se zangada:

—Não quero que se torne a lembrar de aguas passadas. Pegue lá o lenço, e cale-se. Vamos, faça óó.

E o sultão:

—Pois sim, mulher, pois sim; vou vêr se durmo.

Ora, francamente, sendo assim, as odaliscas tiveram razão.

Não se é sultão para isto, porque a nobreza obriga, e um sultão, que se prese de o ser, tem deveres a cumprir.

Ouvissem-me as odaliscas agora, e não me faltariam apoiados.

O rei Milan da Servia é que não pensa precisamente como o sultão de Marrocos.

Agora mesmo, que parecia estar a ponto de se reconciliar com a rainha Natalia, uma nova aventura veio de subito carregar de nuvens o ceu conjugal, que promettia tornar-se azul e sereno.

Estão em Pesth duas cantoras de Café-Concerto, mesdemoiselles Morgot e Elisa Roger, duas irmãs.

Por occasião da sua recente passagem em Pesth, o rei Milan da Servia, ouvindo elogiar a belleza das duas «chanteuses», manifestou desejo de as vêr pessoalmente, e, acompanhado do conde Eugenio Zichy, foi visital-as. Um jornal de Pesth, sabendo da visita, alludiu ao caso, em breves palavras, no seu noticiario. O incidente não fizera ruido e estava já esquecido, quando, tres semanas depois, as duas irmãs appareceram subitamente na redacção do jornal e intimaram o redactor indiscreto a dar-lhes explicações. O redactor riu-se e gracejou. Resolveram então intentar um processo,—que sem duvida será picante: o rei Milan e o conde Zichy serão citados a comparecer para testemunhar que a visita que fizeram ás galantes e formosas cantoras foi «pura e simples visita de delicadeza».

A rainha Natalia, que é curiosa de mais para deixar de lêr gazetas, teve naturalmente conhecimento do facto, e, agastando-se de novo, oppoz-se á reconciliação, que parecia estar em bom terreno.

Quando a gente ás vezes começa a pensar sobre as coisas do mundo, pasma de que a Providencia ou o acaso, que tão sabiamente regula a maior parte dos negocios terrenos, tenha de quando em quando desacertos verdadeiramente inexplicaveis.

Ora digam-me uma coisa:

Com quem devia ter casado a rainha Natalia?

Com o rei da Servia decerto não.

Vamos, adivinhem.

Não dizem! Pois digo eu: com o sultão de Marrocos.

E quem deveria ser o sultão de Marrocos?

Agora é facil a resposta.

— Quem deveria ser o sultão de Marrocos era o rei Milan da Servia.

Exactamente.

Porque, sendo assim, nem a rainha Natalia nem as odaliscas do harem tinham razão para protestar — pelo mesmo motivo.