Suspiros poéticos e saudades (1865)/As Saudades/Invocação á Saudade

Tu, que n'alma te embebes magoada,
Melancólica dor, e gota a gota
Vertes no coração tóxico acerbo,
Que entorpece a existência, e a vida rala!
Tu, tirana da ausência, que retratas
Em fugitiva sombra, em negro quadro
A imagem do passado;
Que ao filho sempre a mãe anosa antolhas,
A pátria ao peregrino, o amigo ao amigo,

O esposo à esposa; e ao malfadado escravo,
Que sem futuro pelo mundo vaga,
Mostras a liberdade, e o lar paterno;
E a cada simulacro que apresentas,
Com farpado aguilhão rasgas o peito
Do triste que te sofre;
E nos olhos sanguíneos, encovados,
Não lágrimas destilas,
Mas fel, só atro fel, bárbara, espremes.

Oh saudade! Oh martírio de alma nobre!
Malgrado o teu pungir, como és suave!
Como a rosa de espinhos guarnecida
Aguilhoa, e apraz co'o doce aroma,
Tu feres, e mitigas com lembranças.
Mas ah! o teu espinho ainda é mais duro;
E essas tuas lembranças são falaces,
Flores são que o punhal de Harmódios cobrem.

Para agora oprimir-me tudo se ergue;
Tudo agora de encantos se reveste,
Para mais agravar minha saudade.
Sítios qu'eu desdenhei, sítios que amava,

Templos que orar me viram respeitoso,
Estes céus de safira, estas montanhas
Cobertas de cocares de palmeiras,
Pais, amigos, irmãos, ah! tudo, tudo
Me está representando a fantasia,
Como que pouco a pouco quer matar-me.

Que cena há aí que mais encantos tenha,
Que ver lânguida virgem, pudibunda,
Pálida a fronte, as faces desbotadas,
Baixos os olhos, revoando a coma,
E uma terna expressão de oculta angústia
Que lavra-lhe as entranhas?
Que cena há aí que mais encantos tenha,
Que vê-la num baixel, segura ao mastro,
Suspiros exalar, longos suspiros,
Que voam murmurando, e se misturam
Co'os ventos que sibilam nas enxárcias?
De vez em quando olhar, e só ver nuvens,
Nuvens que o céu encobrem, retratando
Fugitivas imagens, que recordam
Terras da pátria; quem, meu Deus, quem pode
Resistir a tal cena?


Tu matas, oh saudade!... Às crespas ondas,
Delirante Moema,[1] e quase insana,
Por ti ferida, se arremessa... e morre...
Que não pode a mesquinha
Longe viver do fugitivo amante,
Que tanto amor pagara com desprezo.
Lindóia,[2] entregue à dor, desesperada
N'ausência de Cacambo, mal lhe soa
Do caro esposo o último suspiro,
Também suspira, odeia a vida... e morre...
E tu, Clara infeliz,[3] filha dos bosques,
Gerada entre palmeiras,
Nada pode aprazer-te, nada pode
Extinguir-te a lembrança
Da rústica cabana, onde embalada
Em berço foste de tecidas varas.
De diurnas, domésticas fadigas
Descansada, lá quando alveja a lua
Em fundo azul, mil vezes te enxergaram

Num tronco de coqueiro reclinada,
Cantar da infância tuas árias saudosas,
Árias bebidas nos maternos lábios.
Ai... minha mãe, dizias,
Ai... minha mãe... quem sabe se ainda vives!
Aldeia onde nasci, pobre cabana,
Rede que me embalavas, eu vos choro!

Oh terra do Brasil, terra querida,
Quantas vezes do mísero Africano
Te regaram as lágrimas saudosas?
Quantas vezes teus bosques repetiram
Magoados acentos
Do cântico do escravo,
Ao som dos duros golpes do machado?

Oh bárbara ambição, que sem piedade,
Cega e surda de Cristo a lei postergas,
E assoberbando mares, e perigos,
Vais infame roubar, não vãs riquezas,
Mas homens, que escravizas!
Mil vezes o Senhor, para punir-te,
Opôs ao teu baixel ondas, e ventos;

Mil vezes, mas embalde,
Nas cavernas do mar caiu gemendo.
Á voz do Eterno obediente a terra
Se mostra austera e parca,
Que a lágrima do escravo esteriliza
O terreno que orvalha.
A Natureza preza a Liberdade,
E só franqueia aos livres seus tesouros.

Oh suspirada, oh cara Liberdade,
Descende asinha do Africano à choça,
Seu pranto enxuga, quebra-lhe as cadeias,
E adoça-lhe da pátria a dor saudosa.

Oh palavras! oh língua! quão sois fracas,
Para d'alma narrar os sentimentos!
Oh saudade, aflição dura e suave!
Oh saudade, que o rosto me descoras,
Saudade, que me apertas, que nos lábios
Decas-me o almo riso,
E o pensamento meu absorves todo,
Como uma esponja o líquido, e o repartes
Co'o passado, o presente, e co'o futuro.

Oh saudade! Oh saudade!
Minhas endechas mal carpidas colhe;
Dá-me um lúgubre som, como o das vagas
Que nas praias se quebram
Sem ordem, como os meus chorados cantos;
Uma voz sepulcral, como a da rola
Que em solitária selva se lamenta;
Um acento funéreo, um eco lúgubre,
Como o eco das grotas, quando a chuva
Goteja reboando.

Ah! corram minhas lágrimas, ah! corram
A quantos meus gemidos escutarem.

Oh saudade! Oh saudade!
Pois que em minha alma habitas,
E sem cessar me lembras pais, e Pátria,
Minhas tristes endechas serão tuas,
Saudade, serei teu... Saudade, és minha.

Notas do autor editar

  1. Veja-se o Episodio de Moêma, canto VI, p. 172, do poema Caramurù de S. Rita Durão.
  2. Episodio do Uruguay, poema de José Basilio da Gama, canto III.
  3. Este caso é original.