Iaiá foi ter com Raimundo.

— Entregaste?

— Não entreguei, disse o preto.

Iaiá ficou alguns instantes imóvel. Raimundo tirou a carta do bolso, e esteve com ela nas mãos, sem atrever-se a levantar os olhos; levantou-os enfim e disse resolutamente:

— Raimundo não achou bonito que Iaiá escrevesse àquele homem, que não é seu pai nem seu noivo, e voltou para falar a nhanhã Estela

— Dê cá, disse a moça secamente; não é preciso.

Raimundo entregou-lhe a carta, e sacudiu a cabeça encanecida, como se quisera repelir os anos que sobre ela pesavam e retroceder ao tempo em que Iaiá era uma simples criança, travessa e nada mais. Tinha-lhe custado a resolução; três vezes investira a porta de Procópio Dias para obedecer à filha do seu antigo senhor, e três vezes recuara, até que venceu nele o pressentimento, — uma coisa que lhe martelava no coração, dizia ele daí a pouco a Estela, quando lhe referiu tudo.

Estela não se deteve mais. Na carta, que escreveu a Jorge, disse que a enteada era apenas uma menina romanesca, desconfiada e curiosa; queria desfazer o casamento, porque supunha não ser amada com ardor igual ao seu. — "Iaiá adora-o, concluiu Estela, e não se sente adorada. Venha prostrar-se ao pé do altar, e terá em mim a mais piedosa sacristã."

Iaiá teve notícia da carta, e já tarde para opor qualquer objeção. O primeiro impulso foi agradecer a pia fraude da madrasta; mas a alma, picada por um resto de ciúme, depressa conteve o impulso, e a única resposta da moça foi um gesto de acanhamento e um silêncio largo. Ouviu-a depois sem azedume nem impaciência, atenta à menor hesitação que lhe truncasse a palavra, ou à mínima sombra de desgosto que lhe velasse os olhos. A verdade é que a ternura da madrasta e a jovialidade recente de seus modos traziam certa nota desusada e violenta, e esse excesso fazia refletir a enteada.

Entretanto, a carta de Estela chegou às mãos de Jorge, que a leu duas vezes para conseguir entender-lhe o sentido. A explicação tinha o defeito de ser um pouco sutil; mas a alma de Jorge conservava sempre uma porta aberta aos sentimentos extraordinários. Demais, qualquer explicação favorável era um benefício, e aquela tinha a vantagem de afagar o amor-próprio, além de vir ajustada com o espírito inquieto e súbito da noiva. Leu a carta sem cotejar o texto com a assinatura, sem atentar naquela sacristã em cujos ombros quisera outrora atar a veste sacerdotal.

Nessa mesma noite foi à casa da noiva, que o recebeu sem contentamento nem mortificação, um pouco lacônica e meditativa. Nem um nem outro aludiu aos sucessos últimos; fê-lo Estela com muita pertinência e tato. Não obstante, como a explicação da viúva não correspondia exatamente à realidade das coisas, a situação ficou ainda obscura e vaga, e porventura exagerou o acanhamento recíproco. A persuasão de que Iaiá exigia da parte dele maior intensidade de sentimento, não inclinara o espírito de Jorge a nenhuma ostentação teatral, — mas acabou por lhe infundir deveras maior ternura, e aumentou a vitalidade de um sentimento, que é a forma desinteressada do egoísmo, — a felicidade de fazer outrem feliz.

— Marquemos o casamento para esta semana, disse Estela na noite de um domingo.

— Ainda não, respondeu a enteada.

Posto visse dissipada a tempestade que lhe negrejara sobre a cabeça, Iaiá enxergava ainda para o lado poente um espectro, e para o lado do nascente uma possibilidade. Esses dois pontos negros vinham estragar a beleza azul do céu e torná-lo pesado e melancólico. O mistério do futuro unia-se ao mistério do passado; um e outro podiam devorar o presente, ela receava ser esmagada entre ambos. A convivência da família aterrava-a. Que seria para ela o casamento, se tivesse de penetrar nele com a perpétua ameaça diante dos olhos, uma antiga semente de amor, que a primeira brisa da primavera podia fazer brotar e crescer de novo? Acreditava na isenção presente da madrasta, e na inteira cura do marido, mas o futuro? A beleza de Estela estava ainda longe do declínio, e a modéstia de Iaiá fazia-a persuadir de que, ainda no declínio, seria superior à sua.

Uma noite, entrou o Sr. Antunes e deu uma carta à filha, que a leu silenciosamente.

— Olha, disse ela apresentando a carta à enteada.

Iaiá leu-a; eram duas páginas escritas de alto a baixo, e por letra desconhecida. Uma antiga condiscípula de Estela, residente no norte de São Paulo, aceitava a proposta que esta lhe fizera, de ir dirigir-lhe o estabelecimento de educação que ali fundara desde alguns meses.

— Bem vês sue é necessário casar-te quanto antes, disse Estela logo que a enteada acabou a leitura.

Iaiá sentiu os olhos úmidos e atirou-se aos braços da madrasta. A efusão era sincera; havia ali afeto, reconhecimento e admiração. Mas, por isso mesmo que era sincera, deveria molestar a madrasta, se alguma. coisa pudesse já molestá-la. Estela sorriu, — um sorriso que queria dizer: — Bem sei que sou demais. A língua, porém, não proferiu uma palavra única.

— Que quer dizer isso? perguntou o pai de Estela, que nada sabia da carta, e conseqüentemente nada entendia daquela expansão da moça.

Estela mostrou-lhe a carta. O pai não pôde acabar de ler: a primeira página fizera-lhe compreender tudo. Seus olhos iam do papel à filha e da filha ao papel, sem que a boca se atrevesse a formular nenhuma queixa ou censura.

— Não digo que me obedeças, murmurou ele; mas parece que podias consultar-me. . .

— Eu estava certa da sua aprovação, respondeu Estela. Ou parece-lhe que fiz mal?

— Nunca fizeste bem em coisa nenhuma, disse tristemente o pai. E pegando-lhe nas mãos: — Tão moça! tão bonita!

O dia do casamento foi definitivamente marcado naquela noite. Como Estela declarasse que ela própria serviria de madrinha, Iaiá procurou dissuadi-la cautelosamente; também ao noivo repugnou a intervenção espiritual da viúva. Mas Estela não se deu por entendida. O papel de acólita, que a si mesma distribuíra, tinha-o desempenhado com lealdade e dignidade. Quis ir até o fim. Era melhor modo de se mostrar isenta e superior. Jorge sentia-se vexado e transportado ao mesmo tempo, ao observar a simplicidade e o desvelo que a viúva punha naquele ato. Iaiá sentia só admiração e gratidão. Tinha já certeza de que o passado era pouca coisa, e de que o futuro seria coisa nenhuma. O casamento ia separá-las reconciliando-as.

Casados os dois, Estela preparou-se para seguir viagem, não obstante a resistência do pai, que foi tenaz e hábil. O pai ficaria. Estava já tão cansado para viagens longas! A diferença do clima, a falta de relações, a necessidade de não abrir mão do emprego, eram motivos de grave peso para não arriscar-se a deixar o Rio.

— Ao menos, prometes vir ver-me de quando em quando? disse o Sr. Antunes sentindo tremer-lhe nos olhos uma lágrima sincera.

Estela respondeu que sim; depois pediu-lhe que aceitasse uma mesada. O pai recusou comovido. — Tu vales muito, exclamou ele. O tom com que proferiu estas palavras deu uma esperança à filha.

— O senhor pode valer ainda mais do que eu, disse ela.

Depois contou-lhe a paixão de Jorge e todo o episódio da Tijuca, causa originária dos acontecimentos narrados neste livro; mostrou-lhe com calor, com eloqüência, que, recusando ceder à paixão de Jorge, sacrificara algumas vantagens no seu próprio decoro; sacrifício que tanto mais digno de respeito, quanto que ela amava naquele tempo o filho de Valéria. Que pedia agora ao pai? Pouca e muita coisa; pedia que a acompanhasse, que cessasse a vida de dependências e servilidade em que vivera até ali; era um modo de a respeitar e respeitar-se. O pai escutava-a atônito.

— Tu chegaste a amá-lo! exclamou ele. Não o aborrecias? Amaram-se? E só agora sei... Bem digo eu tu és uma fera. Não tens, nunca tiveste pena de minha velhice.. Ele é tão bom! tão digno! E se morresse por tua causa? não terias remorsos? não te havia de doer o coração quando soubesse que um moço tão bem-nascido, que gostava de ti... Sim, ele gostava muito de ti; e tu também... e só hoje!

Estela fechou os olhos para não ver o pai. Nem esse amparo lhe ficava na solidão. Compreendeu que devia contar só consigo, e encarou serenamente o futuro. Partiu; o pai despediu-se dela com o desespero no coração, — e desta vez a dor era desinteressada e pura. Jorge consolou-o depressa. Não houve interrupção na convivência, e o Sr. Antunes continuou a achar ali a mesma proteção e cordialidade. Se o casamento fora um atentado, ele os absolveu disso, e repartiu com ambos infinita solicitude. Outra vez comensal assíduo, tornou a ser o homem de confiança. Fora dali, as horas de lazer que lhe deixava o pouco trabalho, eram empregadas nas sessões do júri, nas galerias da câmara dos deputados ou nos bancos do Carceler. Não tendo já a aspiração de uma aliança vantajosa, adotou a devoção da loteria. Era ele quem dava, secretamente, notícias de Estela a Iaiá.

Esta achou no casamento a felicidade sem contraste. A sociedade não lhe negou carinhos e respeitos. Se antes de casar, Iaiá possuía o abecedário da elegância, depressa aprendeu a prosódia e a sintaxe; afez-se a todos os requintes da urbanidade, com a presteza de um espírito sagaz e penetrante. Nenhuma nuvem do passado veio sombrear a fronte de um ou de outro; ninguém se interpunha entre eles. Iaiá escrevia algumas vezes a Estela, que lhe respondia regularmente, e no mais puro estilo de família. De longe em longe a enteada presenteava a madrasta, que lhe retribuía logo na primeira ocasião. Quanto a encontrarem-se, era difícil; Estela aplicava todos os seus cuidados à nova ocupação.

Procópio Dias viu a morte de todas as esperanças últimas, com uma filosofia que não supunha ter em si. Naturalmente padeceu alguns dias de despeito; mas o despeito acabou com o amor. Verdade é que o ambicionado casamento abriu nele o desejo de não morrer solteiro; e, perdida uma oportunidade, tratou de haver outras à mão. Ultimamente voltou à religião do celibato. Duas ou três vezes encontrou Iaiá e o marido. A última foi num sarau. Jogou o voltarete com Jorge e acompanhou a mulher até à carruagem, não sem lançar um olhar furtivo ao estribo, onde Iaiá pousou o pé, cansado de valsar.

No primeiro aniversário da morte de Luís Garcia, Iaiá foi com o marido ao cemitério, a fim de depositar na sepultura do pai uma coroa de saudades. Outra coroa havia sido ali posta, com uma fita em que se liam estas palavras: — A meu marido. Iaiá beijou com ardor a singela dedicatória, como beijaria a madrasta se ela lhe aparecesse naquele instante. Era sincera a piedade da viúva. Alguma coisa escapa ao naufrágio dasilusões.