Como me parecesse necessário um prefácio para essa coletânea de contos e fantasias de várias épocas e coisas de minha vida, julguei-me no direito de republicar, à testa dela, as linhas que se seguem, com o título acima, editadas poucos meses depois do aparecimento do meu livro Triste fim de Policarpo Quaresma.
Apareceram em um jornal de grande circulação da cidade do Rio de Janeiro, A Época e eu tive com elas o intuito de esclarecer o que poderia haver de obscuro em certas passagens dos meus humildes trabalhos. Trata-se agora de contos e coisas parecidas, mais do que nunca elas me parecem necessárias à boa inteligência do que a minha mão inábil quis dizer e não soube; e eu as transcrevo aqui, na suposição de que não são demais.
Ei-las como saíram em setembro de 1916:
Tendo publicado há poucos meses um livro, poderá parecer a alguns leitores que estas linhas se destinam a responder críticas feitas à minha humilde obra. Não há tal. Já não sou mais menino e, desde que me meti nessas coisas de letras, foi com toda a decisão, sinceridade e firme desejo de ir até ao fim.
Quem, como eu, logo ao nascer, está exposto à crítica fácil de toda gente, entra logo na vida, se quer viver, disposto a não se incomodar com ela.
A única crítica que me aborrece é a do silêncio, mas esta é determinada pelos invejosos impotentes que foram chamados a coisas de letras, para enriquecerem e imperarem. Deus os perdoe, pois afirma Carlyle que “men of letters are a perpetual priesthood”.
De resto, todos os críticos só tiveram gabos para a minha modesta novela; e, se não fora alguns me serem quase desconhecidos, temeria que fossem inimigos disfarçados que conspirassem para me matar de vaidade.
A razão destas linhas é outra, muito outra, e eu explico já.
A emoção do recebimento de uma carta anônima só me foi dado experimentar ultimamente. Muitas dessas coisas banais da vida têm-me chegado assim tardiamente e algumas, pouco corriqueiras, antes do tempo normal aos outros.
A carta era anônima, mas absolutamente não era injuriosa.
Vinha escrita em linda letra e eu tenho pena em não acreditá-la feminina, pois se fosse meteria uma inveja doida aos galantes dos cinemas e maxixes da moda, linda gente feita de pedacinhos de mulheres feias.
Não tive portanto a emoção da carta anônima, pois a missiva era cortês, fazendo, sobre o meu Policarpo, reparos sagazes e originais.
Simpatizei tanto com o escrito que não pude furtar-me ao desejo de responder, de qualquer forma que pudesse, ao desconhecido autor.
É o que pretendo fazer aqui.
Apesar de toda a inteligência que ressuma das palavras que a epístola contém, não me parece que o autor estivesse, em certos quarteirões, muito fora das modas de ver da nossa retórica usual.
Percebi que tem de estilo a noção corrente entre leigos e... literatos, isto é, uma forma excepcional de escrever, rica de vocábulos, cheia de ênfase e arrebiques, e não como se o deve entender com o único critério justo e seguro: uma maneira permanente de dizer, de se exprimir o escritor, de acordo com o que quer comunicar e transmitir.
Como não tocasse de frente em tal questão, deixo de parte semelhante ponto e reservo uma resposta mais ampla, detalhada para qualquer crítico ulterior. Veremos, então, se Descartes tem ou não estilo; e se Bossuet é ou não um estilo.
O que, porém, me faz contestar o meu amável correspondente anônimo, é a sua insistência em me falar na Grécia, na Hélade sagrada etc., etc.
Implico solenemente com a Grécia, ou melhor: implico solenemente com os nossos cloróticos gregos da Barra da Corda e pançudos helenos da praia do Flamengo (vide banhos e mar).
Sainte-Beuve disse algures que, de cinquenta em cinquenta anos, fazíamos da Grécia uma ideia nova. Tinha razão.
Ainda há bem pouco o senhor Teodoro Reinach, que deve entender bem dessas coisas de Grécia, vinha dizer que Safo não era nada disso que nós dela pensamos; que era assim como Mme. Sevigné. Devia-se interpretar a sua linguagem misturada de fogo, no dizer de Plutarco, como uma pura exaltação da mulher. A poesia sáfica seria, em relação à mulher, o que o diálogo de Platão é em relação ao homem. Houve escândalo.
Não é este o único detalhe, entre muitos, para mostrar de que maneira podem variar as nossas ideias sobre a velha Grécia.
Creio que, pela mesma época em que o senhor T. Reinach lia, na sessão das cinco Academias reunidas, o resultado das suas investigações sobre Safo, se representou na Ópera, de Paris, um drama lírico de Saint-Säens — Djanira. Sabem os leitores como vinham vestidos os personagens? Sabem? Com o que nós chamamos nas casas das nossas famílias pobres — colchas de retalhos. Li isto em um folhetim do senhor P. Lalo, no Temps.
Esta modificação no trajar tradicional dos heróis gregos, pois se tratava deles no drama, obedecia a injunções das últimas descobertas arqueológicas. O meu simpático missivista pode ver por aí como a sua Grécia é, para nós, instável.
Em matéria de escultura grega, podia eu, com o muito pouco que sei sobre ela, epilogar bastamente. É suficiente lembrar que era regra admitida pelos artistas da Renascença que, de acordo com os preceitos gregos, as obras esculturais não podiam ser pintadas.
É que eles tinham visto os mármores gregos lavados pelas chuvas; entretanto, hoje, segundo Max Collignon, está admitido que as frisas do Partenon eram coloridas.
A nossa Grécia varia muito e o que nos resta dela são ossos descarnados, insuficientes talvez para recompô-la como foi em vida, e totalmente incapazes para nos mostrar ela viva, a sua alma, as ideias que a animavam, os sonhos que queria ver realizados na Terra, segundo os seus pensamentos religiosos.
Atermo-nos a eles, assim variável e fugidia, é impedir que realizemos o nosso ideal, aquele que está na nossa consciência, vivo no fundo de nós mesmos, para procurar a beleza em uma carcaça cujos ossos já se fazem pó.
Ela não nos pode mais falar, talvez nem mesmo balbuciar, e o que nos tinha a dar já nos deu e vive em nós inconscientemente.
Como se vê, o meu correspondente está preso a ideias mortas; e, em matéria de novela, por certas notações que faz, à minha, se não está jungida a um pensamento morto, deixou-se prender por uma generalização que a experiência do gênero não legitima.
Estranha o meu inesperado correspondente que o meu modesto livro fuja à questão de amor; não seja ela o eixo do livro. Mas, caro senhor, essa questão nunca foi primordial no romance.
Nem os antigos, nem os modernos. Nem nos franceses, nem nos espanhóis. Se o senhor me cita Dáfnis e Cloé, eu cito o Satiricon; se o senhor me cita a Princesse de Clèves, eu lhe apresento Lazarillo de Tormes.
Nos grandes mestres modernos, Balzac, Tolstói, Turguêniev, Dostoiévski, quase sempre o amor é levado para o segundo plano; e essa sua generalização de que o primordial do romance, e seu característico, por assim dizer, é tratar de uma aventura de amor, é tão verdadeira e necessária como aquela regra das três unidades, em matéria de drama e tragédia, de que os críticos antigos faziam tanta questão, citando Aristóteles que nunca a tinha estabelecido.
Parece-me que o nosso dever de escritores sinceros e honestos é deixar de lado todas as velhas regras, toda a disciplina exterior dos gêneros, e aproveitar de cada um deles o que puder e procurar, conforme a inspiração própria, para tentar reformar certas usanças, sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as nossas grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens, para soldar, ligar a humanidade em uma maior, em que caibam todas, pela revelação das almas individuais e do que elas têm em comum e dependente entre si.
A literatura do nosso tempo vem sendo isso nas suas maiores manifestações, e possa ela realizar, pela virtude da forma, não mais a tal beleza perfeita da falecida Grécia, que já foi realizada; não mais a exaltação do amor que nunca esteve a perecer; mas a comunhão dos homens de todas as raças e classes, fazendo que todos se compreendam, na infinita dor de serem homens, e se entendam sob o açoite da vida, para maior glória e perfeição da humanidade.
É ideal dos nossos dias que é ainda beleza a palpitar nas suas mais altas manifestações espirituais; e não, como o meu correspondente pensa, o ressurgimento de concepções desaparecidas, de que só conhecemos poucas e raras manifestações exteriores, que só podem entorpecer a marcha da nossa triste humanidade para uma exata e mais perfeita compreensão dela mesma.
Não desejamos mais uma literatura contemplativa, o que raramente ela foi; não é mais uma literatura plástica que queremos, a encontrar beleza em deuses para sempre mortos, manequins atualmente, pois a alma que os animava já se evolou com a morte dos que os adoravam.
Não é isso que os nossos dias pedem; mas uma literatura militante para maior glória da nossa espécie na terra e mesmo no Céu.
O meu correspondente acusa-me também de empregar processos de jornalismo nos meus romances, principalmente no primeiro.
Poderia responder-lhe que, em geral, os chamados processos do jornalismo vieram do romance; mas mesmo que, nos meus, se dê o contrário, não lhes vejo mal algum, desde que eles contribuam por menos que seja para comunicar o que observo; desde que possam concorrer para diminuir os motivos de desinteligência entre os homens que me cercam.
Se conseguirem isso, por pouco que seja, dou-me por satisfeito, pois todos os meios são bons quando o fim é alto; e já Brunetière me disse que o era, ao sonhar em esforçar-me, na medida das minhas forças, para fazer entrar no patrimônio comum do espírito dos meus contemporâneos, consolidando pela virtude da forma tudo o que interessa o uso da vida, a direção da conduta e o problema do nosso destino.
E, como ele queria, assim como querem todos os mestres, eu tento também executar esse ideal em uma língua inteligível a todos, para que todos possam chegar facilmente à compreensão daquilo a que cheguei através de tantas angústias. No mundo, não há certezas, nem mesmo em geometria; e, se alguma há, é aquela que está nos Evangelhos: amai-vos uns aos outros.
Para atingir tão alto escopo, tudo serve; e, como são Francisco Xavier, todos nós, que andamos em missão entre hindus, separados em castas hostis, entre malaios ferozes e pérfidos, entre japoneses que se guerreiam feudalmente; todos nós, dizia eu, só devemos ter a divisa do Santo: “Amplius! Amplius!”. Sim; sempre mais longe!
Rio, 31 — 8 — 16.