Íamos hoje para a cidade na marcha habitual, nem muito rápida, nem propriamente vagarosa. Circunstância notável, se bem que ordinária - o bonde não correu nem por um instante fora dos trilhos. Entretanto, chocou de repente com um automóvel, e surgiu uma grande discussão a respeito de se saber a quem tocava a culpa, se ao motorista, se ao chauffeur.
Entrou em função o juiz que há dentro de cada indivíduo, e as sentenças divergiam.
- "Foi esse negrinho estúpido," dizia um, indigitando o chauffeur.
- "O culpado é esse louco desse portuga," asseverava outro, referindo-se ao motorista.
- "Cadeia com eles, é o que eu vivo a dizer."
- "Qual! só a pau."
- "Por milagre não houve coisa muito pior: olhe como ficou a máquina."
- "Foi pena que não ficasse ainda mais escangalhada, era menos uma."
- "Mas o bonde podia bem ter parado a tempo."
- "Não podia, aqui é um declive."
- "Seu guarda, o culpado é o chauffeur."
- "Não, seu guarda, o culpado é o motorneiro."
E cada juiz era também um partidário, ou do lado do homem do bonde, ou do lado do homem do automóvel. Por simpatia física, por espírito de nacionalidade ou de raça, por disposição mais favorável a uma das classes de automedontes, por ter ou não automóvel, por ter ou não ter um parente chauffeur ou automobilista, por mero palpite, cada um propendeu imediatamente para uma das bandas.
Mas, valha a verdade, havia também homens imparciais, por exceção. Um destes, abanando a cabeça, e afastando-se do burburinho, me ponderou tranqüilamente:
- "Ora, ora! Quem foi, quem não foi... Eu o que fazia era pegar nos dois e socá-los no xilindró: é aí, seus danados! Esta corja..."