Invenção dos Aeróstatos Reivindicada/Capítulo 5

V
A machina volante

O desenho, que se imprimiu com a supposta data de 1774, e a nossa gravura representa, traz a seguinte explicação :


A.—Mostra o modo de velame, que servirá para fazer cortar os ares, levando sua derrota aquella parte d'onde fôr dirigida.

B.—Mostra o modo que terá para se governar, pois sem leme seguiria sua vontade, e não a de seu artifice piloto.

CC.—Apontanm o corpo da barca que com o engraçado das conchas leva em cada vão um cano, que interiormente (com folles para isso feitos) supprirão a falta de ventos.

D.—Denota o feitio de umas azas que não servirão mais que de a sustentarem para que não caia á banda : porque tomando o vento em si, de nenhuma maneira a derribará.

EE.--Apontam as figuras esphericas, em que está o—segredo—attractivo ; são feitas de metal : servem de cobertura para se não corromper a pedra de cevar, que por dentro do pé que é ôco attrahirá a si continuamente a barca, cujo corpo é de madeira forrado de chapas de ferro, e pela parte inferior forrada de estreitas taboas, feitas de palha de centeio para a commodidade da gente, que levará até dez homens, e com o seu inventor onze.

F.—Mostra a coberta feita de arame a modo de rede em cujos fios se tem enfiado muita somma de alambres, que com muita actividade ajudam a sustentar a barca, que pela quentura do sol fará força para attrahir a si as esteiras.

G.—Mostra a agulha de marear ; porque sem ella não se podem guiar.

H.—Mostra o artifice que cem o astrolabio, ou balestilha compasso, e carta de marear toma a altura do sól, para vêr onde se acha.

II.—Finalmente mostram as roldanas, para por ellas se alargar mais ou menos a escóta de qualquer parte que o vento faça feição.

No verso da estampa vem esta nota :

Não obstante que o auctor da machina diga, que dentro dos globos vae a magnete, cuja virtude fará subir a barca; comtudo não é a sua elevação por força da virtude attractiva, mas sim pela força do Gaz, que os mesmos globos teem dentro, e a que o mesmo auctor chama—segredo—que não quiz declarar, talvez por boas razões que para isso tivesse. O certo é que o auctor era homem de talentos e de grande capacidade e que a tal machina foi experimentada, segundo o testimunho de alguns velhos de probidade, que ainda vivem em a nossa côrte, apezar de haver alguem que o contradiga, talvez por malicia, ou por ignoranncia, etc.

Francisco Freire de Carvalho, foi de opinião que o desenho e explicações do impresso de modo nenhum podem ser exactos e conformes á machina, a que alludem. Seguiu, pois, n'este ponto o auctor de um folheto, de que då noticia e um extracto entre os documentos, que na sua Memoria colligiu.[1]

A parte que diz respeito ao invento do padre Gusmão é do theor seguinte :

Desejariamos concluir esta materia, fazendo honra ao engenho portuguez, que já no principio d'este seculo imaginou uma machina para viajar pelos ares : mas ainda que é voz constante, que tal machina chegára a construir-se, e que até se diz que ella se elevára, ou voára do torreão da Casa da India ; não podémos achar documento algum authentico, nem fidedigno, que atteste este facto. Achão-se em algumas livrarias, e nas mãos de varias pessoas, copias de uma petição do theor seguinte. (Segue-se a petição). Com estas copias se acha um desenho da mesma machina, o qual por uma explicação a elle annexa, mostra, qual devia ser a sua construcção. Ella, segundo alli se explica, seria da figura de um barco, ou antes de uma grande concha : seria forrada de chapas de ferro, e por dentro de esteiras de tabúa, para serem attrahidas umas por pedras de cevar, e outras por alambres, collocados na parte superior da machina : esta sendo elevada pela dita attracção, ou forças magnetica e electrica, seria, mediante uma vela, impellida pelo vento, e, na falta d'este, pelo que se lhe subministrasse com folles, ali egualmente collocados para este effeito; dirigindo-se o rumo por um leme, posto na pôpa, com umas pás, ou azas em ambos os lados. Não é, porém, necessario ter muito conhecimento de physica ou de mechanica, para vêr que por estes principios é absolutamente impossivel o elevar-se uma machina volumosa e pesada : nem parece mesmo crivel, que uma pessoa, que aliás deu outras provas de intelligencia e de engenho, podesse jámais conceber a idêa de fazer voar uma machina de semelhante construcção. Como por outra parte ha uma constante tradição, apoiada com a auctoridade de varias pessoas sensatas e de provecta edade, que asseveram ter sempre ouvido que a machina, de que fallamos, chegára a elevar-se, e a voar ao menos por algum pequeno espaço; devemos crêr que ella fosse de outro modo construida, e que o desenho que agora vêmos não representa o artificio que então se practicou.


Esta mesma opinião expendeu em 1784 David Bourgeois n'um folheto intitulado—Recherches sur l'art de voler.[2] Todavia o visconde de Villarinho de S. Romão n'uma carta, dirigida ao sr. Antonio Feliciano de Castilho, e publicada em 1843 na Revista universal lisbonense, rejeitando por absurdas as explicações que precedem a estampa, e interpretando-a a seu modo, quiz mostrar que n'ella se acha tudo muito bem combinado e que a machina que representa podia voar. Segundo as suas supposições, no convez da barca não haveria nenhuns folles, mas um balão cheio de hydrogeneo ; as espheras em vez de servirem de caixas aos imans, conteriam os maleriaes necessairios para a producção do gaz ; a vela, finalmente não seria mais que um para-quedas, destinada a diminuir a violencia da descida em caso de desastre.

Com o respeito devido á memoria do visconde de Villarinho de S. Romão, cuja auctoridade e competencia em assumptos de mechanica applicada são de todos bem sabidas, discordamos das idéas que aventou para interpretar o desenho, por nos parecerem de todo o ponto inadmissiveis. Segundo as leis da hydrostatica, para que na atmosphera se conserve em equilibrio estavel qualquer corpo, importa que o seu centro de gravidade fique abaixo do centro de gravidade do volume d'ar que desloca. Ora, se, como imaginou o auctor da carta a que alludimos, houvesse no convez da barca um balão de hydrogeneo, e os corpos mais pezados, os viajantes, as espheras metallicas, os reagentes para a producção do bydrogeneo, a rede de arame e a propria vela ficassem acima do reservatorio do gaz, o centro de gravidade do apparelho ficaria muito alto e necessariamente superior ao centro de gravidade do volume do ar deslocado. Em taes condições, a machina propenderia sempre a voltar-se, e seria tão difficil conserval-a na devida posição na atmosphera, como no meio da agua a um areometro a que se houvesse tirado o chumbo ou o mercurio que lhe serve de lastro.

A' idea, que teve o visconde de Villarinho de S. Romão de reputar fiel e exacta a estampa e falsas as explicações, parece ter servido de fundamento a nota que a estes documentos ajuntou quem os trouxe à luz da publicidade. Todavia se a nota citada invalida as explicações porque n'ella se declara que a machina se deveria elevar pela força do gaz, do mesmo modo fará rejeitar a estampa que representa um artificio, que, como provámos, seria incapaz de, por aquelle meio, se conservar equilibrado na atmosphera. Demais, o que se lê em a nota perdeu, a este e outros respeitos, toda a importancia, depois que o sr. Innocencio da Silva demonstrou haver erro na data da impressão, infallivelmente posterior ao anno de 1780 e com probabiiidade ás experiencias de Montgolfier.

A' opinião dos que consideram apocrypho o desenho dá agora nova e muito maior força um documento que encontrámos na Bibiliotheca da Universidade no codice 342, ao qual já alludimos[3]. E uma noticia da machina que a representa como um verdadeiro aerostato, com quanto seja muito anterior ás experiencias de Montgolfier, e com toda a probabilidade do anno de 1709, pelas razões que apontámos quando nos referimos ao codice a que pertencem[4]. Eis o documento:

Descripção e figura da admiravel machina para se navegar pelo ar, que faz em Lisboa o Padre Bartholomeu Lourenço, natural do Brazil, dada á estampa por um amigo do auctor, tirada de noticias particulares, que este lhe communicou.

O auctor tem achado por várias experiencias que o ar tem a virtude magnetica, que alguns modernos consideram na terra, com a qual attrahe algumas coisas da mesma sorte, que o magnete commum attrahe o ferro ; ou porque os...do ar sejam conformes aos das dictas coisas, ou porque a tenacidade do corpo do ar faça n'ellas maior impressão, e esta é a causa na opinião do auctor de se sustentarem no ar muitas coisas pesadas, como são as saraivas, as pedras de corisco, a neve e a agua, que sensivelmente se vê subir nas que vulgarmente chamamos bombas do ar, que se o ar não tivesse esta virtude, nem se sustentariam n'elle, nem ainda se levantariam da terra, o que tudo intenta mostrar com um tractado á parte.

E porque as partes sujeitas a esta virtude se não acham no composto de alguns corpos pesados, consiste o principal artificio d'esta machina em apartal-os dos
Machina volante de Bartholomeu Lourenço de Gusmão, segundo uma noticia manuscripta de 1709, que se conserva na Bibliotheca da Universidade de Coimbra.

dictos corpos, de sorte que sejam visivelmente attrahidas, e prendel-as para que não vôem, com tal arte que vençam não só o pêso da dicta machina, mas outro qualquer, que lhe estiver unido. Com este principio se faz o instrumento que descrevêmos, que de sua natureza busque o ar e possa subir até meio d'elle, aonde fôr egual a quantidade d'ar que o attrahe para cima, e a do que fica em baixo e lhe resiste, ainda que em rasão do seu pêso natural nunca chegará tão alto; assim mesmo conforme o maior ou menor pêso que levar, descerá mais ou menos até se pôr em equilibrio com o ar, que fica mais visinho á terra e descansar n'elle.

A figura d'esta machina volante é uma pyramide triangular composta de materia solida como laminas de ferro ou cobre, tão bem unidas que prohibam evaporarem-se os espiritos magneticos que n'ella estiverem guardados. Esta pyramide irá prêsa com fortes cordas a um pavimento de madeira, em que irão as pessoas, e coisas que se quizerem levar; terão os lados da base da pyramide seis pés rintlandicos, e os que vão terminar á ponta quinze; estas são as medidas necessarias para o pêso de um homem.

Governa-se esta machina com uma aza na ultima parte do pavimento, a qual, movendo-a quem fôr dentro, serve para caminhar, para subir e descer, para virar a qualquer parte, e parar, quando for necessario, e ajudará muito o sitio da pyramide, ficando com a parte angular para cima para facilitar a subida, com a plana para baixo para facilitar a descida e com a ponta da pyramide para onde fôr a jornada para resistir ao vento contrario, e com a base para a parte d'onde sahir para se ajudar do favoravel, fazendo o officio de vela.

As utilidades d'esta machina são maiores que as de nenhum invento até aqui descuberto, porque além da sua materia, que até agora se não viu practicada, abre caminho para se soltarem os dois problemas mais difficultosos, e na opinião de muitos impossiveis, e são a longitude e o motu perpétuo, porque, como a sua velocidade ha de ser quasi tanta como a do mesmo vento, por não ter resistencia a elle, andando mais de duzentas leguas por dia, pela differença dos tempos se saberão as verdadeiras longitudes dos logares a que chegar, e se emendarão brevemente os mappas de todo o mundo, que pela maior parte estão errados em grande prejuizo da navegação e da geographia, e como o ar no mesmo dia ás vezes está mais ou menos condensado e conseguintemente tem mais ou menos virtude magnetica dentro no mesmo espaço, assim esta machina subirá mais ou menos, e, movendo comsigo alguma coisa, causará o movimento continuo, em que têem trabalhado tanto os maiores engenhos.

Ter-se-hão noticias a todo o tempo tanto dos designios, como dos exercitos inimigos sem risco poderão as praças sitiadas mandar aviso, ser soccorridas e retirar-se d'ellas as pessoas que quizerem sem perigo, descobrir-se-hão as terras qne ficam debaixo dos polos do mundo por cessarem no ar os impedimentos que por mar tem havido, em uma palavra para todo o commercio levar cartas, fazer jornadas, passar lettras, transportar riquezas e acudir a qualquer negocio, nem se póde imaginar caminho nem mais seguro nem mais breve. O auctor tem alcançado privilegio perpétuo para que só elle e seus herdeiros possam usar d'este invento, e espera sahir com elle a publico dentro em tres mezes.


A importancia d'este documento é manifesta. O desenho impresso em 1774 representa um artificio grosseiro e complicado que não tem similhança nenhuma com um aerostato. Pelo contrario, na descripção que publicamos attribue-se à machina volante um artificio tão simples comoo dos balões, e em tudo conforme aos principios da hydrostatica, pelos quaes se regula a construcção d'estes apparelhos. Uma pyramide triangular com as arestas lateraes de quinze pés rintlandicos ou 4,m 20 de comprido e as da base com seis pés rintlandicos ou 1,m 68, á qual fosse suspenso por cordas um pavimento de madeira, constituiria um apparelho, a cuja elevação e equilibrio não se poderia pôr nenhuma das objecções que nos suscitou a opinião expendida pelo visconde de Villarinho de S. Romão.

O auctor da noticia era amigo de Bartholomeu Lourenço e, segundo informações suas, a escreveu. Não sendo porem versado na physica, o que da mesma descripção se deprehende, cahiu em erros e inexactidões, confundindo e alterando provavelmente o que ao auctor da machina ouvira. Assim, ignorando o principio de Archimedes, attribuiu á força magnetica do ar o sustentarem-se alguns corpos n'este fluido, e porque se destinasse a machina volante a grandes viajens e tivesse de resistir á violencia das perturbações atmosphericas, entenderia coisa indispensavel o ser composta de materia solida, como laminas de ferro ou cobre.

Esta mesma noticia nos indica os meios, de que Bartholomeu Lourenço de Gusmão intentava servir-se para elevar a machina volante, como se verá no capitulo seguinte, onde daremos tambem uma memoria biographica, escripta no a no de 1724 ou pouco depois, na qual se lê que pozera por obra, não logo o principal invento, mas uma amostra que era uma barcassa pequena do feitio de uma gamella coberta de lona, com umas luzes por baixo etc. o que de algum modo confirma a descripção inedita da machina e o ter errado o auctor em dizer que era feita de laminas metallicas. Isto mesmo se prova pelo apontamento accrescentado á copia da petição da bibliotheca da universidade[5] em que se diz que o padre Gusmão comprára vinte e quatro arrobas de arames surtidos e quantidade de papel, parecendo a quem tal escreveu que seria para algum papagaio. Servindo-se do fogo, como vamos demonstrar, Bartholomeu Lourenço para elevar a machina, a todos hoje se patentêa o fim a que era destinado o papel em suas experiencias.

Este material está em domínio público nos Estados Unidos e demais países que protejam os direitos autorais por cem anos (ou menos) após a morte do autor.

 

Todas as obras publicadas antes de 1.º de janeiro de 1929, independentemente do país de origem, se encontram em domínio público.


A informação acima será válida apenas para usos nos Estados Unidos — o que inclui a disponibilização no Wikisource. (detalhes)

Utilize esta marcação apenas se não for possível apresentar outro raciocínio para a manutenção da obra. (mais...)

 
  1. «Descripção do novo invento aerostatico on machina volante, do methodo de produzir o gaz ou vapor, com que esta se enche ; e de algumas particularidades relativas ás experiencias, que com ella se tem feito: com a noticia de um semelhante projecto, formado em Lisboa no principio d'este seculo, e peças a elle relativas Lisboa na officina de Antonio Rodrigues Calhardo, impressor da real mesa censoria. Com licença da mesma real mesa.» Sem data.
  2. «Recherches sur l'art de voler, depuis la plus haute antiquité jusqu'a ce jour, pour servir de supplément á la description des experiences aérostatiques de M. Faujas de Saint Fond, par David Bourgeois. » in 8.°, Paris 1784.
    Póde vêr-se na obra de Figuier—Les Merveilles de le science—o extracto do citado livro de Bourgeois, que foi quem primeiro suppoz que o Gusmão, que fez em Lisboa a experiencia aeronautica não era o Bartholomeu Lourenço, auctor do plano que consta do desenho de 1774.
  3. Veja-se a nota respectiva a pag. 31.
  4. Idem.
  5. A pag. 20 d'este opusculo.