— Mas, afinal, por que és triste?!
— Sou triste, porque o fundo de toda a Natureza é triste. Triste, porque a tristeza é Deusa, Deusa severa e soberana, com a sua larga, longa clâmide majestosa sombriamente pendida em graves, grandes rugas, envolvendo para sempre os Desolados... A tristeza medita... E é poderosa e sagrada, porque simboliza a profundidade dos Fenômenos que nos rodeiam. Olha tu para tudo. Ergue d'alto a visão do pensamento por essa inclemência dolorosa da Vida e vê lá, se, no íntimo, no recôndito das origens eternas, não está a tristeza irreparável de tudo?! Ouve os teus tumultos interiores! Busca as correntes da Vida e as correntes da Morte. Procura as tuas aspirações supremas e vê lá se não é pela estrada infinita, mas excelsa, da tristeza, que elas seguem. Amo a tristeza, porque ela fecunda a todos os sentimentos de uma nobre paixão abstrata. E é doce, suavizador e piedoso para mim quando às vezes encontro, pelos caminhos que trilho, tão augusta Deusa transfigurando os celerados, purificando os bandidos, dando paz e morte serena aos corações dos cínicos.
Ser fundamentalmente triste não exclui, no entanto, a alegria, a alegria sã — essa alegria mesma que é mais sincera e séria porque foi fecundada na sinceridade e seriedade da própria tristeza.
Não essa alegria romba, a alegria dos adolescentes espirituosos, que é a forma mais expressiva da imbecilidade distinta.
Não a alegria dos que não são vitalmente alegres, dos que riem, pelo estilo, pelo tom de rir, por ser oficial o riso, por estar, d'alto abaixo, decretado, na grande causerie famosa do Mundo, que se deve rir, porque o riso dá maneira, porque o riso dá egrégias virtudes, porque o riso dá beleza, e não se pode, nos centros da fina gente, deixar, enfim, de proclamar o riso!
Não é essa alegria fácil, fútil, essa que chega a celebrizar-se, a formar tipo, que constitui o singular encanto sereno de certo modo de ser e sentir...
Mas, bem diferentes, outros aspectos e linhas da alegria, bem variados e nobres.
A alegria de um lindo rosto louro de Ruth angélica e segetal; uma serenidade cor-de-rosa de face de Cibele branca surgindo dentre lírios; a alegria verde da originalidade dos viços virgens, dos imaculados renovos; a alegria nova dos vergéis em maio, sob o Te Deum do sol.
A alegria fantasiosa de um Baco empurpurado de vinho; a alegria pagã de um grego engrinaldado de acanto; a alegria ideal do Diabo coroado de cornos; a alegria obscura e ascética do Isolamento; a alegria clemente, justa, do orgulho natural e simples; a alegria modesta e sóbria da fé convicta e messiânica; a alegria tranqüila e fria do desdém calado e secreto; a alegria da bondade simples e radiante, a alegria enfim, fecundadora e sã dos que se sentem fortes porque se sentem dignos!
A solenidade dessas alegrias todas vêm das linhas, da harmonia, da austeridade pura da tristeza — noite miraculosa que gera sóis.
A alma anseia ficar intacta das argilas lodosas, o espírito aspira envelhecer casto, na velhice milenária da Dor, mas elevando bem alto o sacro cibório das comunhões intelectuais.
E, assim, essa tristeza é o tabernáculo severo e sombrio donde o espírito ergue-se calmo e mudo, intenso e seguro nas múltiplas faces da Vida, conhecendo e sentindo com eloqüência os homens e tirando desse conhecimento e desse sentimento as forças altas e os nobilitantes vigores para a profética, fecunda demência.
Pois no fundo dessa tristeza resultante das fadigas e tédios que deixa o insano ardor por se haver dado o balanço final aos Homens e às Cousas, existe a felicidade forte, de robustez de fundamentos, uma espécie de Otimismo desdenhoso, que é a única e compensadora alegria mais elevada e pura das almas.
Sou triste, sem ser cético; sou triste, porque creio ainda, vendo já, no entanto, tudo a esfacelar-se em ruínas...
Por isso, por essas causas absolutas, sou triste.
Eram dois vultos que caminhavam estrada a fora, através de paisagens, mergulhados numa intensa palestra d'idéias, por clara tarde maravilhosa de luz.
Um deles, adolescente, imberbe, conservava a aparência reservada e sisuda de um monástico, acusando mesmo, pelo seu rosto um tanto alongado e o seu perfil bisonho, soturno, haver pertencido a um desses antigos seminários de província, reclusos dentre muros contemplativos e brancos e rodeados das sombras silenciosas de altas e recordativas árvores frondejantes.
Visto um pouco ligeiramente parecia ter na face uma expressão dura, rígida, uma tonalidade seca e cética, à Voltaire.
Mas, bem reparado de frente, os seus doces olhos grandes, tenebrosos e raiados levemente de vermelho, quebravam essa impressão voltaireana.
Tudo, de expressivo e oculto, que ele tinha, estava nos olhos. Uma onda de seivas virgens parecia fluir milagrosamente deles. Dormiam talvez ainda, lá, como princesas encantadas em bosques fabulosos, as misteriosas Paixões do Pensamento e da Forma.
Olhos reveladores, de uma expressão inédita de sentimento, dizendo límpido na sua transparente claridade úmida todos os segredos e sonhos que andem sonambulamente romeirando nas almas.
Desses olhos para cujo centro profundo e luminoso parece afluir toda a essência pura, todo o idealismo claro e são, todo o alto requinte de Sensibilidade de uma geração mais elevada, mais bela, prestes a surgir!
O outro, mais severo, mais perseguido de perto pelas desilusões, com o ar fatigado de quem vem de muito longe — olhos de uma penetração aguda de brilho fundo, um tanto adormentados por uma melancolia nômade; boca de mordacidade viva, de onde as palavras deveriam irromper incisivas como dardos ou sugestivas como parábolas.
Sentia-se logo que era doutras Regiões, transfigurado dos Rumos espiritualizantes, dos Fatalismos sombrios, reivindicador solitário do peso negro e venenoso das grandes culpas e por isso, agora, calmo, seguro, como os que trazem consigo, sem até mesmo pressentirem, o cunho singular das Predestinações imprescritíveis, a sede e a febre de um saber intuitivo, contemplativo.
De vez em quando, no diálogo que ia estabelecendo com o outro, a sua boca sorria, num sorriso de resignada esperança, de muda contemplação, ou, ferida por um sarcasmo tão puramente justo que a idealizava, ria claro, ria, mas um riso leal, bom e regenerante, fresco, balsâmico, capaz de inundar e imacular de bens as milenárias e maléficas impurezas do Mundo decaído.
E a tarde, numa paz luminosa, em auréolas de ouro, os envolvia beatificamente.
As duas figuras, unificadas naquele instante por um idêntico e chamejante pensamento, caminhavam devagar na tarde, sob a efusão simpática da suave claridade da tarde.
Entretanto, o diálogo continuara.
— Sim, sou alegre como Deus, entediado, invejando o Inferno; sou triste como o Diabo, arrependido e sonhando, querendo voltar para o Céu!
Sinto esta tristeza impaciente do Irreparável, do Irremediável, do Perdido... E a febre que me devora, a vertigem que me alvoroça, é por não poder fundir as almas sob novas formas, dar-lhes intuições novas, entendimentos inauditos, encarnar-lhes o sentimento noutros moldes mais belos, fazê-las, enfim, mais flexíveis, mais dúcteis, torná-las mais espirituais e vibráteis para as grandes comoções do Imprevisto.
A paixão da minha tristeza é por não poder fecundar de novo essas almas, não lhes poder dar as maleabilidades sensíveis, inocular-lhes o fluido estranho de uma vida aperfeiçoada, quint'essenciada numa chama eterna.
A doença espiritual da minha tristeza é por não poder impoluir, virginar jamais as consciências já violadas; por não poder fazer brotar nelas a flor melindrosa e boa da timidez simples, que o pecado brutal das luxúrias imponderadas e das intemperanças ferozes fez para sempre murchar.
A nevrose da minha tristeza é por não me ser dada a graça magna, o dom soberano e assinalado de vazar, nos cadinhos de ouro da fecundação perpétua, só seivas prodigiosas, ineditamente belas, só germens sãos e perfeitos, só sementes preciosas e raras, para que, talvez, assim então se gerassem as Formas impecáveis, as Correções extremas, as Perfectibidades imperecíveis.
Aos que, como tu, se fundam nos mistérios da sua própria natureza; para os que surgem das obscuras gêneses, no movimento de espontaneidade das Origens vivas, das afirmações eloqüentes e cujo espírito vai, no tempo e no espaço, se organizando por células, fecundando por sonhos, completando por vibrações de nervos, por germens de paixão, por glóbulos de Vida, aguardando, calmos e resolutos, sentindo a intuição de esperar o instante original para irromper da Sombra, — para esses, deve significativamente impressionar toda a fundamental tristeza destas Manifestações supremas.
O certo é que a humanidade erra pelo fantástico, que a natureza está toda sobrecarregada de fantástico. E nem mesmo há homem que não tenha o seu lado extravagantemente ideal, fantasioso; que não percorra, nas vagas horas da Desolação, as galerias sinistras dos fantasmas, ou que não vá em busca do Sonho, que existe na Realidade, como os fenômenos físicos existem esparsos no organismo concreto do Universo. O ideal é real, desde que radia no mundo criado à parte, na circunvolução cerebral de cada ser. Tudo está em saber acordar, com estilo e emoção, esse sonho, onde ele exista, ou na alma do selvagem ou na alma do culto. Para isso os Artistas de todos os tempos produzem as suas Obras que nascem sempre por um movimento de meia inconsciência conceptiva, para serem assim mais fortemente vivas e mais transcendentemente sensacionais.
Porque o real é cheio de brumas de sobrenatural, o verdadeiro é cheio de brumas de fantástico e no fundo original da grande Causa está o Sonho.
— Ah! Sim! Sim! Clamou o outro, num grito de alvoroçado assentimento: — o natural na Arte é o alto Absurdo, é o Absurdo, o Fantástico, Intangível! Se eu dissesse, em páginas, mais tarde, os êxtases volúpicos que me dominavam no silêncio discreto do Seminário, diante da Imaculada Conceição, doce e cândida no seu rosto de porcelana fina, com aqueles olhos paradisíacos que tanto me aproximavam da serena e celeste luz! Se eu dissesse quanta nevrose, quanto delírio sexual percorreu a minha carne naquele solitário noviciado; quanto misticismo mórbido me ciliciou a alma; quanto espasmo lânguido me dominou o corpo, certo me julgariam louco... E depois, quando deixei a paz austera do Seminário, a sua clausura mestra, os seus hábitos duros; quando deixei toda aquela vasta, longa melancolia que dentro dele reinava como nevoenta Visão de meditações e recolhimentos; quando despedi-me das suas paredes brancas, das suas torres simbólicas, das suas árvores evangélicas, da sua fachada ampla e adormecida olhando para a alegria verde do Mar, — e caí então na plebéia profanação da Existência — ah! que complicadas sensações de prazer, de recordação, de mundanismo, de misticismo, de liberdade, de saudade, de inexprimível angústia, promiscuamente vivendo dentro de mim e viçando os mais tenebrosos, os mais negros e já agora irremediáveis tédios!
No entanto, se eu descrever um dia com flagrância de tintas, com violências e cruezas, todo este trecho passado da minha vida; se eu lhe der todo o impressionismo abstrato, todo o requinte de sensibilidade e mesmo até de impressões fantásticas, dirão que eu não tenho a mínima observação do Natural, que não observo a verdade inteira, e sou, em tudo, absurdo.
— Belas palavras, essas, a verdade, a observação!
Tanto é verdade aquela que determinadas individualidades apenas vêem com os olhos, apalpam com o tato das mãos, ouvem com os ouvidos, experimentam pelo paladar, aspiram pelo olfato, apreendem com a atenção, lembram com a memória, percebem, enfim, com todos os sentidos inferiores, como é verdade a verdade que a Imaginação vê, que a Concepção cria, que o Ideal fecunda, que o Sonho transmite, desde que não haja, no modo de reproduzir essa verdade vista pela Imaginação, uma completa hipertrofia sensacional e sim, de certa forma, um fundo lógico, rítmico, harmonioso e equilibrado, até mesmo no próprio Absurdo.
Tanto é verdade todo esse mecanismo, todo esse aparelho montado, toda essa fotografia exata, de exatidão até à futilidade e banalidade, como é verdade, tanto mais verdade ainda, tudo que os Estesíacos sentem através dos seus entontecedores desvairamentos, através dos seus espiritualizantes espasmos, dos seus êxtases emocionais e profundos.
A verdade na Arte existe em cada temperamento sincero que se manifesta, em cada singular sentimento que se revela, em cada alma original que vêm dizer o seu segredo à Vida!
Porque a perfeita verdade da Vida na sua alta e pura essência, não é tangível — é intangível. Para apanhá-la não se faz mister uma visão direta, uma observação imediata, muito perto dos fatos, muito em cima dos tipos, nem um psicologismo científico sistemático, à outrance.
A frase do egrégio Balzac — o artista adivinha o verdadeiro — é de uma eloqüência profunda e transcendental neste assunto.
A vida é real e é ideal, é ideal e é real. As inverossimilhanças, as coincidências, os acasos, os pressentimentos, a fatalidade dos seres, os absurdos, as exceções dos fenômenos gerais, as correntes de atração simpática ou antipática, as impressões desconhecidas, os espasmos ou estados patéticos, o contato, o choque, o encontro magnético e curioso das almas, o Indefinido das cousas, como que constituem o secreto lado ideal, fantástico, de sonho, da Vida.
A alta verdade da Vida está em Hamlet — pêndulo miraculoso e eterno que marca as oscilações da Alma.
Hamlet surge-nos de um fundo diluído e tocante de lágrimas e lírios, da evocação simpática e doce do Angelus das almas, num crepúsculo abençoado de infinita dolência, espiritualizado como um círio divino bruxuleando na câmara mortuária das almas numa luz final consoladora.
Hamlet é o céu melancólico das almas, cujas estrelas tristes, contemplativas, deslumbram-nos de um gozo quintessenciado e nos tornam cegos e perplexos de Indefinível...
Hamlet é a grande ansiedade do Sonho, é o Sonho se dilatando, se dilatando, como celeste, sideral serpente, na esfera da Dor, tomando nessas transfigurações, esses velados, sombrios silêncios e essas nevro-histerias mentais da Dúvida.
Hamlet é o violino imortal e secreto do Pensamento humano que as torturantes noites nebulosas da Consciência ferem de sons desolados.
Hamlet é o Arcanjo supremo das nostalgias, branco e belo, meigo, arrebatador e convulsivo, cujo gládio em chama fosforescente flameja num fundo de sombra de exótico e fulminante desdém e cujo grave gênio pálido, de uma alta e velha aristocracia de Sensibilidade, requintada e esquecida para além nos limbos da Saudade, se debruça, desespera e chora delirantemente sobre o ideal firmamento de astros mortos do seu amor...
Hamlet não é louco, não é doente, não é epiléptico, conforme o veredictum, as investigações e cogitações dos críticos, dos fisiologistas e psicólogos de todos os tempos.
Hamlet é o zênite da alma humana, nos seus momentos augustos e tremendos, nos seus estados soberbos e soberanos de laceração. É o espasmo do desdém e do orgulho transcendentalizados, acima das camadas da Terra, girando no Absoluto. É o Abstrato que odeia e que ama, que perdoa e que castiga. É a Matéria que tem sede de ser Sombra, para esvair-se, para apagar-se, para desaparecer da Matéria que a encarcera, e que a tortura. É a vibrante chama sensível da Aspiração insaciável que sonha ser o pó do Nada, para que o invólucro físico e efêmero que a contém possa acabar de aspirar e de sofrer. É o sentimento da volúpia radiante, redentora e purificadora da Morte na Vida, secretamente embalsamando de um aroma letal estonteador, como um longo e lento beijo imortal de além-túmulo, os infinitos da Eternidade.
Cada homem, quando se escuta a si mesmo, quando se olha a si mesmo, quando se palpa a si mesmo, quando desce em silêncio à funda cisterna imensa de si mesmo, há de sentir um pouco de si mesmo no Hamlet, daquelas irrequietabilidades, daqueles surdos, soturnos e subterrâneos desesperos, daqueles preguiçamentos edênicos, daquela alma não alma, daquele ser não ser, daqueles sublimes vácuos candidamente e misteriosamente cheios ainda de tépidas e quiméricas irradiações de estrelas apagadas.
Os tipos de Shakespeare não são absurdos propriamente ditos, nem são fantásticos; todos, mais ou menos, existem nos fenômenos livres e simples, espontâneos, ainda que muito pouco visíveis ou perceptíveis, da Natureza; isto é, cada um no seu conjunto, no seu todo, tem as particularidades secretas peculiares a cada ser. São tipos que rigorosamente não existem no seu modo complexo. Mas cada sentimento obscuro, esquisito, raro, subterrâneo, misterioso, de cada ser em particular, representa uma célula do organismo de cada tipo de Shakespeare, uma qualidade formadora daquelas concepções. Esses sentimentos todos, na suma unidade geral, na mais alta condensação, é que concorrem para a formação capital das sínteses maravilhosas de Shakespeare.
Porque nele os tipos vinham por blocos inteiriços, por avalanches de paixões, por complexidades sugestivas, o que por isso lhes dá a significativa toda especial de Criações.
Entretanto essas Criações não entram em absoluto nas regiões do incognoscível absurdo nem do incompreensível; são, pelo contrário, possíveis e verossímeis no Tempo e no Espaço, no infinito dos sentimentos humanos, porque definem esses próprios sentimentos em teses formidáveis, embora não sejam tangíveis os objetivos que tais Criações genericamente representam e simbolizam.
Mas, justamente porque a natureza sutil de certos fenômenos da alma e da consciência nos tipos de Shakespeare se encontra harmonicamente num dado momento com a natureza sutil dos fenômenos da alma e da consciência humana, num choque emocional profundo de forças e de elementos que se reconhecem e equilibram, é que as obras sintéticas de Shakespeare serão eternamente aclamadas, ainda que só intimamente e mais profundamente admiradas e sobretudo mais sentidas por capacidades artísticas, por intensidades mentais nervosas cujos fenômenos girem, mais ou menos, pelos mesmos pólos por onde gira a genialidade assombrosa de Shakespeare.
Para isso é preciso subir toda a escala misteriosa da Intuição e chegar a certos altos espasmos psíquicos da alma.
Esses que dizem perceber Shakespeare, admirar Shakespeare, sentir Shakespeare, para o fazerem vestem casacas de erudição por dentro, concentram-se oficialmente, ficam graves e sérios, tornam-se os difíceis e os inacessíveis da Sabedoria, porque, no entender deles, é necessário toda essa compostura solene, todo esse aparato clássico de maneiras e atitudes, quando, no entanto, para ver Shakespeare basta penetração clara, pureza e nitidez de ser, porque ele é uma expressão da Natureza, por certo a maior, a mais intensa, a mais condensada, a mais transcendente, mas uma expressão, uma força fenomenal dela deslocada, como se deslocam os corpos meteorológicos e cósmicos. Sendo um foco central Shakespeare é, no entanto, uma expansão natural dos elementos vivos e superiores da matéria organizada, é uma voz de todas as vozes, uma hora de todas as horas, um tempo de todos os tempos, uma atmosfera de todas as atmosferas, um ser de todos os seres, uma alma de todas as almas.
Se Shakespeare não tivesse atrás de si séculos, nem as gravidades dos doutos juízos dogmáticos, nem as fundamentações de teses críticas, nem os rebuscamentos fundos de análises psicológicas, de agudos comentários, nem as réplicas e tréplicas famosas das argumentações cerradas e fecundas como as camadas da Terra, Shakespeare não seria visto com essa encenação prodigiosa nem com esses estilos oficiais, nem com esse fundo sonhado que lhe dá a distância do tempo. Quase que já se aliena do cérebro a idéia de que Shakespeare fosse matéria animada, estivesse sujeito às leis fisiológicas dos outros homens. Hoje o seu Gênio perde-se no Espaço, é como o fio do infinito do Espírito unindo-se etereamente ao fio do infinito da Matéria e formando um só corpo abstrato.
Para entender, para amar, para sentir Shakespeare é apenas preciso vê-lo sem convenções nem preconceitos obscuros de consciência, na mais fácil, franca e vital nudez do Sentimento, na espontaneidade do ser, em toda a largueza genésica das suas obras, em toda a sua amplidão de Liberdade, em todos os seus gritos de Justiça, em todos os seus brados de Misericórdia, em todos os seus ais de Piedade, em todo o seu clamor de Desespero, em todo o seu soluço universal, em toda a sua dor augusta, suprema, em todo o seu amor integral e germinal da Natureza.
Shakespeare é uma dessas cristalizações puras e excepcionais das Paixões, o seu consumado e colossal gladiador.
Shakespeare, assim como Dante, pelo maravilhoso das chamejantes esferas psíquicas onde os seus espíritos rodavam estranhamente, singularmente, pela grandiosidade patética dos seus aspectos sublimes, pela resplandecente flagrância, pelo caráter genuinamente livre, altivo e soberano da sua Imaginação, pelas iconoclastias à fórmula da Compreensão secular estreita, pelas irreverências ao Método e ao Dogma, deduzidas fatalmente e logicamente dos grandes traços gerais e dos profundos golpes de vista das suas obras, dos seus temas fundamentais e revolucionários em absoluto, por conseguinte contra a Convenção moral e espiritual do Mundo; Shakespeare e Dante, fora do oficialismo e do classismo dos seus renomes imortais, mas vistos em toda a larga e luminosa amplidão da Natureza, como devem ser vistos os grandes Espíritos, são os trágicos e majestosos faróis magnos de todas as épocas, os órgãos poderosos e mágicos da Sensibilidade humana.
Shakespeare nos evoca as correntes vulcânicas, largos e fundos abalos atmosféricos, rara e curiosa elaboração de um novo sistema planetário, vales de rosas e de lágrimas, eclipses de sol e de lua, o Caos tomando forma e tomando corpo, a luz, por fim, se projetando e iluminando a Imensidade.
Shakespeare é a Vida por camadas densas, chamejando e clamando, polarizada no abismante infinito do Sonho.
Shakespeare é o Grandioso do Belo-Horrível, do Trágico-Sublime e do Trágico-Grotesco, do Riso-Lúgubre, do Sarcasmo de lama, estrelas e ais — é o Deus infernal e o Diabo divino.
Shakespeare é a Flora absurdamente gigantesca, esquisita e ensangüentada do estranho e morno mar marulhoso e maravilhoso dos gemidos, dos soluços, das lágrimas.
Quanto à observação, essa é o fatigado, o gasto lugar-comum dos que muito pouco ou mesmo nada possuem além dela. É evidente que um artista, desde que chegou a requintes superiores, desde que a sua concepção e forma atingiram graus elevados, se espiritualizaram, se eterificaram em abstrações, a origem dessas perfectibilidades, o crisol onde esse artista se apurou foi no da observação, no da análise. A observação parece a força mais poderosa, a qualidade mais particular para os realistas da última hora, porque no Realismo a observação é flagrante pelo documento humano, é flagrante nos objetos, nos aspectos, nas atitudes, nos tipos. Ligeiramente visto, parece, com efeito, ser a mais radical qualidade, por ficar mais em evidência, mais no primeiro plano, fazendo como que um grande relevo no Realismo e sendo assim, por isso, mais acessível às faculdades inferiores da atenção, da visualidade e da memória. Mas, o que é certo, é que em todos os tempos, para dizer um aspeto de céu, de paisagem, para traçar um fato ou um tipo, nas narrativas, novelas e romances antigos, houve sempre a observação, senão com a perfeição e apreensão modernas, ao menos com os elementos que as épocas forneciam. E mesmo nunca se poderia prescindir dessa observação na ocasião de puras descrições e desenhos de lugares, de horas, de acontecimentos, de paisagens. Por isso não me parece que seja a observação faculdade suprema. Acho-a muito evidencial, muito física, muito de nota e informação subsidiária, participando muito da natureza dos trabalhos de investigação material, de detalhes, de minudências, para poder constituir e representar a força magna do Pensamento humano. É até às vezes faculdade elementar, conseguida mais pela tenacidade de organismos por algum modo oficiais, inferiores, pela pesquisa paciente, de visão perscrutadora, do que pelas linhas profundas que formam a estesia eleita de um artista.
A observação constitui a força básica do artista, dela é que ele parte para as mais altas abstrações estéticas, como os Decadentes, os Simbolistas, os Místicos, partem das cruezas brutais do Materialismo, da tangibilidade do Realismo e do agudo e livre exame das Idéias positivas, além de outras absolutas origens idealistas nevro-psíquicas, num movimento natural, simples e até nobre e claramente evolutivo, de requintes da alma.
Se dado artista chegou logicamente a um apuro maior de emoções e só as determina de um modo abstrato, vago, fluido, não quer isso dizer que ele não tenha observação, pois essa se enuncia e consubstancia muitas vezes apenas num vocábulo exato, determinante próprio e profundo do sentimento, essa ficou, como os resíduos de um corpo líquido que se filtra, no fundo daquelas mesmas emoções mais requintadas. E, como a natureza não dá saltos, uma fisionomia legítima de artista, desde que se perfectibilizou no pensar e no sentir, passou primeiro pelos processos, embora obscuros, desconhecidos, meramente mentais, da mais pura observação, deixando simplesmente dela, para trás, tudo quanto ela tem de mais presente, seco e documental. É precisamente um trabalho delicado de alquimia da Emoção, para dar cristalinidade astral ao Espírito e à Forma, que no organismo artístico intuitivamente e invisivelmente se opera.
De outro modo, não se daria então o caso dos artistas que não são realistas se compenetrarem, com inteira compreensão e unção, do sentimento de observação e análise de todas as obras verdadeiramente notáveis, singularmente belas do Realismo.
Aqui mesmo, agora, no que vamos naturalmente dizendo, com este ar de livre e leve bom humor, estamos exercendo a observação, mais do que a observação a análise, mais do que a análise, a direta, a penetrante psicologia das Cousas.
A observação, a análise, a psicologia, depuradas, filtradas pela Sensibilidade, produzem, em essência, a Abstração.
E, já que abordamos estes pontos curiosos, atraentes, ouve ainda o que penso: Quanto à prosa, para ligar um fio de palestra que já há dias tivemos e que agora correlaciona-se a estes assuntos, dir-te-ei que a prosa não é qualidade excepcional dos prosadores exclusivos. Para um espírito complexo de Arte, para o verdadeiro Clarividente, para o Poeta, na grande acepção de sensibilidade desse vocábulo, prosa e verso são teclas, órgãos diferentes onde ele fere as suas Idéias e Sonhos. Prosa e verso são simples instrumentos de transmissão do Pensamento. E, quanto a mim, se me fosse dado organizar, criar uma nova forma para essa transmissão, certo que o teria feito, a fim de dar ainda mais ductilidade e amplidão ao meu Sonho. Nem prosa nem verso! Outra manifestação, se possível fosse. Uma Força, um Poder, uma Luz, outro Aroma, outra Magia, outro Movimento capaz de veicular e fazer viver e sentir e chorar e rir e cantar e eternizar tudo o que ondeia e turbilhona em vertigens na alma de um artista definitivo, absoluto.
A prosa não pode ser sempre de caráter imutável, impassível diante da flexibilidade nervosa, da aspiração ascendente, da volubilidade irrequieta do Sentimento humano. Não há hoje, nesta Hora alta e suprema dos tempos, fórmulas preestabelecidas e constituídas em códigos para a estrutura da prosa, principalmente quando ela é feita por uma sensibilidade doentia e extrema. Há tantas maneiras de fazer cantar a prosa, de a fazer viver, radiar, florir e sangrar, quantas sejam as diversidades dos temperamentos reais e eleitos.
É um caquetismo intelectual ou cavilosidade dos que só produzem verso e dos que só produzem prosa, não perceberem que determinado artista se manifesta igualmente no verso e na prosa, especialmente quando nessa prosa ele consegue traduzir, comunicar com clareza, com profundidade, a sua estesia, a sua idiossincrasia, os seus êxtases, as suas ansiedades íntimas. Pouco importa que essa prosa não guarde regularidades de preceitos, de dogmas, de convenções, que embora partindo às vezes de cérebros até certo ponto livres, são ainda, de certo modo, por certas causas, convenções puras. O que importa é que o artista consiga dizer imperturbavelmente, com a sinceridade dos seus nervos e da sua visão, o que de mais delicado e elevado experimenta.
Desde que ele tenha conseguido com lealdade estética essa profunda manifestação do seu temperamento, tem funcionado na prosa como num legítimo e perfeito órgão da sua Arte, com toda a virginal originalidade das formas inquietas, dos estilos que não são apenas literariamente feitos, que não são apenas literariamente burilados, intelectualmente brunidos, mas das formas sentidas, vividas, mas dos estilos arrancados, sangrados, vibrados eloqüentemente da Alma.
Se essa determinada prosa dá sugestões, desperta curiosidades, faz acordar a imaginação e consegue trazer no estilo modalidades perfeitamente originais, correspondentes à originalidade do temperamento do artista, como, pois, que o que ele produz, não é prosa, não se deverá chamar prosa?
Por um lado até mesmo parece que não deveria ser esse o seu nome; não por não abranger o pretendido sentimento e forma especiais, particulares, da prosa, mas por ultrapassar, por superiorizar-se, por tomar outra elasticidade, outras vibrações, outras modalidades que a prosa convencional e feita sob moldes estabelecidos jamais comporta.
Demais, prosa e verso, numa dada natureza, são cordas vibráteis, manifestações integrais e simples de uma Estética pura e à parte.
E, dessas cordas vibráteis, se muitos possuem apenas uma, com delicadeza, intensidade e correção superior, não quer isso dizer que outros não possam, por excepcionalidade, possuir duas, com igual ou maior correção ainda, o que simplesmente indica complexidade e força.
Um ser artístico assim é como uma harpa exótica de duas cordas: —uma corda para a prosa, outra corda para o verso, formando os sons de ambas essas cordas uma igual harmonia.
Há horas em que o espírito, por infinitas dolências, pela volúpia do Vago, pelo desejo consolador de elevar cânticos às Esferas, de compor músicas leves, sutis, ritmos langues, finas baladas, peregrinas barcarolas, de murmurar, enfim, queixas veladas, cinzela estrofes, vaga pelas gôndolas siderais da Poesia...
Mas, há também outras horas, em que o espírito, revestido de severas vestes talares, é arrastado por sugestões desconhecidas de uma eloqüência magna, mais indutiva, comunicativa e direta e fala então clarividentemente pelo Salmo austero da prosa.
Da prosa que nos faz viver com as suas vidências sugestivas, que cria para nós novos mundos imaginativos, que nos revela tesouros virgens, intactos de pensamento e que nos abre de par em par as portas de uma outra Vida.
Da prosa clarividente e percuciente — alvorada de fanfarras de ouro e diamantes, que acorda, chamando alvoroçadamente e nervosamente a postos, os belos e bravos legionários da Reivindicação do Espírito!
Do verso que nos desperta, que nos chama com seu amor, que nos procura, que vem a nós generosamente, que nos conquista e que nos bate heroicamente ao peito com suas asas de águia.
Do verso que renasce, que ressuscita na glória da Forma e que semeia d'estrelas e de lágrimas o seio branco, cândido e fecundo da Alma.
E a Originalidade — alacridade nervosa, vinho acídulo e delicioso da sensação, extravagante humor cor-de-rosa, — timbra claro e quente, com os afidalgamentos do Estilo, a emotiva e esdrúxula linguagem do atormentado Sentimento.
Depois, há naturezas que são como cristais de múltiplas facetas; têm diversas irradiações, brilhos imprevistos, que são fugidios, escapam a muitas percepções.
Depois, certas percuciências, certos atilamentos, certos golpes acres e fundos, embora por síntese, em tudo quanto é meandro e capciosidade do medalhismo, certos sentidos, exotismos de forma, dão, para certa classe incolor e inodora de inteligências, um efeito d'escândalo obsceno. Como que perfeitamente causam, sempre, em todas as épocas, em todas as fases, a sensação brusca, violenta, de um homem flagrantemente nu entre outros homens inteiramente vestidos e muito apertados numa espécie de espartilho de convenção intelectual.
— É como a velha questão das escolas, dos grupos, que desorienta e confunde a tantos.
— É verdade, as escolas, as escolas! As escolas só ficam com os principais, com os chefes ou fundadores. Só os que conseguem marcar fundo a expressão de um sentimento e de uma forma, Os que têm os arrebatamentos e alucinações do Sonho e que pairam fora das órbitas geralmente traçadas. Os mais são apenas satélites, reflexos pálidos, metidos numa compreensão restrita como em escuros, lôbregos e estreitos corredores. Essas filiações, pois, desde que não há grandes asas desvairadas para plainar no alto, só amesquinham e vão aos poucos inoculando o espírito frívolo de moda nos que não possuem temperamento ingênito nem essa força de isolamento mental para criar sem sugestões diretas, imediatas. Quanto aos grupos, tanto quanto é mister a organizações sociais, não há grupos constituídos, como a Sociedade Amor às Letras, a Palestra Amena, a Brisa e o Grêmio do Momento Solene. Os grupos, como se compreende, são os que se pode dizer criados por abstrações, isto é, individualidades que já existindo, aqui, além, lá, em todo o tempo, vêm a se ligar mais tarde, no mesmo meio ou fora dele, por grandes linhas gerais, por correntes de simpatia intelectual, por inteiras relações de afinidade estética, por harmonia de requintes até certo modo unos, embora cada uma dessas individualidades tenha a sua enfibratura especial correspondente a um dado requinte. Os grupos, quanto a mim, só se estabelecem assim, independente da vontade própria de cada um, mas por um impulso desconhecido, por um instintivo apuramento, por uma seleção natural que foge a todas as regras preestabelecidas.
Assim, meu caro e saudoso seminarista de outrora, de que servem argumentos de ferro, de que valem confusões e atropelos, se tudo, na Arte, vai se aclarando numa luz meiga, inefável, serena como a desta tarde que nos envolve, se tudo são embaraços que desaparecem uma vez que se adquire a força altiva, embora obscura e humildemente desenvolvida, de uma convicção e fé verdadeiras?!
Em Arte é escusado negar quem for um ser definitivo, supremo, como também é escusado afirmar quem o não for. Não é a opinião deste nem daquele, nem mesmo do mundo inteiro que afirma ou que nega; mas sim única e simplesmente a Natureza nas espontâneas, flagrantes Revelações, no poder misterioso, na inevitabilidade dos seus fenômenos profundos.
Depois, quando se chega a certas claras alturas; quando, transfigurados, nos encontramos frente a frente, e de olhos leais e límpidos, com a verdadeira magia do Belo; quando, afinal, sentimos dentro em nós viver o Absoluto, ficamos vagamente sorrindo, serenos e silenciosos, a cabeça um tanto inclinada numa atitude beatífica, como, na eloqüente mudez das Esferas, sob a augusta solidão das estrelas, a atitude patética e meio sonâmbula de um demônio divino.
De que servem, pois, mofas, de que valem, pois apupos?
É de ti, deste, daquele, que falam, que vociferam? Pois as bocas, que eles trazem, para que foram feitas? Para falar, não é assim? Pois que falem, as bocas... Pois que unjam de fel o teu nome, as bocas... Pois que se saciem de ti, as bocas... Pois que lubricamente te devorem, as bocas...
Que te neguem, por pregões ridículos, por decretos grotescos, que façam, em torno do teu nome, a campanha cavilosa do silêncio ou das perfídias e caluniazinhas da mediocridade e nulidade triunfante — que importa isso?! — se tu, na serena força da tua Fé, vais calmo, vais tranqüilo, no radiante humor, despreocupado, simples, dos que caminham, dos que seguem desdenhando sempre?!
Riem de ti, acaso?! Pois, então, ri-te, tu, do riso... A tudo isso, a tudo isso, ri-te, ri-te... Por mais venenos, por mais perversidades, por mais volúpia maligna, por mais crime, por mais vício psíquico que essas risadas possam ter, fica simples e alto, intacto, imperturbável diante de tudo isso e ri-te, — risadas, risadas, grandes risadas vibradas d'alto e ao largo a tudo isso — grandes risadas, grandes risadas!
E, um dia, pelas razões ingênitas da tua organização, se tiveres uma natureza genuinamente eleita, tocando alto no Sentimento; um dia que a manifestares toda inteira, amplamente, tal como se foi ela de grau em grau fecundando, verás o abalo, os turbilhões de ar que irás aos poucos deslocando em torno de ti.
A princípio, os mais fátuos, que te julgarem conhecer melhor, só sentirão e conhecerão de ti os lados visíveis, os pontos de perfeita tangibilidade.
Mas, quando a obra que estiver chamejando dentro de ti for tomando complexidades, absurdos novos, exotismos, eloqüências esquisitas e por isso inocentemente agressivas, atacantes e demolidoras nas suas linhas gerais, sem parti-pris, sem pose, mas por fundamentações e integrações, tudo se bandeará do teu lado, os de mais lisura ou mais afetados apenas de intelectualidade recuarão de ti como se tivesses lepra ou trouxesses estigmas infamantes, labéus ignóbeis, e, desde logo, a cisão fatal se dará então subitamente, pejando o ar de dissabores amargos de veementes dissensões...
É como se tu fosses por um livre caminho a fora com diferentes companheiros e de repente o caminho se bifurcasse: — várias encruzilhadas, uma direita, clara, extensa, as outras curtas e tortuosas, se te apresentassem diante dos olhos.
Tu seguirias pela mais longa, pela mais ampla, pela mais larga. Poucos te acompanhariam. A maior parte tomaria as fáceis encruzilhadas curtas, mas tortuosas...
E, se um dia, chegado primeiro que eles ao termo da viagem, em virtude da mais pronta acessibilidade do caminho largo, franco, direito, tivesses de os encontrar mais tarde, poderias, não há dúvida, apertar-lhes lealmente as mãos, falar-lhes com simplicidade e afeto, abrir-lhes cordialmente os braços, mas terias ficado, pelas dispersadoras fatalidades do tempo, já muito afastado, muito longe deles.
É que as almas, quando chega a hora alta e grave dos supremos julgamentos, das seleções supremas, separam-se inevitavelmente, sem remédio, irreconciliáveis e tristes, só ficando juntas sempre aquelas que marcham para o centro inflamado do mesmo Objetivo.
Depois, mesmo, neste deserto de pedra das almas, as almas brancas, essas que trazem a Grandeza e a Espiritualidade consigo, essas, em virtude das Dúvidas, das Oscilações ambientes, têm que soluçar até à morte!
Enquanto passares por certa fase de incipiência; enquanto deres a esperança de ser uma eterna esperança; enquanto te julgarem o perpétuo acólito reverenciador e discreto, a fácil muleta de apoio às suas vaidades e pretensões, todos te bafejarão como um recém-nascido beijocado de mimos, amamentado com carinhos babosos, cercado de cuidados infinitos, de enleios afagadores. A Hidra das Literaturas, supondo-te tímido e nulo, te embalará em seu seio, iludida contigo, dizendo soturnamente: — este é dos nossos! este é dos nossos!
Mas, assim que levantares resoluta e inabalavelmente a fronte, assim que começares a manifestar mais a recôndita sensibilidade dos teus nervos, a insatisfação da tua estesia, assim que o teu espírito for se difundindo no espaço, enchendo as Esferas, a boa Hidra-Mãe te será carrasco, forjando para a tua cabeça, subterraneamente, a guilhotina feroz!
Vendavais de antipatias, de ódios, de despeitos, de retorcidas e esverdeadas invejas soprarão desencadeados sobre os teus ombros atléticos e firmes...
Enfim, carregar cruzes, arrastar calvários, irás pelo mundo, irás pelo mundo!
Se trazes com efeito contigo uma feição nova da Arte, trazes contigo uma Dor nova...
Se trazes com efeito contigo a inflamada matéria-prima para fundir os Ideais mais nobres e belos, agora é só comunicar-lhes vida, intensos sopros de vida, te concentrares neles, e resplandecer, e alar...
Nessas romarias e escaladas obscuras em que por ora vais, pelo Espírito, não sejas dos oportunistas da Arte.
Acompanhe-te, ilumine-te sempre esse profundo sentimento artístico de abnegação cultual, de resignação, ou antes de conciliação na Dor, de desprendimento completo das Ambições e Ostentações, do Grande-Lânguido Verlaine, alma de meigo lirismo, essa frescura e velhice cândida de emoção, Fauno-Sacerdote a oficiar nos Missais hieroglíficos da suprema volúpia da Forma ou desse outro ducal, aureoladamente flordelisado e excelso Villiers de L'Isle Adam, sublime e celeste Artista, que tem para mim um encanto misterioso de cintilação planetária e uma solenidade sagrada de tabernáculos intactos.
Que a tua forma seja floresta, seja mar ou seja céu!
Segue, com unção e contrição, essa espécie dolente de martirizados Santos sem nichos — Santos temerários que afrontam com impassibilidade os incêndios devoradores das paixões do mundo; que, como Santo Estêvão, se deixam brusca e impetuosamente apedrejar na concavidade do peito, tendo a douta, a erudita clemência apostólica de Santo Agostinho.
Segue esses Santos tristes — meio obscuros e poderosos, meio humildes e rebelados, meio ironistas e sarcásticos. Seres mórbida e voluptuosamente estesíacos, eles como que trazem um curioso desvio do sexo, fazendo evocar Santa Teresa de Jesus, cuja requintada mortificação no recolhimento da cela parecia significar a tortura máscula, viril, do sentimento de um eleito da Grande Arte, que se tivesse ido fenomenalmente asilar, por sutil, imperceptível erro genésico, num delicado e nervoso temperamento feminino...
Falo-te assim, venho formando diante da tua imaginação prenunciai de noviço esta atmosfera de Evangelho e Religião, não por abusados e calculados misticismos, mas porque falo a quem, pelo menos, sentiu já, nas reclusões aquietadoras do Seminário, os grandes e graves Ensinamentos e Eloqüências e Intuições da Religião, na sua essência livre, na sua estética original e na sua harmonia.
Segue, pois, com todos os teus exageros de natureza, com todos os teus grandes defeitos aclamados, que a Chatez gloriosa há de esmiuçar e descobrir mais tarde, para não se sentir muito pequena, diminuída na tua presença; defeitos só correspondentes a grandes qualidades, e que constituiriam, só por si, de tão eloqüentes e francamente excepcionais que são, as obras mais espontâneas e impressionantes dos que não trazem nem mesmo esses grandes defeitos, dos que são apenas individualidades feitas, intelectualizadas, mas não originadas de fatais e enraizados fundamentos artísticos.
Ah! esta sufocação de ar, esta asfixia, estes escrúpulos, esta suscetibilidade por ver-se a gente livre de todos os incipientes, de todos os noviços, que são eternamente incipientes, eternamente noviços, "porque não têm horas vagas para obrazinha, porque isso de Literaturas não dá pão para a boca", e outras capciosas razões de impotência que eles entre si discutem.
Sim! porque quanto a mim o Artista é um predestinado!
Quanto a mim ele é como uma ave estranha que já nascesse com as suas asas poderosas e gigantescas, ainda retraídas embora por algum tempo, mas que depois as fosse abrindo aos poucos, abrindo, abrindo, até que se distendessem de todo pelos espaços fora, projetando então a sua grande e consoladora sombra de Amor sobre o velho mundo fatigado.
Ah! esta ansiedade de segregar-se a gente desses liliputianos prolíferos, que se reproduzem mais indefinidamente que os bichos-da-seda; que nos agarram pelo braço, que nos entram pelos ouvidos, pelos olhos, que nos atordoam com prosas e versos, sempre muito superiores e requintados!
Dessas individualidades grotescas, que querem tornar a Arte de assalto e à bruta, sem nunca compreenderem profundamente as cousas, por mais que falem, por mais que gesticulem; verdadeiros animais de corrida que pensam que a Arte é uma questão de aposta para ver quem chega primeiro e mais garboso ao final.
Iconoclastazinhos, sem essa veneração nobre, sem esse recato elevado, esse melindre das naturezas concentradas, cujo acatamento e cujo fundo de timidez característica são o toque mais belo e mais digno dos que reconhecem justa e eloqüentemente a superioridade dos outros, exprimindo e demonstrando também assim, por essa forma simples e simpática, uma das faces da sua própria superioridade.
Oh! insaciável, ardente aspiração de árvore antiga, legendária, que quisesse ficar completamente liberta de todas as parasitas, de todas as ervas, de todas as lianas, de todos os musgos, de todas as trepadeiras e baraços e nervosidades e vertigens de folhagens que a abraçassem, que subissem por ela acima, que a povoassem de verdura alheia — deixando-a só, só, simples e cheia de sombra, vivendo serena e silenciosa, ou gorjeada da Aleluia dos pássaros, para a Amplidão azul!...
Não, não será por um estreito pessoalismo egoístico, por uma compreensão acanhada, por uma presunção individual que tu te manifestarás com excepcionalidade de sentir, de ver, de pensar.
Mas o teu lábio arderá de tanta inquietude, palpitará de tanta febre, sangrará tanto que tu exprimirás então por Sínteses tudo o que constitui a essência do teu ser e passarás assim por iconoclasta e pessimista à ou-trance, apregoador de falsos paradoxos, demolidor sem o fundo de um objetivo honesto, fútil, folgazão, mundano que afinal até inveja as glórias mais decantadas que cem mil trombetas proclamam das velhas muralhas de Jericó da Opinião!
Mas tu, como um inquisidor original e santo purificarás com o fogo benéfico do teu Espírito, essas chagadas consciências humanas debatendo-se, desoladas numa impotência que escondem sempre bem fundo como certos tísicos escondem, negando, o grau agudo da doença corrosiva e lenta que os dilacera.
Nós outros, que por aí dolorosamente andamos desbravando as florestas virgens da língua, deflorando os viços púberes do vocábulo, procurando dizer claro, claro como trompas sonoras estrugindo no mar sargaçoso e resplandecente, numa rosada manhã de pesca, claro como se o sol falasse, os nossos estados d'alma, os nossos êxtases, as nossas idiossincrasias e inquietudes, de abelhas nos caprichos curiosos da colméia, somos como fantasmas múmicos, por desertos, batemos de cheio em paredes de bronze, rebentamos horrivelmente a cabeça contra tenebrosas masmorras de granito...
E vê, vê tu lá que não é isso uma visão do avesso, um modo rude, violentamente carregado, de sentir; — mas, tu que sonhas, que ambicionas já ser limpo nas tuas Enunciações, trazer o sinal característico, o cunho imaculado, a prata e a bronze, a ouro e a aço, a sol e a sangue, de uma evidência firme, vê lá bem se não é assim tudo, se tudo não é corja, corja, corja que rasteja, corja que raiva, corja que ruge, hordas brutas que bramem, bárbaras, hórridas hordas...
Através da névoa delicada das cismas que te tecem brando e emovente crepúsculo nos olhos, eu vagamente pressinto radiantes lineamentos, revelações curiosas do teu Oriente espiritual futuro, como das neblinas tranqüilas e luminosas desta carinhosa tarde que finda antevejo a aurora flavescente de amanhã...
Sugestivamente, agora, cheia de concentrações e de vago, a tarde descia, mística, suave e sagrada, evangélica, para a Religão solene do Silêncio...
Derradeiras harmonias veladas, de sol e sombra, erram indefinidamente nos espaços...
E, sombra e sol, na transição dessa hora meditativa, como que parecem sensibilizados, tocados de emoção humana, de músicas enevoadas, misteriosas, sonorizando os afetivos acordes de almas virgens, mortas, felizes e firmes, com alvuras meigas de Castidade, na solidão da Fé cristã.
Dorsos de colinas, ao fundo do mar calmo, recortam-se nitidamente no horizonte, já mais vago, esfuminhando o doce tom de verdura que ao longo e ao largo aveludesce.
Um barco, lentamente, fere as águas melancólicas do verde e vasto mar amargo.
A embaladora dormência dos aspectos dá um repouso pacificante...
E, dentre a crepuscular serenidade, mais densa aos poucos, voa, vai e vem e volta através da espuma branca das ondas, pelos aloendros floridos e salitrosos, uma ave alvinitente, de incomparável suavidade, que não canta, mas que dá saudosamente à tarde a mais tocante espiritualidade só com o encanto aéreo dos vôos, só com o ritmo leve, fino, das asas simples e venturosas...
O sol, nos opulentos damascos do Poente imergira já de todo, profundamente: — Nero lascivo, em tédios augustos, no gozo mórbido das chamas rubras do incêndio de Roma; Rei guerreiro, por entre as púrpuras sanguinolentas de acres batalhas.
As sombras, vagarosas, no delíquio final do dia, descem, descem...
Estrelas, num esmalte finíssimo de cristais e pratas, começam a florescer, a marchetar o firmamento, em faiscantes e trêmulas claridades de Relíquias miraculosas.
Soberba, imensa, prodigiosamente branca, misteriosa, como eterna paixão estranha, uma lua brumosa, feiticeira e lendária, surge, trazendo vivamente um desejo na face triste, atormentada, arrastando pesadelos sinistros de assinaladores presságios de vingança...
A paisagem amplia-se num adormecimento luminoso e velado, toda ela recendendo aromáticos eflúvios, como se névoas delicadas de perfumes luxuriosos, queimados em ânforas invisíveis, ondulassem vaporosamente...
E, sob a noite, que pompeava profunda, aureolada da resplandecência maravilhosa das Estrelas e da Lua, os dois vultos, como missionários graves dos sombrios e supremos Sacrifícios, seguiram mudos, calados, a cabeça descoberta ao sabor carinhoso da aragem perfumada.
Assim graves e abstratos caminhando atravessavam agora as abóbadas cheias de segredos noturnos das grandes árvores frondosas de um vasto parque, parecendo, então, pela austeridade religiosa que os exaltava nesse momento, penetrarem, reverentes e calmos, paramentados solenemente, no majestoso Vaticano da Arte.