A Alexandre Valentim Magalhães

Devia ser já a terceira pessoa que lhe sentava à mesa. Não lhe era agradável aquela sociedade com desconhecidos; mas que fazer naquela segunda-feira de Carnaval, quando as confeitarias têm todas as mesas ocupadas e as cerimônias dos outros dias desfazem-se, dissolvem-se?

Se as duas primeiras pessoas eram desajeitados sujeitos sem atrativos, o terceiro conviva resgatava todo o desgosto causado pelos outros. Uma mulher formosa e bem tratada é sempre bom ter-se à vista, embora sendo desconhecida, ou, talvez, por isso mesmo...

Estava ali o velho Maximiliano esquecido, só moendo cismas, bebendo cerveja, obediente ao seu velho hábito. Se fosse um dia comum, estaria cercado de amigos; mas os homens populares, como ele, nunca o são nas festas populares. São populares a seu jeito, para os frequentadores das ruas célebres, cafés e confeitarias, nos dias comuns; mas nunca para a multidão que desce dos arrabaldes, dos subúrbios, das províncias vizinhas, abafa aqueles e como que os afugenta. Contudo não se sentia deslocado...

A quinta garrafa já se esvaziara e a sala continuava a encher-se e a esvaziar-se, a esvaziar-se e a encher-se. Lá fora, o falsete dos mascarados em trote, as longas cantilenas dos cordões, os risos e as músicas lascivas enchiam a rua de sons e ruídos desencontrados e, dela, vinha à sala uma satisfação de viver, um frêmito de vida e de luxúria que convidava o velho professor a ficar durante mais tempo bebendo, afastando o momento de entrar em casa.

E esse frêmito de vida e luxúria que faz estremecer a cidade nos três dias de sua festa clássica, naquele momento, diminuía-lhe muito as grandes mágoas de sempre e, sobretudo, aquela teimosia e pequenina de hoje. Ela o pusera assim macambúzio e isolado, embora mergulhado no turbilhão de riso, de alegria, de rumor, de embriaguez e luxúria dos outros, em segunda-feira gorda. O “jacaré” não dera e muito menos a centena. Esse capricho da sorte tirava-lhe a esperança de um conto e pouco — doce esperança que se esvaía amargosamente naquele crepúsculo de galhofa e prazer.

E que trabalho não tivera ele, doutor Maximiliano, para fazê-la brotar no seu peito, logo nas primeiras horas do dia! Que chusmas de interpretações, de palpites, de exames cabalísticos! Ele bem parecia um áugure romano que vem dizer ao cônsul se deve ou não oferecer batalha...

Logo que ela lhe assomou aos olhos, como não lhe pareceu certo aquele navegar precavido dentro do nevoento mar do Mistério, marcando rumo para aquele ponto — o “jacaré” — onde encontraria sossego, abrigo, durante alguns dias!

E agora, passado o nevoeiro, onde estava?... Estava ainda em mar alto, já sem provisões quase, e com débeis energias para levar o barco a salvamento... Como havia de comprar bisnagas, confetes, serpentinas, alugar automóvel? E — o que era mais grave — como havia de pagar o vestido de que a filha andava precisada, para se mostrar sábado próximo, na rua do Ouvidor, em toda a plenitude de sua beleza, feita (e ele não sabia como) da rija carnadura de Itália e de uma forte e exótica exalação sexual...

Como havia de dar-lhe o vestido?

Com aquele seu olhar calmo em que não havia mais nem espanto, nem reprovação, nem esperança, o velho professor olhou ainda a sala tão cheia, por aquelas horas, tão povoada e animada de mocidade, de talento e de beleza. Ele viu alguns poetas conhecidos, quis chamá-los, mas, pensando melhor, resolveu continuar só.

O velho doutor Maximiliano não cansou de observar, um por um, aqueles homens e aquelas mulheres, homens e mulheres cheios de vícios e aleijões morais; e ficou um instante a pensar se a nossa vida total, geral, seria possível sem os vícios que a estimulavam, embora a degradem também.

Por esse tempo, então, notou ele a curiosidade e a inveja com que um grupo, de modestas meninas dos arrabaldes, examinava a toilette e os ademanes das mundanas presentes.

Na sua mesa, atraindo-lhes os olhares, lá estava aquela formosa e famosa Eponina, a mais linda mulher pública da cidade, produto combinado das imigrações italiana e espanhola, extraordinariamente estúpida, mas com um olhar de abismo, cheio de atrações, de promessas e de volúpia.

E o velho lente olhava tudo aquilo pausadamente, com a sua indulgência de infeliz, quando lhe veio o pensar na casa, naquele seu lar, onde o luxo era uma agrura, uma dor, amaciada pela música, pelo canto, pelo riso e pelo álcool. Pensou, então, em sua filha, Clôdia — a Cló, em família — em cujo temperamento e feitio de espírito havia estofo de uma grande hetaira. Lembrou-se com casta admiração de sua carne veludosa e palpitante, do seu amor às danças lúbricas, do seu culto à toilette e ao perfume, do seu fraco senso moral, do seu gosto pelos licores fortes; e, de repente e por instantes, ele a viu coroada de hera, cobrindo mal a sua magnífica nudez, com uma pele mosqueada, o ramo de tirso erguido, dançando, religiosamente bêbeda, cheia de fúria sagrada de bacante: “Evoé! Baco!”.

E essa visão antiga lhe passou pelos olhos, quando a Eponina ergueu-se da mesa, tilintando as pulseiras e berloques caros, chamando muito a atenção de Mme. Rego da Silva que, em companhia do marido e da sua extremosa amiga Dulce, amante de ambos, no dizer da cidade, tomavam sorvetes, numa mesa ao longe.

O doutor Maximiliano, ao ver aquelas joias e aquele vestido, voltou a lembrar-se de que o “jacaré” não dera; e refletiu, talvez com profundeza, mas certo com muita amargura, sobre a má organização da nossa sociedade. Mas não foi adiante e procurou decifrar o problema da sua multiplicação em Cló, tão maravilhosa e tão rara. Como é que ele tinha posto no mundo um exemplar de mulher assaz vicioso e delicado como era a filha? De que misteriosa célula sua saíra aquela floração exuberante de fêmea humana? Vinha dele ou da mulher? De ambos? Ou de sua mulher só, daquela sua carne apaixonada e sedenta que trepidava quando lhe recebia as lições de piano, na casa dos pais?

Não pôde, porém, resolver o caso. Aproximava-se o doutor André, com o seu rosto de ídolo peruano, duro, sem mobilidade alguma na fisionomia, acobreada, onde o ouro do aro do pince-nez reluzia fortemente e iluminava a barba sedosa.

Era um homem forte, de largos ombros, musculoso, tórax saliente, saltando; e, se bem tivesse as pernas arqueadas, era assim mesmo um belo exemplar da raça humana.

Lamentava-se que ele fosse um bacharel vulgar e um deputado obscuro. A sua falta de agilidade intelectual, de maleabilidade, de ductilidade, a sua fraca capacidade de abstração e débil poder de associar ideias não impediam fosse ele deputado e bacharel. Ele seria rei, estaria no seu quadro natural, não na câmara, mas remando em ubás ou igaras nos nossos grandes rios ou distendendo aqueles fortes arcos de iri que despejam frechas ervadas com curaro.

Era o seu último amigo, entretanto o mais constante comensal de sua mesa luculesca.

Deputado, como já ficou dito, e rico, representava, com muita galhardia e liberalidade, uma feitoria mansa do Norte, nas salas burguesas; e, apesar de casado, a filha do antigo professor, a lasciva Cló, esperava casar-se com ele, pela religião do Sol, um novo culto recentemente fundado por um agrimensor ilustrado e sem emprego.

O velho Maximiliano nada de definitivo pensava sobre tais projetos; não os aprovava, nem os reprovava. Limitava-se a pequenas reprimendas sem convicção, para que o casamento não fosse efetuado sem a bênção do sacerdote do Sol ou de outro qualquer.

E se isto fazia, era para não precipitar as coisas; ele gostava dos desdobramentos naturais e encadeados, das passagens suaves, das inflexões doces, e detestava os saltos bruscos de um estado para o outro.

— Então, doutor, ainda por aqui? fez o rico parlamentar sentando-se.

— É verdade, respondeu-lhe o velho. Estou fazendo o meu sacrifício, rezando a minha missa... É a quinta... Que toma, doutor?

— Um “madeira”... Que tal o Carnaval?

— Como sempre.

E, depois, voltando-se para o caixeiro:

— Outra cerveja e um “madeira”, aqui, para o doutor. Olha: leva a garrafa.

O caixeiro afastou-se, levando a garrafa vazia e o doutor André perguntou:

— Dona Isabel não veio?

— Não. Minha mulher não gosta das segundas-feiras de Carnaval. Acha-as desenxabidas... Ficaram, ela e a Cló, em casa a se prepararem para o baile à fantasia na casa dos Silvas... Quer ir?

— O senhor vai?

— Não, meu caro senhor; do Carnaval, eu só gosto dessa barulhada da rua, dessa música selvagem e sincopada de reco-recos, de pandeiros, de bombos, desse estrídulo de fanhosos instrumentos de metais... Até do bombo gosto, mais nada! Essa barulhada faz-me bem à alma. Não irei... Agora, se o doutor quer ir... Cló vai de preta mina.

— Deve-lhe ficar muito bem... Não posso ir; entretanto, irei à sua casa para ver a sua senhora e a sua filha fantasiadas. O senhor devia também ir...

— Fantasiado?

— Que tinha?

— Ora, doutor! eu ando sempre com a máscara no rosto.

E sorriu leve com amargura; o deputado pareceu não compreender e observou:

— Mas a sua fisionomia não é tão decrépita assim...

Maximiliano ia objetar qualquer coisa quando o caixeiro chegou com as bebidas, ao tempo em que Mme. Rego da Silva e o marido levantaram-se com a pequena Dulce, amante de ambos, no dizer da cidade em peso.

O parlamentar olhou-os bastante com o seu seguro ar de quem tudo pode. Ouviu que ao lado diziam — à passagem dos três: ménage à trois. A sua simplicidade provinciana não compreendeu a maldade e logo dirigiu-se ao velho professor:

— Jantam em casa?

— Jantamos; e o doutor não quer jantar conosco?

— Obrigado. Não me é possível ir hoje... Tenho um compromisso sério... Mas fique certo que, antes de saírem, lá irei tomar um uisquezinho... Se me permite?

— Oh! doutor! O senhor é nosso melhor amigo. Não imagina como todos lá falam no senhor. Isabel levanta-se a pensar no doutor André; Cló, essa, nem se fala! Até o Caçula, quando o vê, não late; faz-lhe festas, não é?

— Como isso me cumula de...

— Ainda há dias, Isabel me disse: Maximiliano, eu nunca bebi um Chambertin como esse que o doutor André nos mandou... O meu filho, o Fred, sabe até um dos seus discursos de cor; e, de tanto repeti-lo, creio que sei de memória vários trechos dele.

A face rígida do ídolo, com grande esforço, abriu-se um pouco; e ele disse, ao jeito de quem quer o contrário:

— Não vá agora recitá-lo.

— Certo que não. Seria inconveniente; mas não estou impedido de dizer, aqui, que o senhor tem muita imaginação, belas imagens e uma forma magnífica.

— Sou principiante ainda, por isso não me fica mal aceitar o elogio e agradecer a animação.

Fez uma pausa, tomou um pouco de vinho e continuou em tom conveniente:

— O senhor sabe perfeitamente que espécie de força me prende aos seus... Um sentimento acima de mim, uma solicitação, alguma coisa a mais que os senhores puseram na minha vida...

— Pois então, interrompeu cheio de comoção o doutor Maximiliano: à nossa!

Ergueu o copo e ambos tocaram os seus, reatando o parlamentar a conversa desta maneira:

— Deu aula hoje?

— Não. Desci para espairecer e “cavar”. É dura esta vida... “cavar”! Como é triste dizer-se isto! Mas que se há de fazer? Ganha-se uma miséria... Um professor com oitocentos mil-réis o que é? Tem-se a família, representação... uma miséria! Ainda agora, com tantas dificuldades, é que Cló deu em tomar banhos de leite...

— Que ideia! Onde aprendeu isso?

— Sei lá! Ela diz que tem não sei que propriedades, certas virtudes... O diabo é que tenho de pagar uma conta estupenda no leiteiro... São banhos de ouro, é que são! Jogo nos bichos... Hoje tinha tanta fé no “jacaré”...

O caixeiro passava e ele recomendou:

— Baldomero, outra cerveja. O doutor não toma mais um “madeira”?

— Vá lá. Ganhou, doutor?

— Qual! E não imagina que falta me fez!

— Se quer?...

— Por quem é, meu caro; deixe-se disso! Então há de ser assim todo o dia?

— Que tem!... Ora!... Nada de cerimônias; é como se recebesse de um filho...

— Nada disso... Nada disso...

Fingindo que não entendia a recusa, o doutor André foi retirando da carteira uma bela nota, cujo valor nas algibeiras do doutor Maximiliano fez-lhe esquecer em muito a sua desdita no “jacaré”.

O deputado ainda esteve um pouco; em breve, porém, se despediu, reiterando a promessa de que iria até à casa do professor, para ver as duas senhoras fantasiadas.

O doutor Maximiliano bebeu ainda uma cerveja e, acabada que foi a cerveja, saiu vagarosamente um tanto trôpego.

A noite já tinha caído de há muito. Era já noite fechada. Os cordões e os bandos carnavalescos continuavam a passar, rufando, batendo, gritando desesperadamente. Homens e mulheres de todas as cores — os alicerces do país — vestidos de meia, canitares e enduapes de penas multicores, fingindo índios, dançavam na frente ao som de uma zabumbada africana, tangida com fúria em instrumentos selvagens, roufenhos, uns, estridentes, outros. As danças tinham luxuriosos requebros de quadris, uns caprichosos trocar de pernas, umas quedas imprevistas.

Aqueles fantasiados tinham guardado na memória muscular velhos gestos dos avoengos, mas não mais sabiam coordená-los nem a explicação deles. Eram restos de danças guerreiras ou religiosas dos selvagens de onde a maioria deles provinha, que o tempo e outras influências tinham transformado em palhaçadas carnavalescas...

Certamente, durante os séculos de escravidão, nas cidades, os seus antepassados só se podiam lembrar daquelas cerimônias de suas aringas ou tabas, pelo carnaval. A tradição passou aos filhos, aos netos, e estes estavam ali a observá-la com as inevitáveis deturpações.

Ele, o doutor Maximiliano, apaixonado amador de música, antigo professor de piano, para poder viver e formar-se, deteve-se um pouco, para ouvir aquelas bizarras e bárbaras cantorias, pensando na pobreza de invenção melódica daquela gente. A frase, mal desenhada, era curta, logo cortada, interrompida, sacudida pelos rufos, pelo ranger, pelos guinchos de instrumentos selvagens e ingênuos. Um instante, elle pensou em continuar uma daquellas cantigas, em completal-a; e a aria veiu-lhe inteira, ao ouvido, provocando o antigo professor de musica a fazer parar o «Chuveiro de Ouro», afim de ensinar-lhe, aos cantores, o que a imaginação lhe havia trazido á cabeça naquelle momento.

Arrependeu-se que tivesse feito gostar daquella barulhada; porém, o amador de musica, vencia o homem desgostoso. Elle queria que aquella gente entoasse um hymno, uma cantiga, um canto com qualquer nome, mas que tivesse regra e belleza. Mas — logo imaginou — para que? Corresponderia a musica mais ou menos artistica aos pensamentos intimos delles? Seria mesmo a expansão dos seus sonhos, fantasias e dôres?

E, devagar, se foi indo pela rua em fóra, cobrindo de sympathia toda a puerilidade apparente daquelles esgares e berros, que bem sentia profundos e proprios daquellas creaturas grosseiras e de raças tão varias, mas que encontravam naquelle vozeiro barbaro e ensurdecedor meio de fazer porejar os seus soffrimentos de raça e de individuo e exprimir tambem as suas ancias de felicidade.

Encaminhou-se directo para a casa. Estava fechada; mas havia luzes na sala principal, onde tocavam e dansavam.

Atravessou o pequeno jardim, ouvindo o piano. Era sua mulher quem tocava; elle o advinhava pelo seu velouté, pela maneira de ferir as notas, muito docemente, sem deixar quasi perceber a impulsão que os dedos levavam. Como ella tocava aquelle tango! Que paixão punha naquella musica inferior!

Lembrou-se então dos cordões, dos ranchos, das suas cantillenas ingenuas e barbaras, daquelle rythmo especial a ella que tambem perturbava sua mulher e abrazava sua filha. Porque caminho lhes tinha chegado ao sangue e á carne aquelle gosto, aquelle pendôr por taes musicas? Como havia correlação entre ellas e as almas daquellas duas mulheres?

Não sabia ao certo; mas viu em toda a sociedade complicados movimentos de trocas e influencias — trocas de idéas e sentimentos, de influencias e paixões, de gostos e inclinações.

Quando entrou, o piano cessava e a filha descansava, no sofá, a fadiga da dansa lubrica que estivera ensaiando com o irmão. O velho ainda ouviu indulgentemente o filho dizer: é assim que se dansa nos Democraticos.

Cló logo que o viu, correu a abraçal-o e, abraçada ao pai, perguntou:

— André não vem?

— Virá.

Mas, logo, em tom severo, accrescentou:

— Que tem você com André?

— Nada, papae; mas elle é tão bom...

Quiz Maximiliano ser severo; quiz apossar-se da sua respeitavel autoridade de pai de familia; quiz exercer o velho sacerdocio de sacrificador aos deuses Penates; mas era sceptico demais, duvidava, não acreditava mais nem no seu sacerdocio nem no fundamento de sua autoridade. Ralhou, entretanto, frouxamente:

— Você precisa ter mais compostura, Cló. Veja que o doutor André é casado e isto não fica bem.

A isto, todos entraram em explicações. O respeitavel professor foi vencido e convencido de que a affeição da filha pelo deputado era a cousa mais innocente e natural deste mundo. Foram jantar. A refeição foi tomada rapidamente. Fred, comtudo, poude dar algumas informações sobre os prestitos carnavalescos do dia seguinte. Os Fenianos perderiam na certa. Os Democraticos tinham gasto mais de sessenta contos e iriam pôr na rua uma cousa nunca vista. O carro do estandarte que era um templo japonez, havia de fazer um bruto successo. Demais, as mulheres eram as mais lindas, as mais bonitas... Estariam a Alice, a Charlotte, a Lolita, a Carmen...

— Ainda toma muito chloral? perguntou Cló.

— Ainda, retrucou o irmão; e emendou: vai ser um lindeza, um triumpho, á noite, com luz electrica, nas ruas largas...

E Cló, por instantes, mordeu os labios, suspendeu um pouco o corpo e viu-se ella tambem, no alto de um daquelles carros, illuminada pelos fogos de bengala, recebida com palmas, pelos meninos, pelos rapazes, pelas moças, pelas burguezas e burguezes da cidade. Era o seu triumpho, a méta de sua vida; era a proliferação imponderavel de sua belleza em sonhos, em anceios, em idéas, em violentos desejos naquellas almas pequenas, sujeitas ao imperio da convenção, da regra e da moral. Tomou a cerveja, todo o copo de um hausto, limpou a espuma dos labios e o seu ligeiro buço surgiu lindo sobre os breves labios vermelhos. Em seguida, perguntou ao irmão:

— E essas mulheres ganham?

— Qual! Você não vê que é uma honra, respondeu-lhe o irmão.

E o jantar acabou sério e familiar, embora a cerveja e o vinho não tivessem faltado aos devotos de cada uma das duas bebidas.

Logo que a refeição acabou, talvez uns vinte minutos após, o doutor André se fazia annunciar. Desculpou-se com as senhoras; não pudera vir jantar, questões politicas, uma conferencia... Pedia licença para offerecer aquellas pequenas lembranças de Carnaval. Deu uma pequena caixa a D. Izabel e uma maior á Cló. As joias sahiram dos escrinios e faiscaram orgulhosamente para todos os presentes deslumbrados. Para a mãe, um annel; para a filha, um bracelete.

— Oh, doutor! fez D. Izabel! O senhor está a sacrificar-se e nós não podemos consentir nisto...

— Qual, D. Izabel! São falsas, nada valem... Sabia que D. Clodia ia de preta mina e lembrei-me trazer-lhe esse enfeite...

Cló agradeceu sorridente a lembrança e a suave bocca quiz fixar demoradamente o longo sorriso de alegria e agradecimento. E voltaram a tocar. D. Isabel poz-se ao piano e, como tocasse depois da sobremesa, hora da melancolia e das discussões transcendentes, como já foi observado, executou alguma cousa triste.

Chegava a occasião de se prepararem para o baile á fantasia que os Silvas davam. As senhoras retiraram-se e só ficaram, na sala, os homens, bebendo Wisky. André, impaciente e desattento; o velho lente, indifferente e compassivo, contando historias brejeiras, com vagar e cuidado; o filho, sempre a procurar caminho para exhibir o seu saber em cousas carnavalescas. A conversa ia cahindo, quando o velho disse para o deputado:

— Já ouviu a «Bamboula» de Gottschalk, doutor?

— Não... Não conheço...

— Vou tocal-a.

Sentou-se ao piano, abriu o album onde estava a peça e começou a executar aquelles compassos de uma musica negra de Nova-Orleans que o famoso pianista tinha filtrado e civilisado.

A filha entrou, linda, fresca, veludosa, de panno da Costa ao hombro, trunfa, com o collo inteiramente nú, muito cheio e marmoreo, separado do pescoço modelado, por um collar de falsas turquezas. Os braceletes e as missangas tilintavam no peito e nos braços, a bem dizer totalmente despidos; e os bicos de crivo da camisa de linho rendavam as raizes dos seios duros que mal supportavam a alvissima prisão onde estavam retidos.

Ainda poude requebrar, aos ultimos compassos da «Bamboula», sobre as chinellas que occupavam a metade dos pés; e toda risonha sentou-se por fim, esperando que aquelle Salomão de pince-nez de ouro lhe dissesse ao ouvido:

«Os teus labios são como uma fita de escarlate; e o teu fallar é doce. Assim como é o vermelho da romã partida, assim é o nacar das tuas faces; sem fallar no que está escondido dentro».

O doutor Maximiliano deixou o tamborete do piano e o deputado, bem perto de Clodia, se não fallava como o rei Salomão á rainha de Sabá, dilatava as narinas para sorver toda a exhalação acre daquella moça, que mais capitosa se fazia dentro daquelle vestuario de escrava desprezada.

A sala encheu-se de outros convidados e a sessão de musica veiu a cair na canção e na modinha. Fred cantou e Cló, instada pelo doutor André, cantou tambem. O automovel não tinha chegado; ella tinha tempo...

D. Isabel acompanhou; e a moça, pondo tudo que havia de seducção na sua vóz, nos seus olhos pequenos e castanhos, cantou a «Canção da Preta Mina»:

Pimenta de cheiro, giló, quimbombô;
Eu vendo barato, mi compra yôyô!

Ao acabar, era com prazer especial, cheia de dengues nos olhos e na vóz, com um longo gozo intimo que ella, sacudindo as ancas e pondo as mãos dobradas pelas costas na cintura, curvava-se para o dr. André e dizia vagamente:

Mi compra Yoyô!

E repetia com mais volupia, ainda uma vez:

Mi compra Yoyô!