Invenção dos Aeróstatos Reivindicada/Capítulo 3
As tentativas aeronauticas de Bartholomeu Lourenço de Gusmão succederam na epoca da maior decadencia da poesia em Portugal. Haviam-se até apagado os ultimos raios com que a escola denominada hespanhola brilhara por entre os muitos e grandes defeitos de suas ridiculas exagerações. Enfraquecida pelo correr do tempo, a influencia das tradições gloriosas do seculo XVI não dissimulava já os effeitos das causas que por largos annos tinham contribuido para perverter a litteratura. Esgotada a força d'aquelle salutar antidoto, manifestava-se, emfim, rasa e mal assombrada a enfermidade, que haviam longamente gerado as perseguições da inquisição, os vexames do dominio estrangeiro e a degradação das ordens religiosas, que tinham sido antes o mais firme sustentaculo da pureza dos estudos e do bom gosto litterario.
Em 1709 não se nos depara um só poeta, mas vemos versejadores sem conto. Não havia quem se não julgasse capaz de execitar a arte privilegiada de Camões e de Quevedo; todos faziam versos e tudo se escrevia em verso ; a nação parecia um vasto Parnaso. Abundam na Fenix Renascida no Postilhão d'Apollo e n'outras collecções impressas ou manuscriptas as provas do que dizemos.
São numerosas as poesias que temos colligido, concernentes á machina volante. E quem sabe as que se perderam e quantas virão ainda a apparecer? Todas ellas ridiculisam mais ou menos pungentemente a Bartholomeu Lourenço, o Voador. Nem admira que isto assim fosse em Portugal no principio do seculo passado, succedendo o mesmo em França oitenta annos depois a diversos aeronautas, e até a quem lá applicou primeiro que todos a força do vapôr á navegação, ao marquez de Jouffroy que alcunharam de Jouffroy la Pompe[1].
Entrámos em duvida se publicariamos ou não as poesias que se seguem destituidas, como são, de todo o merito e sem ministrarem mais que vagas allusões ao invento de que tractamos. Decidimo-nos a dar-lhes, ainda assim publicidade, não só como testemuoho geral e irrecusavel do facto, mas tambem por conterem alguns elementos que poderão aproveitar áquelles que, mais minuciosamente de que nós, quizerem traçar a biographia do auctor da machina volante.
Icaro de baêta tonsurado
Andarim do diaphano elemento
Que em Pacabote de não visto invento,
Queres ser pensamento, e dàs cuidado
Se ha basbaques que creiam de contado
Da volatil patranha o fundamento,
Eu tão leve não sou, que do teu vento
Nem sequer fie o fumo de um telhado.
Mas se affectas a fé do que apregôas,
Faze essa diabrura; que te aviso,
E terás mil applausos e corôas.
Mette esse invento adonde tens o sizo,
Vê se no vento que está n'elle, vôas;
Que outro voar meu Lourencinho é riso.[2]
Veio na frota um duende brazileiro,
Em traje clerical, sotana e cr'ôa,
Fez crêr, que pelo ar navega, e vôa
N'um barco sem piloto e sem remeiro ;
Vae-se ao marquez de Fontes[3] mui ligeiro,
Declara-lhe o segredo, este o apregôa;
Sahe a consulta, pasma-se Lisboa,
E em tanto esquece a fome no Terreiro :
Bem merece este duende eterno assento
Na etherea região, eu já lhe approvo
A diabrura do subtil invento;
Pois um milagre fez, que é mais que novo
Em manter tantas boccas só de vento,
Fazendo um camaleão de tanto povo.[4]
Com que invento queres baixo idiota,
Com que engenho te atreves brazileiro
A voar no ar sendo pateiro,
Desejando aguia ser, sem ser gaivota?
Melhor te fora na região remota,
D'onde nasceste estar com sizo inteiro,
Sem pretenderes ser tu o primeiro,
Que faças uma celebre derrota.
Mas bem obras, que te achas n'uma terra,
Onde vêmos subir á mór altura
Sujeitos mui pezados, por mui brutos.
Não me admira não, pois ninguem erra
Quando subidas taes louco procuras
Vendêr, que tantos vôam por astutos.[5]
Difficil é o voar,
Muito mais fazel-o crêr,
Mas ha quem chegue a entender
Que póde subir ao ar.
Se no tempo antigo ao mar
Cahiu um tal inventor,
Que espera o nosso auctor,
Se já não é que atrevido
Presume ter merecido
Tumulo mais superior !
Logo ha de cahir
Quem mais quer voar,
Porque do baixar
O meio é subir. [6]
Para crêr-vos rasão tenho,
Não só por seres sutil,
Mas porque sois do Brazil,
Que é terra de muito engenho,
Mas ainda assim não convenho
Na traça que quereis dar,
Porque não podeis traçar
O que n'ella prometteis ;
E mais quando o que fazeis
São tudo coisas no ar.
Na vossa idêa se emcerra
O que o mundo inda não viu,
Mas com tudo já se riu
Do vosso arbitrio a terra.
Já a vossa idêa não erra,
Porque mostra na verdade
Que com bem facilidade
Fazeis coisa que se conte :
Não é mais voar um monte
Que abalar uma cidade.
Espera-se o vosso invento,
Que não é de duvidar
Que saia de mui bom ar
O que hade levar o vento.
Acreditae vosso intento,
(Icaro vos seja avizo)
Passando a Roca com sizo,
Porque, se a altura não mente,
Fareis chorar muita gente,
Sendo isto coisa de riso.
Trabalhae mui pouco e pouco,
Considerae bem as alturas,
Que todas essas figuras
Vos canonisam por louco.
Mas se esse artefacto é ôco,
Por vosso o conhecerão,
Pois bem se vê que sois vão
Em quereres, assim é,
Ter-vos nos ares em pé
Sem vos dar a terra mão.[7]
Esta maroma escondida,
Que abala toda a cidade;
Esta mentira verdade,
Ou esta duvida crida;
Esta exhalação nascida
No portuguez firmamento;
Este nunca visto invento
Do padre Bartholomeu
Assim fora santo eu,
Como elle é coisa de vento.
Esta fera passarola,
Que leva, por mais que brame
Trezentos mil réis de arame
Sómente para a gaiola;
Esta urdida paviola,
Ou este tecido enredo;
Este das mulheres medo,
E emfim dos homens espanto,
Assim fôra eu cedo santo,
Como se ha de acabar cedo.[8]
Muito ha que escondida
Se vê já n'esta cidade
Uma não crida verdade,
Quando a mentira é tão crida:
Mas como esta é nascida
No portuguez firmamento,
Por isso é que n'este invento
Do padre Bartholomeu
Dizem todos, mas não eu,
Que ha de ser coisa de vento.
Se lhe chamam passarola,
É impossivel que brame,
Porque está feita d'arame,
Nunca cantou em gaiola.
Chama-lhe sim padiola,
Mas feita com tal enredo,
Que será das mulheres medo,
Será dos homens espanto ;
E assim fôra eu cedo santo,
Como elle ha de ser bem cedo.[9]
Temos de voar um mestre,
Que os passos converte em vôos ;
E é de crêr que veiu ao mundo
Com este disfarce Eolo.
Chegou do Sul, affectando
Ser do Brazil um mazombo,
E mostra nos arremedos
Que vem da terra dos monos.
Nas habilidades raro,
Nas industrias prodigioso,
Se a Dedalo não excede,
Leva vantagem a Esopo.
Que não é senhor d'engenho
Se diz ; mas não me acommodo :
Pois de vento o inculca ter
Quem quer voar no miolo.
Todo o volume arremeda
Tão natural, que é o proprio
Vêl-o por vêr um compendio
Dos livros sem faltar ponto.
De ponto, porém, subindo
Quer ou por cysne. ou por corvo
Vestir azas com que intenta
Penetrar o ethereo globo.
Tanto que propoz o arbitrio
O viu admittido logo,
E de passaro lhe deram
O alvará com sello posto.
É passaro tão solemne,
Que havendo outros por mil modos,
Com tanta solemnidade
O não foi nenhum dos outros.
Pelo ar metter promette
Em qualquer praça soccorro,
E pelo ar soccorrida
Não ser vencida é notorio.
Levar drogas ás conquistas,
Trazer d'ellas o retorno
Sem perigos de corsarios
Sem riscos de mar e fogo.
Pode haver fortuna tal
Como a d'este grande logro ?
Eguala-se ao nosso reino
Outro algum no venturoso ?
Ha coisa como ir voando
Eu, pezado humano corpo
De um clima para outro clima
De um polo para outro polo ?
No mundo póde haver dita
Nem felicidade, como
Voar de um outeiro a um valle,
De uma planicie a um combro ?
De um zambujeiro a um cypreste,
De um alemo para um choupo,
Brincando de ramo em ramo,
Saltando de tronco em tronco ?
Cheirando as flores mais bellas,
Comendo os mais ricos pomos,
Que ha de flora nos districtos,
De Pomona nos contornos ?
Ter facil qualquer caminho,
Quer seja breve quer longo,
Sem mar, sem impedimento,
Sem rochedo, sem estorvo ?
Gyrar por todos os rumos,
Por todos os promontorios,
Vendo effeitos peregrinos
E portentos monstruosos :
Mil partos sahir das grutas,
Das cavernas mil abortos,
Terriveis do monte espantos,
Horriveis do bosque assombros:
Crocodilos, dragões, serpes,
Cobras, lagartos e lobos
Rhinocerontes, leões, tigres,
Elephantes, unicorneos :
E eu passando por cima
De tantos brutos medonhos,
Sentado nas minhas azas
De palanque vendo touros ?
Repartir horas e dias
Por esses de plumas coros
Filomenas, pintasilgos
Tutinegras, pintarroxos?
Se anouteço em clima frio,
Busco abrigo e me accommodo
Das aves com as mais quentes,
Que são pardaes e pombos,
Vizito rolas, perdizes,
Patos, codornizes, pombos,
Janto de umas, de outras ceio
Um merendo, outros almoço.
Quem levar tão grossa vida,
Se porá tão nedio e gordo,
Que o gordo lhe chamarão,
Sem ser o terceiro Affonso.
Para conversar de noite,
Se divertir quero o somno,
Buscarei como é costume
Andar nas azas do jogo.
Aquellas nocturnas aves
Morcegos, cucos e mochos,
Que os olhos cerrando ao dia
Não pregam de noite os olhos,
Ando descalço e despido
De varias plumas composto,
Sem que soffra sapateiros
Nem alfaiates tão pouco:
Que os singellos companheiros
D'esse aereo consistorio,
Como vestidos não gastam
La gastal-os seria improprio.
Que de pensões o ar redime
Que são da vida suborno !
Pulgas, aranhas, formigas,
Percevejos e piolhos.
Nada d'isto lá se cria,
Não ha penedos nem lodos,
Não ha cahir de edificios,
Não ha sentir terremotos.
Tudo é subtil, tudo é puro,
Nada é quebrado nem roto,
Centro emfim é o ar das aguias,
A terra pasto de porcos.
Se em uma parte me enfado,
Dou para a outra parte um pouso,
Levo comigo o que tenho,
Salvo a roupa livro e couro.
Rindo do frio dezembro,
Zombando do ardente agosto,
No inverno ao quente me mudo,
No estio ao fresco me colho.
Se m'enfada a gente branca
Passo in continenti ao Congo,
E se preta m'enfastia,
Volto á Allemanha em um sopro.
Aqui das nações polidas.
Alli dos barbaros povos
Leis e maximas aprendo,
Coștumes e ritos noto.
Nas campanhas, nas palestras
Ou de Bellona ou d'Appollo,
Se ha que ver em qualquer parte,
Para toda a parte corro.
Acudo a todo sitio,
A toda a funcção de gosto,
Que onde quer que a boda seja,
De toda a distancia volto.
Que, supposto paos não leve,
Tudo venço e tudo posso,
Que em soltando as minhas azas
Tenho atados os meus molhos.
Se em Lisboa mal me sinto,
Em um pincho estou no Porto,
E quando arde a Guadiana
Passo in continenti ao Douro.
Tudo quanto quero alcanço,
Tudo quanto vejo logro,
Hoje estou nos Pyreneus,
Amanhan nos hyperboreos.
Quanto intento me levanto,
Quanto quero me remonto,
Com as aguias fito a fito,
Com as garças rosto a rosto.
Não ha terra por sublime,
Nem por alto capitolio,
A que toda a vez que quero
Não ponha o pé no pescoço.
Andam loucos se comígo
Se querem pôr hombro a hombro
Essa hyperbole de Faro,
Esse de Rhodes colosso.
Que para ficar mais alto,
Dando ás azas mais um pouco,
Os farei para me verem
Dobrar para traz o collo.
D'este estranho invento á vista,
Já agora certo supponho
De Icaro o vôo arrojado,
Que era até aqui fabuloso.
Mas do nosso inventor temo
Um risco, que ao vêr tal monstro
Haja na região etherea
Algum motim estrondoso:
E que com as aves tenha
Algum notavel encontro
Armadas em batalhões
Para deffender seus foros.
E sendo a queda precisa
Sobre a terra ou sobre o golfo,
Tal será n'aquella o estrago
Qual será n'este o destroço.
Porém por singular caso
O d'este voador não conto,
Porque já voaram muitos
Do vil pó a excelsos thronos.
Saul quando foi ungido
Rei, com termo mysterioso,
Buscando andava um jumento
Sem tal cuidar nem por sonhos.
David, que do mesmo sceptro
Foi successor sempre heroico
De Jessé poucas ovelhas
Guardava em monte escabroso.
Oleiro foi Agatocles,
De Sicilia rei famoso,
E da officina de barro
Deu vôo ao regio solo.
O arado Vamba regia,
Da terra instrumento bronco,
Quando acclamado se viu
Rei soberano dos godos.
Tarquinio o covado dando
Pelo sceptro, egregio troco !
De mercador se viu rei
Em Roma do mundo emporio.
Voaram a altos cothurnos
Desde os mais humildes sócos
Outros não só dos antigos
Dos modernos e dos nossos
Bem pouco ha se abrigavam
Em aposentos bem toscos
Muitos que vemos subidos
Em paços bem sumptuosos :
Fazendo primeiros papeis,
Não sendo nem para bobos,
Vemos alguns no theatro
Do mundo com bravo estrondo.
Outros, cujo solar sendo
De navalhas um estojo,
A tal altura chegaram
Que estão da lua nos cornos,
Governando tribunaes
Com o foro ou desaforo,
Já não cabendo em si mesmos
Desvanecidos e fofos.
Pois transformações tão raras,
Taes do mundo desacordos,
Que foram senão volantes
Nas azas do tempo arrojos?
N'estes vôos não reparam :
A um pobre julgam por louco
Por dar modo de voar
Singularmente engenhoso :
Porque acha o que se não viu
N'este ou n'outro territorio,
Ha de ser do mundo escarneo,
Ha de ser da gente opprobrio.
Porque um não deu no segredo
Toma a quem deu n'elle arrojo,
Tão terrivel que o deseja
Lançar dentro n'um poço
Tudo começou nos sabios,
Quanto o mundo admira absorto,
E em perseguil-os os nescios
Teem sempre o seu desafogo.
Mas, assentado em que nada
Debaixo do sol é novo,
Supponho que não se admiram
Os prudentes mas os tontos.[10]
Meu padre Bartholomeu,
Eu, segundo o meu sentir
Não vi outro mais subir
De quantos vi voar eu ;
O conceito é como meu,
Que o não pude achar melhor;
Porem se como orador
Tanto sabeis levantar,
Não me deveis estranhar
Que eu vos chame VOADOR.
Tanto no ar vos remontaes,
Que com delgadas idêas
Fazeis de alcunhas plebêas
Antonomasias reaes :
E pois vos avisinhaes
Mais ao celeste fulgor,
Será tyranno rigor,
Que eu no ar tambem não falle,
E que na terra se calle,
Que é uma aguia o VOADOR.
Quem mais vôe não se vê
E se ha quem d'isto se gabe,
Até agora se não sabe
Que casta de passaro é:
Só vós da vista e da fé
Sois quem logra este primor :
E pois tão alto louvor
Não ha outro a quem se applique
Será força que eu publique
Que só vós sois VOADOR.
Por força do vosso estudo,
Por geito do Vosso estado,
Para tudo sois azado,
Tendo penna para tudo :
Assım de estylo não mudo
No estranho do meu louvor,
E entendo do meu amor
(Se o não tomaes por labeu)
Que até chegardes ao ceu
Haveis de ser VOADOR.[11]
Por grande caso em Lisboa
Contam todos menos eu,
Que o padre Bartholomeu
Voou, e a fama é que vôa,
Nada do que ouço me tôa,
Se razão não sabem dar,
De o tal homem se ausentar ;
Porque depois que faltou,
Todos dizenm que voou,
E todos fallam no ar.
Ninguem sabe ou ninguem vê
Como vôa ou quando foge,
Nem se conhece inda hoje,
Que casta de passaro é.
Que uma aguia era se crê
Apurada em um crysol ;
Mas buscar outro arrebol
(Perdôe me) foi asneira,
E foi esta aguia a primeira
Que vimos fugir do sol.
Os seus vôos na Bahia,
Algum principio tiveram,
Que por isso o não quizeram,
Os padres na companhia.
Suspeita alguma haveria
Do que se saberá cedo,
E se em segredo, de medo,
Uns padres o expulsaram lá,
Talvez que o recolham cá
Outros padres em segredo.
Sobre elle muita porfia
Tem havido em varias cazas ;
Uns assentam que sem azas
A Hollanda voar podia.
Outros que já lá teria
Este negocio ajustado,
E comtudo teem acertado
Uns e outros em rigor
Pois fez tudo o voador
Que para tudo era azado.
Na fortuna, que o ergueu,
Teve a sua desventura,
Pois o vêr-se em tanta altura
Foi quem o desvaneceu.
De tudo ao nada desceu
E quando outro rumo tome,
Mudando de alma e de nome
Quererá com certo appenso
De Bartholomeu Lourenço
Passar para Antonio Homem.
Item: se o não ha por nojo,
Creio que a sua invenção
Não foi só fazer carvão,
Foi tambem fabricar tojo.
E d'ahi nasceu o arrojo.
De ir-se embora com o diabo,
Por ir lá com a sua ao cabo ;
Mas andou mal em fugir,
Pois deu n'isto a presumir
Que ia co'o fogo no rabo.
Não me admira do que estuda,
Que na escripta sutil ande,
Pois onde ha memoria grande,
E força haver penna aguda.
Mas se d'estylo não muda
E outra vida não ordena,
É que o mau genio o condemna,
Por superstição notoria,
A voar com má memoria
E a correr com peior penna.
E eu que estou a cantar,
Sem saber como, nem quando,
Tambem em vesperas ando
De como um Pinto voar ;
Mas, para em paz descançar,
Quererá nosso Senhor
Que, de outras penas auctor
Ou de minhas culpas reu,
Me arrependa, e para o ceu
Só saiba ser voador.[12]
Credito dará Lisboa
Ao que agora não deu,
Pois o tal Bartholomeu
De que voou fama vôa,
Já voou, e não á tôa
E em taes azas voou,
Sem embargo que as atou,
Que, apezar de boas cazas,
Para levar boas azas
Muita gente depennou.
Deu um vôo mui ligeiro,
Cruzando os ares ázado,
E foi vôo tão cruzado,
Que valeu muito dinheiro;
Não foi o vôo rasteiro,
Antes o mysterio encerra
Este vôo, e haver, que erra,
Em voar no seu trofeu,
Não da terra para o ceu,
Sim do ceu para Inglaterra.
Tanto em Lisboa voou
Com ligeireza opportuna,
Que com azas da fortuna
De Lisboa ao ceu chegou.
Do sol real divisou
O luzimento elevado,
Porém, por força do fado
E d'este vôo atrevido,
Se cá foi de el-rei valído
Já de o ser está privado,
Dizem praguentos selectos,
Com juizo superior,
Que fugiu o voador
Por juizos mui secretos.
Eu, apezar dos discretos,
Se não estou farto de vinho,
Creio que o caso adivinho,
E me resolvo a dizer
Que só fugiu por não ser
Do senhor Duque visinho.
Mais que Icaro voou;
Porque a melhor sol subiu,
E hoje voando fugiu
Do sol que o auctorisou;
Creio que a luz o animou
Para tornar a voar;
Mas não me devo admirar
De buscar outro pharol,
Porque fugindo do sol
Era força ir para o mar.
Só confuso o juizo trago
De vêr que foi sem razão
Passaro de arribação
Este passaro bisnago;
Mocho foi pois sempre vago,
Foram suas vozes feias,
E levando as tripas cheias
De medo das santas cazas,
Fugiu com alheias azas,
Voou com pennas alheias.
Aqui um Pinto voar
Quiz com vôo mui distincto,
Mas quem tem azas de pinto
Não se póde remontar.
É-me preciso silvar
Esta sua presumpção,
Pois não soffro a sem razão,
Que elle arrojadó e damninho,
Sendo um pobre pintainho,
Se nos metta a taralhão.
Mas tornando ao de que fallo,
Pois d'este, aquelle é distincto,
Quero deixar este pinto,
A quem Frei Simão faz gallo
E digo sem intervallo
Que até o Santo offendeu,
De quem nome recebeu
Este voador nocivo,
Pois fugiu como captivo
Do Santo Bartholomeu,
Foi-se embora e tomou vento,
Fugiu para o mar voando,
E, póde ser, receiando
Que cá lhe dessem tormento.
Destro andou no seu intento,
Porque, se se der assenso
Dos seus erros ao immenso,
Dirão todos e mais eu
Que se foi, porque temeu
O ser como S. Lourenço.[13]
Cesse o que do Voador celebra e canta,
Que outro engenho mais alto se levanta.
Quando em sonhos um vulto lhe apparece
Que na indistincta, insolita figura,
Bem que na fórma humana homem parece,
Indicava de mono ter mistura ;
Um barrete a cabeça lhe guarnece
De azas coberto, é calvo por tonsura,
Que voando com rouco movimento,
Suspenso se librava sobre o vento.
Eu sou o Voador bem conhecido
Por meus varios ardis na Lycia Corte,
Elle lhe respondeu, mas succedido
Melhor que tu nos rumbos fui da sorte.
Navios inventei, que dirigido
O curso haviam ter do Sul ao Norte;
Mas logo a este ponto aqui tornando
Quem sou te irei primeiro relatando.
Meu nativo paiz é a Bahia
De lá passei ao reino, porque via
Que Nemo est propheta in patria amada.
Chegando a Lisboa (oh bella gente!)
Oraculo fui tido facilmente.
Um grande me abrigou no proprio hospicio,
A quem tratando ad intra de pachorra
Lo Lhe prometti traçar um artificio,
Que com velas e quilha o ar discorra.
Eu, conhecendo o Fado a mim propicio,
Fui comendo e bebendo á tripa forra,
E era para rir o quanto a gente
N'esta esperança andava assaz contente.
Já cada qual os olhos levantava
Para vêr se no ar os lenhos via,
Qualquer bilhafre ou corvo que voava
Uma arivaga nau lhe parecia :
Já um a São Thiago ir intentava,
Outro o Prestes João ir vêr queria;
E a mulher com desejo assaz profundo
Queria os intestinos vêr do mundo.
A obra se gorou, e eu entre a gente
A opinião temendo aqui perdida,
Qual o mestre d'esgrima destramente
Busca para ferir outra venida,
Machinando tractei em continente
De outro modo melhor buscar de vida.
Em arbitrista dei, aonde prompto
Os bolinholos fiz subir de ponto.
Fui tambem dos segredos mais occultos
Por arte não vulgar famoso espia,
Eis quando um dia no meu ninho estava,
Uns certos ruges ruges presentindo,
Tomei o folle, as azas desprezando,
E surrando-me fui, o vento abrindo
[14]
Quando eu vi a tal barquinha
Pelo Tejo dar a sola,
Me lembrou a passarola
De quem Deus tem, que não tinha,
O inglez informado vinha
Do seu mal logrado intento,
E achou que da agua o invento
Era melhor que o do ar;
Mas não tem que se cançar,
Que para mim tudo é vento.[15]
Com segredos totaes do gabiné
Se foi no pacabote o voadó,
E agora espalhará por todo o Nó
O que se não sabia n'este ré:
Julgam todos que foi muito bem fé,
Para que se não fiem do ranhó
Negocios que dependem de outros hó,
Encargos que se dão a outros subjé :
Muitos trezentos mil d'elle apledi,
Sem saber qual d'elles o levá
A terras contra a nossa religi,
N'este mundo inquieto aonde está
Se espera da gente de outro cli,
E de homens com discurso endiabrá.[16]
Camarada assim entraes? Falso rebate
Daes ao congresso? Aqui pessoa intrusa
Não sabeis que sem galla ninguem usa
Entrar aqui, e o mais é disparate?
O homem emmudeceu. Ha tal orate !
Homem enfeita ahi qualquer escusa,
Se és poeta, senhor faltou me a musa,
Senão, senhor mentiu-me o alfaiate.
Mentiu, deixou-me nú entre esta gente ;
Para ámanhan vem allegando agora
Que tem obra talhada, é boa peça!
Mas já brada indignado o presidente:
Deitem-no n'esse escuro lá de fora,
Já que nnnca faz coisa que appareça.[17]
Este material está em domínio público nos Estados Unidos e demais países que protejam os direitos autorais por cem anos (ou menos) após a morte do autor.
Todas as obras publicadas antes de 1.º de janeiro de 1929, independentemente do país de origem, se encontram em domínio público.
A informação acima será válida apenas para usos nos Estados Unidos — o que inclui a disponibilização no Wikisource. (detalhes)
Utilize esta marcação apenas se não for possível apresentar outro raciocínio para a manutenção da obra. (mais...)
- ↑ Cahiu em tal descredito o marquez de Jouffroy, por causa de suas experiencias, que na côrte de Versailles não se fallava d'elle senão como do fidalgo provinciano que embarcava nos rios bombas movidas por fogo ; do louco, que pretendia combinar o fogo com a agua etc.
- ↑ Este soneto e as sete peças que se seguem foram copiadas de um livro manuscripto da Bilbliotheca da Universidade de Coimbra. Tem no catalogo o numero d'ordem 342. É em 4.°, encadernado com o seguinte rotulo no dorso «Jardim historico» e fez parte de uma collecção de mais de trinta volumes, dos quaes só alguns se conservam n'aquelle archivo. Este a que alludimos é quasi todo da mesma lettra dos principios do seculo passado e consta de varios escriptos em prosa e verso, entre elles alguns dialogos de Francisco Manuel de Mello. Alem das oito poesias aqui transcriptas, contem o mesmo codice o «Manifesto» a que daremos logar no capitulo seguinte; uma descripção da machina volante que adiante tambem publicaremos, e uma longa satyra em prosa que começa assim: «Esta é a forma do artificio que ha de subir ao ar com tanta admiração de todos......» Todas estas peças são da mesma lettra que é tambem a da copia da petição já mencionada, com quanto este ultimo papel pertença a um codice differente que é um grosso volume in fol. como numero 674. Vê-se portanto que o mesmo individuo copiou todos estes papeis (os quaes ao todo são doze) na mesma epoca, que com razão reputaremos anterior áo principio d'agosto de 1709, em que Bartholomeu Lourenço fez a experiencia em presença da côrte, pois em coisa nenhuma se refere a este facto o diligente e curioso copista desconhecido. Alem d'isso a nota da petição, transcripta a pag. 18 d'este opusculo indica-nos que todos os alludidos documentos foram colligidos no tempo em que requereu e obteve o privilegio o auctor da machina volante e se occupava de a construir e aperfeiçoar.
O mesmo 1.° soneto foi publicado no «Additamento» à sua Memoria por Francisco Freire de Carvalho nas «Actas das sessões da Academia real das sciencias» tom. 1.° pag. 209. E declara o citado Freire de Carvalho que lhe foi communicado pelo sr. Manuel Bernardes Lopes Fernandes. - ↑ Deverá talvez lêr-se «marquez d'Abrantes »
- ↑ Extrahido do cod. 342 da Bibl. da Univ. de Coimbra. Foi tamhem publicado em 1843 por Freire de Carvalho na Memoria citada.
- ↑ Cod. 342 da Bibl, da Univ.
- ↑ Ibidem.
- ↑ Ibidem.
- ↑ Ibidem. Sahiram impressas estas decimas na collecção de poesias de Thomaz Pinto Brandão, intitulada—«Pinto renascido, empenado e desempenado etc.» Lisboa 1732. D'ahi as transcreveu Freire de Carvalho para a sua Memoria já citada.
- ↑ Cod. da Bibl. da Univ.
- ↑ Ibidem.
- ↑ «Pinto renascido etc.» Foram transcriptas por Freire de Carvalho na sua Memoria.
- ↑ Cod. CXII/-18-d da Bibliotheca Publica de Evora. É o tom. 4.º do «Peculio do Padre João Baptista de Castro.»
- ↑ Ibidem.
- ↑ Estes fragmentos são do 1. e 2. canto do Foguetario», poema heroi-comico, inedito de Pedro d'Azevedo Tojal. Deu curiosa noticia d'esta obra o sr. Innocencio Francisco da Silva no «Diccionario Bibliographico». Os dois cantos mencionados encontram-se no cod. CXII/1-18, que é o tom. 4.° do «Peculio» de João Baptista de Castro. Vem aqui com titulo differente d'aquelle que se le no citado diccionario, e tem uma nota de lettra diversa que diz assim: «O. A. d'este Poema é Pedro d'Azevedo Tojal, e anda traduzido em Francez.»
É provavel que nos outros quatro cantos que faltam na Bibliotheca d'Evora se encontrem mais allusões a Bartholoimeu Lourenço. - ↑ É a segunda de quatro decimas, que vêm no cod. CXII/1-2-d da Bibl. de Evora.
No mesmo cod a pag. 187 v.° se acham as decimas de Thomaz Pinto—Ao transito do P. Bartholomeu Lourenço—as quaes publicámos com differente titulo a pag. 47 e seg. - ↑ No cod. CXII/1-2-d da Bibl. de Evora a pag. 41 v.º Vem entre outros sonetos attribuidos a Thomaz Pinto Brandão.
- ↑ Este soneto é de Simão Antonio de Santa Catharina e corre impresso nas suas «Orações academicas—Lisboa, 1723, i vol. 8.° Declara o auctor n'uma nota marginal alludir ao doutor Bartholomeu Lourenço de Gusmão. E mais adeante na «Oração dos sonhos» a pag. 419 diz tambem :
Sonhou que ao Bartholomeu
Dizia, como espritado :
Senhor, admiraste o mundo ;
Mas levou-lhe o sonho o gato.