Tarqüínio, uma derrota incrível
editarEle não pôde votar em si mesmo e por isso deixou de ser o primeiro prefeito de Cascavel por apenas um voto. Aquele voto que ele mesmo não conseguiu depositar na urna. Das tantas histórias de heroísmo, pioneirismo e uma vitória certa que se transformou em repentina derrota, é bem provável que a de Tarqüínio Joslin dos Santos seja a mais emocionante.
Tarqüínio nasceu em Curitiba, em 13 de abril de 1900, filho de Artur Santos e Carolina Joslin dos Santos. O pai trabalhava no ramo madeireiro na capital paranaense. Casou-se com Diva Ribeiro, natural de Clevelândia, já seguindo a profissão de farmacêutico, radicando-se na década de 30 em União da Vitória (PR), onde começou a ganhar dinheiro. Mas pretendia ir mais além: tinha em meta conhecer e investir suas economias numa região pioneira − o Oeste do Paraná.
Seu alvo era Foz do Iguaçu, onde comprou uma vasta área de terras, nos arredores do arroio M’Boicy. Assim, das margens do rio Iguaçu, no Sul do Paraná, ele partiu na primavera de 1936 com uma caravana de carroções de desbravadores rumo à foz do mesmo rio, na fronteira com a Argentina e o Paraguai. Aquela área de terras em Foz do Iguaçu viria no futuro a ser uma chácara. Depois, com o desenvolvimento urbano da cidade, transformou-se em loteamento, dando origem à Vila Yolanda, nome de sua filha.
Quando os carroções chegaram a uma minúscula vila chamada Encruzilhada de Cascavel, em novembro daquele 1936, a caravana composta por meia dúzia de carroções transportando aproximadamente vinte famílias que se dirigiam a Foz do Iguaçu foi recebida pelo líder da comunidade: José Silvério de Oliveira, o Nhô Jeca. Silvério acolheu a todos com muita gentileza e ao saber que Tarqüínio era farmacêutico, praticamente exigiu que ele montasse sua farmácia em Cascavel, onde os únicos remédios disponíveis eram os encontrados na mata ao redor da vila.
O apoio de Tio Jeca
editarTarqüínio ponderou a Silvério que não poderia ficar, pois tinha compromissos já assumidos com a comunidade de Foz do Iguaçu. Trazia em seu carroção pioneiro a esposa Diva e os dois filhos: Yolanda e Ozíres, que estava destinado, na década de 60, a ser vereador em Cascavel e prefeito de Foz do Iguaçu. Dona Diva estava grávida do terceiro filho, Blasco Ibañez, que por um triz não nasceu na Encruzilhada, chegando ao mundo dois meses depois, já em Foz do Iguaçu.
Nhô Jeca, cheio de cuidados, observou que os cavalos não agüentavam mais a jornada e o melhor a fazer seria que todos descansassem. Disse a Tarqüínio que podia confiar nele, pois era uma espécie de “prefeito” do lugar, habituado a resolver todos os problemas que apareciam, e fez ver aos viajantes que a situação da caravana inspirava cuidados. “Fiquem à vontade”, disse José Silvério a Tarqüínio. “Se precisar de mais alguma coisa, é só falar”.
De fato, os adultos estavam exaustos, as crianças muito cansadas e Diva estava com a gravidez muito adiantada. Por isso, Nhô Jeca alojou a grávida e sua família na escolinha, ainda em construção, futuro Colégio Eleodoro Ébano Pereira. A caravana passou assim sua primeira noite tranqüila e protegida, sob o céu de Cascavel. Era preciso, afinal. Ao longo da viagem, em caminhos quase inexistentes, os carroções muitas vezes tombavam. “Pode-se dizer que nem estradas havia”, lembrou Diva. “Nos buracos, as carroças viravam, quebravam louças, perdemos quase a metade da mudança. Nos dias de chuva molhavam as cobertas e as crianças, era um sacrifício”.
A onipresença da doença
editarQuando os cavalos não agüentavam mais a marcha, a caravana fazia paradas, montando acampamento com os carroções em círculo, como nos filmes de faroeste. Os mosquitos eram inclementes e não deixavam as crianças dormir. Na hora de comer, uma nuvem de insetos cobria a cabeça e o prato. Era preciso fazer uma cortina de pano, mas nem assim as crianças conseguiam dormir ou se alimentar direito.
Tarqüínio Joslin dos Santos no dia seguinte empreendeu nova marcha rumo à fronteira e em Foz do Iguaçu, ao cabo de três meses viajando debaixo do toldo de um carroção, abriu a primeira farmácia da cidade fronteiriça, prosperando rapidamente. Cerca de quinze anos depois, no final da década de 40, sua família já estava perfeitamente integrada à comunidade iguaçuense quando sobreveio o inesperado: Tarqüínio contraiu malária. Sentia-se extremamente mal e desmaiava a todo instante, chegando a acreditar que estava prestes a morrer.
O médico o aconselhou a mudar de clima: seria recomendável um lugar mais alto, longe da temperatura tórrida e rarefeita de Foz do Iguaçu. Naquele momento, não havia outro destino que Tarqüínio mais quisesse que a promissora Cascavel, localidade que ele vislumbrava como o centro futuro da região, devido à sua localização privilegiada e topografia suave. Ao chegar, foi recebido como grande personalidade e imediatamente montou a primeira farmácia da cidade: a Farmácia Santos, mesmo nome da anterior, montada na avenida Jorge Schimmelpfeng, na fronteira.
Em Cascavel, a Farmácia Santos foi montada quase na esquina da rua Sete de Setembro com a avenida Brasil, junto à futura “cidade nova” da vila, que já era sede distrital. O distrito de Cascavel, com a vinda de Tarqüínio, ganhou uma força a mais na campanha visando à emancipação, obtida em 1951.
No endereço da Farmácia Santos eleva-se hoje o Edifício Emília Saraiva. Depois a farmácia foi transferida para a avenida Brasil, onde mais tarde seria localizada a Farmácia São Roque. Não era a “área nobre” de Cascavel, e a família só tinha dois vizinhos. A “cidade”, de fato, ficava concentrada ao redor da atual praça Getúlio Vargas, na antiga Encruzilhada, ali ficando o estabelecimento comercial de Nhô Jeca Silvério, a delegacia de polícia, a escola e capela religiosa.
Os remédios que abasteciam suas farmácias eram encomendados em São Paulo, despachados para Porto Epitácio (SP), no rio Paraná, dali seguindo até Foz do Iguaçu, onde eram retirados. Conquistada a emancipação do Município, o governador Bento Munhoz chamou Tarqüínio para correr à Prefeitura. Era o óbvio: Tarqüínio era então a pessoa mais querida de Cascavel. Pensava-se que sequer teria adversário, mas o PTB estava se estruturando pelo interior do Estado e forçou o agropecuarista José Neves Formighieri, um dos líderes da emancipação do Município, ao lado de Tarqüínio e seu irmão de criação, Antônio Alves Massaneiro, a concorrer e organizar uma forte chapa de candidatos à Câmara Municipal.
Um resultado controverso
editarA data marcada para a eleição do primeiro prefeito e dos nove integrantes da Câmara Municipal foi o dia 19 de novembro de 1952. Chovia a cântaros, mas o eleitorado compareceu às urnas em peso. Concorriam Tarqüínio pelo PR, Neves Formighieri pelo PTB, Ramiro de Siqueira (UDN) e Alípio de Souza Leal por um partido indeterminado.
Das urnas, saiu vitorioso o candidato petebista. José Neves Formighieri venceu por um voto: 383 contra 382 de Tarqüínio Joslin dos Santos. Imediatamente correu a versão de que o candidato do Partido Republicano, preocupado em reunir votos para vencer um pleito renhido, acabara se esquecendo de votar, permitindo-se a derrota por um voto. Neste caso, se votasse provocaria o empate e estaria automaticamente eleito, sendo mais velho que Formighieri.
O próprio caráter renhido do pleito, em que cada voto é extremamente necessário, desfez essa versão, que assumiu contornos de lenda em Cascavel.
“A junta de apuração anulou, ou melhor, separou 35 votos meus que estavam duvidosos. Se precisasse, comprovaríamos que aqueles 35 votos foram para mim. Apenas estavam sujos de barro. Choveu naquele dia e as estradas estavam intransitáveis, e naturalmente os eleitores sujariam as cédulas. Quanto ao Tarqüínio, pessoa muito querida na cidade, me assegurou que votou normalmente. Mesmo assim, foi a melhor disputa eleitoral de Cascavel” (José Neves Formighieri, depoimento à memória histórica de Cascavel).
Mas Tarqüínio não votou. Quando ele chegou à cidade, naquela tarde de domingo, 19 de novembro de 1952, não só a votação já havia se encerrado como as urnas já haviam seguido para Foz do Iguaçu, onde os votos seriam apurados. Uma comissão de fiscais dos candidatos acompanhou as urnas, mas Tarqüínio, temendo a possibilidade de fraude, seguiu apressadamente para Foz, onde chegou quando a apuração estava se iniciando. Os primeiros votos davam boa dianteira a Tarqüínio. Nesse momento, como se sentia indisposto devido ao extremo calor, alguém o convidou a “tomar um ar lá fora”. Quando retornou, Neves Formighieri comemorava a vitória por um voto de diferença.
(Fonte: Alceu A. Sperança, jornal O Paraná, seção dominical Máquina do Tempo)