Antes de irmos direito ao centro da ação, vejamos por que evolução do destino se operou o casamento de Estela.

Poucos poderiam supor, nos fins de 1866, que a campanha se protrairia ainda cerca de quatro anos. O cálculo do general Mitre, relativo aos três meses de Buenos Aires a Assunção, tinha já caído, é certo, no abismo das ilusões históricas. Proclamações são loterias; a fortuna as faz sublimes ou vãs. A do general argentino, que era já uma afirmação errada, exprimiu contudo, no seu tempo, a convicção dos três povos. Do primeiro embate com o inimigo viu-se que a campanha seria rija e longa; a ilusão desfez-se; ficou a realidade, que nem por isso encaramos com rosto aflito. Não obstante, era difícil presumir, em outubro de 1866, que a guerra chegasse até março de 1870. Supunha-se que um esforço ingente bastaria a reparar Curupaiti, a derrubar Humaitá, a vencer o ditador, não nos três meses do general Mitre, mas em muito menos tempo do que viria a ser na realidade. Isto posto, não admira que Valéria receasse a cada instante a terminação da guerra e a pronta volta do filho. Se tal coisa acontecesse, ela teria dado um golpe inútil, e o fogo podia renascer das cinzas mal apagadas. Valéria preferia as soluções radicais. Uma vez arredado o filho, viu a necessidade de aniquilar as últimas esperanças, e o mais seguro meio era casar Estela. Assim procedendo, satisfaria também a afeição que tinha à moça, afeição que nunca lhe diminuíra. Sabia que entre Estela e o pai havia contrastes morais de difícil conciliação. Cada um deles falava língua diferente, não podiam entender-se nunca, sobretudo (dizia ela consigo) na escolha de um consorte.

Dois meses depois do embarque de Jorge, Valéria mandou chamar o Sr. Antunes a Santa Teresa, onde tinha uma casa de verão. O recado foi escrito, circunstância que lhe deu certa solenidade. Nunca até então a viúva lhe escrevera. O Sr. Antunes leu e releu o bilhete, mostrou-o duas ou três vezes à filha, esteve tentado de mostrá-lo ao vizinho fronteiro. Enquanto se vestia, pô-lo sobre a mesa, lançando-lhe a furto os olhos, pesando-lhe de cor as expressões corteses, espremendo-as, dissecando-as. Vestido, guardou-o depois cuidadosamente na algibeira. Na rua, separou-se de um importuno dizendo enfaticamente aonde ia. Quanto ao motivo do recado, não atinava qual fosse, nem teve muito tempo para isso. Cogitou entretanto, e supôs que se tratava de algum obséquio que ela lhe ia encomendar.

Era obséquio, e não lho pedia a viúva; prestava-o, e não se demorou muito em dizê-lo. Ao cabo de dez palavras, pediu-lhe licença para dotar Estela.

— Não quisera fazê-lo, sem o seu consentimento, concluiu ela; por isso o mandei chamar.

Do mais ínfimo a que um homem haja baixado, a natureza pode fazê-lo grave, ainda que por um só minuto. Esse minuto teve-o o pai de Estela. Imóvel e sem fala a princípio; depois, ainda sem fala, mas não já imóvel, o Sr. Antunes revelou em seu rosto, aliás vulgar, uma comoção digna. A dignidade, porém expirou com o silêncio. Quando ele abriu a boca para agradecer a prova de afeição que a viúva lhe dava à filha, a alma readquiriu o trejeito habitual. Valéria cortou-lhe o discurso com uma arte tão superior, que o pai de Estela antes sentiu do que compreendeu. A viúva tinha a verdadeira generosidade, que consiste menos em prestar o obséquio do que em dissimulá-lo; disse-lhe que, dotando Estela, cumpria um desejo do desembargador, e, sem esperar pelo necrológio que o Sr. Antunes provavelmente ia recitar, fez um longo e afetuoso inventário das qualidades da moça.

— É muito boa filha, concluiu a viúva; tem qualidades dignas de todo o apreço, e, além do mais, sou amiga dela.

— Isso, minha senhora, é a maior fortuna que lhe podia caber. Quanto a ser boa filha, não é por vaidade que o digo, mas creio que a senhora tem razão. Saiu à mãe, que era uma santa alma.

— Estela não o é menos. É bonita! Enfim pode vir a amar alguém, não lhe parece?

— Pode, pode, assentiu o Sr. Antunes. Que eu, verdadeiramente, não sei se ela já não amará. É tão calada! Ultimamente parece andar triste...

— Triste?

— Distraída... assim, como pessoa que não tem o pensamento sossegado. Não sei se aquilo é paixão, ou doença. Doença não creio que seja, porque ela é forte e tem boa aparência. Coitadinha! Mas sempre alegre... isto é, alegre não... quero dizer, não anda sempre triste... ou por outra...

Valéria sorriu mentalmente daquela confusão que o Sr. Antunes fazia, e que atribuiu ao alvoroço que naturalmente a notícia do dote lhe causara; interrompeu-o dizendo que fosse lá com a filha.

Estela ouviu daí a meia hora a notícia da generosidade da viúva, que o pai se apressou a ir dar-lhe, e, contra a expectação deste, ouvia-a calada e severa. Não achando a explosão de alegria que esperava, o Sr. Antunes abanou desanimado a cabeça.

— Não te entendo, filha! replicou ele. Hás de dizer o que é que queres ser neste mundo. Não és rica, nem menos que rica; não tens a menor esperança no futuro. Eu não te posso deixar nada, porque nada tenho. Há uma senhora, que te estima, que te faz um benefício, e tu recebes isto como se fosse uma injúria.

A observação do pai chamou a filha à realidade da situação.

— Papai sabe que não sou de muito riso, disse ela; pode ficar certo de que me alegrou muito a notícia que me deu.

Não alegrou nada. Nunca lhe pesara tanto a fatalidade da posição. Depois do episódio da Tijuca, parecia-lhe aquele favor uma espécie de perdas e danos que a mãe de Jorge liberalmente lhe pagava, uma água virtuosa que lhe lavaria os lábios dos beijos que ela forcejava por extinguir, como lady Macbeth a sua mancha de sangue. Out, damned spot! Este era o seu conceito; esta era também a sua mágoa. A altivez com que procedera desde aquela manhã de algum modo lhe levantara o orgulho, que o ato inconsiderado de Jorge havia por um instante humilhado. Mas a ação da viúva, por mais espontânea que fosse, tinha aos olhos da moça a conseqüência de fazer decorrer o beneficio da mesma origem da afronta. Estela não distinguia entre os bens da mãe e do filho. Era tudo a mesma bolsa; e dali é que lhe vinha o dote.

Com essa idéia opressiva entrou ela em casa da viúva, cuja recepção lhe desabafou o espírito do mais espesso de suas preocupações. Valéria beijou-a, com um gesto mais maternal que protetor. Nem lhe deixou concluir a frase de agradecimento; cortou-a com uma carícia; depois falou-lhe da beleza, das ocupações, de cem coisas alheias ao objeto que as reunia, dissimulação generosa, que Estela compreendeu, porque também possuía o segredo dessas delicadezas morais.

Quinze ou vinte dias depois, Valéria interrogou diretamente Estela, e a resposta que obteve foi contrária a suas esperanças.

— Não amo ninguém, disse a moça; e provavelmente não amarei nunca.

— Por quê? replicou vivamente a viúva.

Estela sorriu.

— Podia dizer-lhe, respondeu ela, que não tenho coração...

— Seria mentir. Mas vais talvez dizer que um bom marido não é coisa fácil de achar.

— Isso.

— Tens razão até certo ponto. De todas as aves raras a mais rara é um bom marido; mas o que é raro não é impossível. Meteu-se-me em cabeça que hei de descobrir uma jóia. Se eu a encontrar, que farás tu?

— Aceito, disse a moça depois de um instante.

— Assim, não; não quero que a aceites sem vontade; hás de aceitá-lo com amor... porque eu não creio que não tenhas coração; é faceirice de moça bonita. Deixa ver, — continuou a viúva colocando-lhe a mão no peito; — tens, oh! tens um coração que parece querer despedaçar-te o peito. Estela, tu estás doente!

— Que idéia! exclamou a moça rindo. Se eu vendo saúde! Não estou doente, estou comovida. Tratemos do noivo. Não me peça que o ame apaixonadamente, porque eu não nasci para isso. Minha natureza é fria. Mas um pouco de estima, certo interesse...

— Justo: a semente do amor. O tempo se encarregará de fazer a árvore.

Durante três meses não falaram no assunto. No fim desse tempo, tendo Valéria descido de Santa Teresa, Estela foi passar algumas semanas na rua dos Inválidos. — Ainda nada? perguntou a viúva logo que a viu. — Coisa nenhuma, foi a resposta. Dada a situação de uma e outra, não era fácil a Valéria encontrar-lhe o noivo desejado a menos de o designar a própria noiva, e essa era a mais improvável de todas as hipóteses.

Entretanto, a convivência fez renascer entre ambas alguns dos hábitos antigos. Valéria tornou a sentir a necessidade de a ter consigo, de a conversar, de depositar nela suas idéias e enxaquecas. Estela oferecia todas as vantagens de uma velha amiga, com a circunstância de ser moça, e ainda mais, a de ser bonita, qualidade simpática à viúva, que fora uma das belas mulheres de seu tempo. Nada lhes impedia restaurar inteiramente a situação anterior, a não ser a memória do passado recente. Era isso que ainda estabelecia entre ambas tal ou qual cautela, tal ou qual separação, que o Sr. Antunes chegava a suspeitar às vezes, sem poder compreender nunca. Não falavam de Jorge, nem da guerra, nem de coisa que pudesse reviver a lembrança do passado.

Começado o verão de 1867, Valéria transportou-se a Santa Teresa, onde Estela foi algumas vezes. Numa dessas vezes encontrou ali a filha de Luís Garcia, que caminhava para os treze anos, e concluía os estudos de colégio. Houve um instante de hesitação entre as duas; Iaiá, que era ainda a mesma criatura travessa e lépida, sentiu-se acanhada diante da gravidade de Estela, mas esse instante foi curto e a afeição imediata. Acabado o verão, a viúva resolveu não descer à rua dos Inválidos; e, com o pretexto ou motivo de que em Santa Teresa ficava mais só, alcançou que Estela fosse lá estar algum tempo. Estela subiu em março.

Já então Iaiá entrara na intimidade da casa, menos ainda pelo que podia haver — e havia, — simpático e atraente em sua pessoa, do que pelo esforço próprio. A sagacidade da menina era a sua qualidade mestra: assim, viu depressa o que era menos agradável, para evitá-lo e o que o era mais, para cumpri-lo. Essa qualidade ensinava-lhe a sintaxe da vida, quando outras ainda não passam do abecedário, onde morrem muita vez. Obtida a chave do caráter de Valéria, Iaiá abriu a porta sem grande esforço.

Ia lá quase todos os domingos, às tardes, e algumas vezes de manhã, com tal ou qual repugnância do pai, para quem os domingos eram os dias de ouro, e só o eram com a condição de exclusivismo. Luís Garcia cedeu, não por causa da viúva, mas para satisfazer a filha, que parecia ter prazer em freqüentar a casa. É ainda criança, pensou ele; convém dar-lhe festas. Quando Iaiá jantava em casa de Valéria, Luís Garcia, ou também jantava, ou ia buscá-la à noite, e trazia-a depois de uma hora de conversa. A presença de Estela tornou ainda mais aprazíveis à mocinha aquelas visitas, e, dentro de pouco tempo, era a afeição de Estela que mais lhe ocupava o coração.

A lei dos contrastes tinha ligado essas duas criaturas, porque tão petulante e juvenil era a filha de Luís Garcia, como refletida e plácida a filha do Sr. Antunes. Uma ia para o futuro, enquanto a outra vinha já do passado; e se Estela tinha necessidade de temperar a sua atmosfera moral com um raio da adolescência da outra, Iaiá sentia instintivamente que havia em Estela alguma coisa que sarar ou consolar.

Um dia, Iaiá foi encontrar Estela ao pé de uma mesa, com um álbum de retratos aberto diante de si. A moça estava tão embebida, que só deu pela presença de Iaiá, quando esta parou do outro lado da mesa e inclinou os olhos para o álbum. Estela teve um pequeno sobressalto, mas dominou-se logo.

— Seu pai tem uma fisionomia de bom coração, disse ela.

— Não é verdade? retorquiu a menina com entusiasmo.

Efetivamente, uma das páginas do álbum continha o retrato de Luís Garcia; mas na outra página estava o retrato de Jorge, um dos três ou quatro que a viúva possuía na coleção. Iaiá, que adorava o pai, achou que a observação de Estela era a mais natural do mundo, e não olhou sequer para a outra fotografia. Estela fechou depressa o álbum com a mão trêmula, e mal pôde sorrir à insistência com que Iaiá voltou àquele assunto. Tinha o seio ofegante e o olhar vago, remoto, esvaído nas campanhas do sul. O coração batia-lhe violentamente. Mas essa comoção não durou mais de três a quatro minutos.

— A senhora podia casar-se com papai, disse a menina depois de olhar algum tempo para a outra.

Estela teve novo sobressalto, mas dessa vez era só espanto. Como Iaiá a abraçasse pela cintura, ela inclinou o rosto sobre o rosto da menina, e perguntou sorrindo:

— Tinhas muita vontade de ser minha enteada?

— Tinha.

Estela abanou a cabeça, com um gesto, não de negativa, mas de incredulidade. Já conhecia alguma coisa do caráter de Luís Garcia; rigorosamente era um esposo aceitável. Via nele um homem de afeições plácidas, medíocres, mas sinceras. Via-o respeitoso sem abatimento, polido sem afetação, falando pouco, mas com alguma idéia, em todo o caso com muita oportunidade, vivendo enfim para si e para a filha. De tudo o que observava concluía que a sobriedade era a lei moral desse homem, e que à taça da vida não pedia mais do que alguns goles, poucos. Que importa? A vida conjugal é tão-somente uma crônica; basta-lhe fidelidade e algum estilo. Conquanto houvesse algumas semelhanças entre ambos, havia também diferenças, mas Estela podia fiar do tempo, que ajusta os contrastes. E, não obstante, se o marido era aceitável, não lhe parecia que fosse possível. A gravidade exterior como que o rodeava de uma atmosfera impenetrável.

Iaiá não insistiu; mas dois ou três domingos depois, estando todos na chácara, interrompeu a conversa geral para perguntar a Estela se deveras lhe tinha afeição.

— Já disse que sim, acudiu Estela.

— Mas gosta muito de mim?

— Muito, repetiu Estela prolongando a primeira sílaba.

— Por que não vem morar comigo?

Riram-se os outros, Estela beijou-a na testa. Ficando sós, a viúva e Estela jogaram uma partida de cartas, mas jogaram sem atenção; depois tomaram chá, mas sem apetite; finalmente dormiram, mas sem sono. Talvez a mesma idéia as preocupava. No dia seguinte, Estela perguntou sorrindo à viúva:

— Se eu lhe disser que já achei um projeto de marido?

— Quem?

— O Luís Garcia.

Valéria apertou-lhe as mãos.

— Excelente homem, disse ela; marido digno e capaz. Conheço-o há muitos anos; nunca desmereceu da nossa estima. E... amam-se?

— Isso agora é mais complicado, replicou Estela; não posso dizer que o amo; contudo, desejaria ser sua mulher. Talvez ele não deseje ser meu marido, mas é por isso mesmo que a consulto e lhe peço que me diga, uma vez que aprova a escolha, se posso esperar reciprocidade e se devo...

— Não deves fazer nada; incumbo-me de tudo.

Valéria não ocultou o contentamento. Não lhe tinha ocorrido nunca a idéia de os casar; Iaiá fê-la nascer, Estela abriu-a em flor; só faltava o fruto, e era justamente a parte difícil, porque a índole de Luís Garcia afigurava-se-lhe inteiramente avessa ao desejo de contrair segundas núpcias. Mas Valéria não desanimou. Não se pode dizer que ele seja o ideal de todas as noivas, pensava ela; não tem a expansão nem o verdor da primeira idade; mas deve ser um excelente marido. Luís Garcia tinha agora melhor posição. Obtivera uma promoção de emprego, e mediante isso, e alguns trabalhos extraordinários que lhe eram confiados, pôde ficar inteiramente a coberto das intempéries da vida. Estabelecera o futuro da filha e restaurara as alfaias da casa, não por si, mas com a intenção de ser mais agradável a Iaiá.

Estela, entretanto, impunha uma condição.

— Não desejo parecer que me ofereço, disse ela; seria desairoso para um e para outro, e não seria a realidade.

— Que te ofereces, não; mas quem me pode impedir de ter adivinhado que o amas? disse a viúva maliciosamente.

— Ou que o aprecio, emendou Estela. Para um bom casamento não é preciso mais.

Luís Garcia não ficou pouco admirado quando Valéria daí a dias lhe perguntou se não tinha vontade de passar a segundas núpcias. Sorriu e ergueu os ombros; mas, insistindo a viúva, respondeu que a idéia de casar era já serôdia para ele.

— Não diga isso, tornou Valéria. Iaiá está quase moça, vai deixar o colégio. O senhor vive só, e, tendo de dar companhia à sua filha, é melhor que lhe dê uma madrasta.

Luís Garcia abanou resolutamente a cabeça.

— Não tenho vocação para o casamento, disse ele, depois de uma pausa; minha verdadeira vocação é o celibato.

— Foi por isso que enviuvou?

— Casei-me uma vez, é verdade, mas não foi por amor; além de que, era rapaz.

— Quando teimo em alguma coisa, é difícil que não vença, disse a viúva depois de alguns instantes. Há duas pessoas de quem gosto muito, ela e o senhor, ambas dignas uma de outra; e eu entendi que as devia casar, e hei de casá-las. Por que está a sorrir com esse ar incrédulo?

Como Luís Garcia não respondesse e continuasse a sorrir, Valéria ergueu-se e foi até a varanda, donde se olhava para a chácara; depois voltou-se para dentro.

— Ande ver sua noiva, disse ela.

Luís Garcia foi até à varanda; a viúva apontou-lhe para o grupo de Estela e Iaiá.

Na chácara havia um canteiro circular, plantado de grama, no centro do qual jorrava a água de um repuxo. A bacia deste era orlada de plantas, cujas folhas largas, rajadas umas de escarlate, outras de branco, interrompiam a monotonia da relva. Dessas folhas colhera Estela algumas, entretecera os talos formando uma capela, a pedido de Iaiá. Quando Luís Garcia chegou à janela, a moça concluía o difícil trabalho. Uma vez pronto, Iaiá, que olhava para ela, infantilmente ansiosa, inclinou a cabeça, e Estela cingiu-a com a grinalda rústica; depois recuou alguns passos, aproximou-se outra vez, consertou-a melhor. As folhas caíam-lhe sobre os ombros irregularmente, ou erguiam-se sobre a cabeça, e o todo daria idéia de uma náiade casquilha. Estela mirou-a alguns instantes; inclinou-se para ela e beijou-a repetidas vezes. Iaiá quis pagar-lhe o trabalho e a carícia devolvendo-lhe a grinalda, e colocando-lha ela mesma na cabeça. Estela recusou, mas, como a menina insistisse, batendo impacientemente o pé, cedeu ao desejo infantil. Inclinou-se; Iaiá, que trepara a um banco cingiu-lhe a cabeça, como a outra lhe fizera, e, satisfazendo o seu capricho, saltou do banco ao chão.

Nesse momento, como Valéria falava a Luís Garcia, não viram estes dois que a menina, saltando precipitadamente e mal, caíra na areia; só deram pelo desastre ouvindo um pequeno grito angustioso de Estela. A moça correra à menina para a fazer levantar.

A queda fora pequena; Iaiá procurava sorrir, mas um seixo que havia no chão, e sobre o qual caíra o rosto, fizera-lhe uma leve escoriação na face.

— Não foi nada, dizia ela.

— Nada! Você feriu-se... Ora, isto! Papai que há de dizer... Anda cá.

Estela levou a menina pela mão até o repuxo, molhou o lenço na água; lavou-lhe o sangue da face, inclinada sobre ela, que sorria voluntariamente. Nesse momento, Luís Garcia, que havia descido logo, chegou ao grupo das duas.

— Não foi nada, papai, disse Iaiá lendo no rosto do pai o motivo que o trouxera; fui pular do banco e caí. Foi bem feito; é para eu não ser travessa.

Luís Garcia estendera a mão direita sobre a cabeça da filha e examinava-lhe a escoriação, que era pouco mais de nada. Tranqüilizou-se e repreendeu-a levemente. Estela, que interrompera a operação, concluiu-a dizendo que o caso era de pouca monta, mas podia ter sido, mais grave. Luís Garcia agradeceu-lhe o cuidado e o obséquio.

— Demais, a culpada fui eu, disse Estela, e sem desculpa, porque não sou criança. Vamos? continuou ela pegando na mão da menina.

— Então? perguntou a viúva a Luís Garcia logo que este voltou a ter com ela.

— Não falemos nisso, ou faça-me um milagre, disse ele secamente.

Não obstante a comoção que lhe ficou do procedimento afetuoso de Estela, em relação a Iaiá, Luís Garcia riu no dia seguinte, ao lembrar-lhe a proposta de casamento. Quando lá voltou, não ouviu falar mais em semelhante assunto, nem Estela lhe deu a entender a menor pretensão. Pareceu-lhe que Valéria consultara apenas o seu desejo particular.

Tratando a moça de perto, Luís Garcia havia já observado duas coisas: primeiro, o resguardo com que ela procedia, sem ostentar a intimidade de Valéria, nem cair nos ademanes da servilidade; depois, um ar de tristeza, que era a sua feição habitual. Concluiu que Estela devia padecer ou ter padecido alguma vez. Apreciou, além disso, algumas de suas qualidades morais. Supô-las verdadeiras, mas supô-las também caducas, como as graças do rosto ou como a flor do campo; com a diferença, dizia ele, — que há um prazo fatal para que as graças percam o primitivo frescor, e a flor expire o seu último cheiro, — ao passo que a natureza social tem a decrepitude precoce, e um princípio de corrupção, que destrói em breve termo todas as florescências do primeiro sol.

Estela não desistira da idéia e cogitava um meio de chegar à execução, não obstante a confiança da viúva, que lhe dizia: — Descansa; a rede está lançada. Era justamente essa idéia de rede, que repugnava ao espírito direto e simples de Estela. Entretanto, cada dia que passava vinha confirmar a eleição da moça.

O resto foi obra de Iaiá, obra dividida em duas partes, uma voluntária, outra inconsciente. Voluntária, porque também a menina, no silêncio laborioso de seu cérebro, construíra o projeto de os unir, e o dissera mais de uma vez a um e a outro. Inconsciente, porque o amor que a ligava a Estela, foi a mais poderosa força que modificou o pai. Era uma afeição intensa a dessas duas criaturas; ao passo que Iaiá dava a Estela uma porção de ternura de filha, Estela achava no amor da menina uma antecipação dos prazeres da maternidade. Luís Garcia testemunhou esse movimento recíproco e, por assim dizer, fatal. Se Iaiá devesse ter madrasta, onde a acharia mais completa? Discreta, moderada, superior a seus anos, Estela tinha as condições necessárias para esse delicado papel. A primeira insinuação da viúva foi a causa primordial; mas o tempo, a convivência, a afeição das duas, a necessidade de dar segunda mãe à menina, e antes legítima que mercenária, finalmente a certeza de que a Estela não repugnava a solução, tais foram os primeiros elementos da decisão de Luís Garcia.

Faltava só o milagre, e o milagre veio. Iaiá adoeceu um dia em casa de Valéria, e a doença, posto que não grave nem longa, deu ocasião a que Estela manifestasse de modo inequívoco toda a ternura de seu coração. Luís Garcia foi testemunha da dedicação silenciosa e contínua com que Estela tratou da doença. Esse último espetáculo desarmou-o de todo. Entre eles, o casamento não era a mesma coisa que costuma ser para outros; nada tinha das alegrias inefáveis ou das ilusões juvenis. Era um ato simples e grave. E foi o que Estela lhe disse a ele, no dia em que trocaram reciprocamente as primeiras promessas.

— Creio que nenhuma paixão nos cega, e se nos casamos é por nos julgarmos friamente dignos um do outro.

— Uma paixão de sua parte, em relação à minha pessoa, seria inverossímil, confessou Luís Garcia; não lha atribuo. Pelo que me toca, era igualmente inverossímil um sentimento dessa natureza, não porque a senhora o não pudesse inspirar, mas porque eu já o não poderia ter.

— Tanto melhor, concluiu Estela; estamos na mesma situação e vamos começar uma viagem com os olhos abertos e o coração tranqüilo. Parece que em geral os casamentos começam pelo amor e acabam pela estima; nós começamos pela estima; é muito mais seguro.

O casamento foi aprovado pelo Sr. Antunes, com a mesma alma com que um réu sancionaria a própria execução. Não somente se lhe iam embora esperanças muito menos modestas, como lhe repugnava o caráter do genro. Não cedeu sem hesitação e luta; hesitação perante a viúva, luta em relação à filha; mas cedeu, porque ele nascera para não resistir. Hábil, no entanto, em espremer algum lucro dos males inevitáveis, uma vez perdida a confiança na eficácia da recusa, aceitou o acordo, não somente com aparência cordial, mas ainda entusiasta.

— O dote faz-lhe foscas, gemia ele filosoficamente.

A viúva serviu de madrinha a Estela. Sua alegria era sincera, e tanto ou quanto desinteressada. Quase se não lembrava já do perigo que, dois anos antes, lhe atordoara o espírito. As cartas de Jorge eram tão livres de qualquer opressão, tão exclusivamente militares! Além disso, a consciência ficava satisfeita de um desenlace que de certo modo compensava a perda, se alguma perda havia causado a Estela. Finalmente, a satisfação com que a viu aceitar casamento, aliás sugerido por ela própria, e a felicidade de que foi testemunha durante os primeiros tempos, deram-lhe a convicção de que a moça estava já inteiramente isenta, em relação ao filho. Não obstante a paixão deste, tinha fé que o tempo fizera a sua obra.