Pois bem: já que insistem, já que exigem, encaremos, afinal, perante a letra das nossas leis, a questão jurídica envolvida no escândalo do dia 11. Não a discutimos logo, porque ao menos as noções elementares do direito individual em matéria de liberdade acreditávamos nós que se devessem reputar sabidas entre juízes, jurisperitos e jornalistas. Noutras épocas ousaria talvez a força enormidades semelhantes. Nunca as ousou, tamanhas, tão disformes, tão impudentes, nas circunstâncias do lugar, das pessoas, da brutalidade. Mas, se ousasse, ninguém reclamaria provas de que a vítima estivesse na lei, e o ofensor no abuso. Foi mister que nos houvéssemos policializado, na Capital da República, à imagem da Nápoles dos Bourbons, para haver quem duvide da grosseiria de tais atentados, e se atreva a apelar para a legislação em defesa de tais crimes.
A lei de 20 de setembro de 1871, de cujos textos não se recua nem perante a mutilação, para honestar os excessos cometidos na Rua Monte Alegre, não pôs no inquérito policial, obra sua, esse mecanismo de absorção policial, a que, por sucessivos excessos, por invasões sucessivas, o tem elevado a ação crescente dos órgãos do executivo neste regímen.
Toda a gente sabe que a reforma judiciária de 1871 não foi uma lei de reação, mas uma lei de liberdade. Foi ela que, após os tentames de 1861, 1864, 1866, 1870 e 1871, veio realizar as antigas aspirações do movimento que se iniciara em 1845 contra a lei de 3 de dezembro, e satisfazer quase de todo o programa liberal de 1869, separando inteiramente a judicatura da polícia, e tirando completamente a esta as atribuições judiciais, que, havia trinta anos, conquistara. Tão gigantesco era o passo no sentido liberal, que um espírito como o do Sr. Joaquim Nabuco o argúi hoje, a nosso ver sem razão, de ter sido o princípio de decadência dos ciumentos da autoridade no Brasil: “Quem teria dito em 1854, quando Saião Lobato acusava a Nabuco de profanação e sacrilégio, por tocar na lei de 3 de dezembro de 1841, que seria ele quem a havia por fim de revogar! O golpe passou despercebido entre a massa de reformas, que o gabinete Rio Branco empreendeu, para tirar a bandeira aos liberais; mas a revogação da lei de 3 de dezembro marcará uma época na história política do império: sem ela, o princípio da autoridade irá enfraquecendo de dia para dia”.
O Partido Liberal considerou-se roubado. Apenas os homens superiores, no seio dele, às conveniências inferiores de partido confessaram nessa evolução imperial um vasto progresso para os ideais do governo livre. São notáveis, a esse respeito, as expressões do mais eminente dos chefes daquela parcialidade, lesada nos interesses da sua ambição e da sua glória: “Começarei”, dizia, no Senado, o grande pai do ilustre historiador, “começarei, felicitando o país, e congratulando-me com o Partido Conservador, por ver chegado o dia da reforma da lei de 3 de dezembro de 1841, que parecia uma lei imutável até em seus pontos e vírgulas, uma lei de origem divina, como a que Deus transmitiu a Moisés no monte Sinai, ou a que a ninfa Egéria deu ao rei Numa Pompílio... Felizmente vai provar-se que essa lei é de origem humana; e não era preciso esta prova, porque todos sabemos que as paixões políticas e os interesses exclusivos foram que a determinaram; sabemos o sangue e as resistências, que ela produziu; que, tornando-se causa da opressão deste povo, concorreu ela, principalmente, para que ficasse desmentido aos olhos do mundo o nosso regímen constitucional, absolutamente incompatível com ela. Felizmente vai deixar de existir como lei política; porque subsistirá somente no ponto de vista de administração da justiça; sendo que neste ponto de vista, força é confessar, ela tem muito merecimento.”
De alguma coisa se carecia ainda, para que o triunfo liberal, obtido pela rendição da escola conservadora, fosse completo: mas não no tocante à discriminação de esferas entre a polícia e os tribunais. Essa era cabal. “O que falta neste projeto, e o torna defectivo aos olhos do Partido Liberal?” perguntava o senador Nabuco. “O que falta, está exposto no voto em separado, e se resume nestes dois pontos: uma magistratura como deve ser e uma organização judiciária capaz de garantir as liberdades individuais.” As lacunas e imperfeições estavam na parte relativa à economia da justiça e à formação da magistratura. Mas no traçar da competência à magistratura e à justiça todas as suas prerrogativas tinham sido ressalvadas, todas as que a polícia lhe usurpara, eram-lhe restituídas. Disso não havia dúvida nenhuma. E nisso consistiu, aos olhos de conservadores e liberais, talvez o maior título de honra dessa reforma: em ter devolvido à toga o que da toga era, deixando aos instrumentos policiais do poder executivo as funções estritamente policiais.
Ora claro está que essa homenagem lhe não poderia caber, se os inquéritos por essa lei instituídos fossem, no pensamento do legislador, o que tem chegado a ser pela ação desnaturante de praxes abusivas, cujo trabalho os tem gradualmente convertido numa espécie de instância judicial com todas as faculdades e privilégios da ação dos tribunais, menos a autoridade imperativa da sentença e as garantias essenciais da defesa.
Assenta a existência legal dos inquéritos policiais entre nós exclusivamente no art. 10, § 1º, da lei nº 2.033, que se enuncia deste modo:
“Para a formação da culpa nos crimes COMUNS as mesmas autoridades policiais deverão em seus distritos proceder às diligências necessárias para descobrimentos dos fatos criminosos e suas circunstâncias, e transmitirão aos promotores públicos, com os autos de corpos de delito e indicação das testemunhas mais idôneas, todos os esclarecimentos coligidos; e desta remessa, ao mesmo tempo, darão parte à autoridade competente para a formação da culpa”.
Dando regulamento à lei de 20 de setembro, o decreto nº 4.824, de 22 de novembro de 1871, na seção “Do inquérito policial”, reproduziu fielmente, no art. 38, o pensamento original do legislador sob esta forma:
“Os chefes, delegados e subdelegados de polícia, logo que por qualquer meio lhes chegue a notícia de se ter praticado algum crime COMUM, procederão, em seus distritos, às diligências necessárias para a verificação da existência do mesmo crime, descobrimento de todas as suas circunstâncias e dos delinqüentes”.
Ao que, depois de enumerar, no art. 39, as diligências a que se refere o antecedente e regular no art. 40 a hipótese de comparecimento imediato da autoridade judiciária nos casos de flagrante delito, acrescenta no art. 41:
“Quando, porém, não compareça logo a autoridade judiciária, ou não instaure imediatamente o processo da formação da culpa, deve a autoridade policial proceder ao inquérito acerca dos crimes COMUNS, de que tiver conhecimento próprio, cabendo a ação pública: ou por denúncia, ou a requerimento da parte interessada, ou no caso de prisão em flagrante.”
Quer pelo art. 10 da lei, quer pelos arts. 38 e 41 do seu regulamento, portanto, a instituição do inquérito policial ficou circunscrita aos crimes comuns. Ora, em matéria de competência e jurisdição, as leis são de interpretação absolutamente estrita: não se ampliam por interferência, analogia, ou costume. Entendem-se rigorosamente na forma da sua letra. Logo, se é na lei de 1871 que os inquéritos policiais têm o seu assento, claro está que a sua legalidade cessa, nos casos em que se não tratar de crimes comuns.
Que muito de indústria usaram os textos esse qualificativo absolutamente não se poderia duvidar: porquanto, de todas as vezes que a legislatura e o governo se referem ao inquérito, precisam os crimes comuns como objeto exclusivo desse processo. Nem deixava de ter fundamento, e muito sério, a seleção desse restritivo. Insistindo sempre no seu emprego, teve justamente em mira o legislador obstar a que os inquéritos policiais, cuja abolição, atento o perigo deles, já propugnava em 1876 o Instituto dos Advogados, num parecer redigido pelo Conselheiro Nabuco de Araújo, se transformassem, na esfera política, em máquina de incalculáveis perseguições.
Definido, pois, o crime comum, estará definido o âmbito legal dos inquéritos policiais.
Ora, a expressão crimes comuns se opõe:
1º aos crimes militares;
2º aos crimes de responsabilidade;
3º aos crimes políticos.
Esta distinção, quanto aos crimes de responsabilidade e aos crimes políticos, acha-se consignada até no decreto nº 848, de 11 de outubro de 1890, art. 9º, I, a e b, e art. 15, i, assim como na Constituição da República, art. 59, I, a e b, e art. 60, i.
Logo, no sentido estrito da lei de 1871, não há inquérito policial nos crimes políticos, assim como não o há nos crimes de responsabilidade e nos crimes militares.
Mas a conspiração, prevista no Código Penal, art. 115, cai na rubrica dos crimes políticos, sendo como tal que o seu processo incumbe à justiça federal, cujos tribunais não julgam nos crimes comuns.
Logo, nas ocorrências de conspiração não se admite, e, por conseguinte, na atual não se podia admitir o processo especial de inquérito estabelecido na lei de 20 de setembro. Não é que, em tais emergências, a polícia não tinha a faculdade e o ofício de inquirir, isto é, de sindicar dos delitos, reunir, no tocante a eles, os elementos de comprovação ao seu alcance, e auxiliar, requisitada, ou não, o poder judicial. Mas não pode instaurar, nessas eventualidades, o sistema solene e formal, a que a lei nº 2.033 deu particularmente o nome de inquérito policial.
Ora só nos limites desse processo singular lhe assiste o direito ao exercício das funções, em que o regulamento nº 4.824 equipara, até certo ponto, a autoridade policial à judiciária.
Resulta essa equiparação, aliás incompleta, do estatuído nesse decreto, art. 42, nº 9:
“Para a notificação e comparecimento das testemunhas e mais diligências do inquérito policial, se observarão, no que for aplicável, as disposições que regulam a formação da culpa.”
Na cláusula “no que for aplicável” está a limitação. O inquérito não franqueia à polícia o uso de todos os meios de autoridade utilizados na formação da culpa. Faculta-lhe apenas o que for aplicável: isto é, o que quadrar à natureza do processo e à índole do poder que o exerce.
Aí têm por que nas defesas do Governo presentemente se tem engolido essa restrição impreterível.
Mas, com ela, ou sem ela, o que dessa provisão regulamentar materialmente resulta, é que a polícia não pode observar as regras adotadas nas formação da culpa, senão quando for caso de inquérito policial.
Daí é que ela, na espécie, julgou extrair o arbítrio de impor à força e debaixo de vara o comparecimento dos citados.
Logo, trucou de falso, investindo-se de uma faculdade peculiar ao inquérito, numa hipótese em que o inquérito era ilegal.
Continuaremos.