Proseguiu o frade:
«Quando, ha quatro mezes, os religiosos de *** viram approximar-se a hora de entregar as suas cellas á revolução, ajuntaram-se para deliberarem sobre a sua vida, como homens que d'ahi a pouco não tinham posição alguma no mundo, que lhes valesse um bocado de pão. Alguns eram de casas remediadas, outros irmãos de fidalgos, sacrificados ao partido que lhes assegurava os seus privilegios; mas nenhum contava com asilo seguro no tecto paternal, porque o temor da perseguição fazia-nos pensar que eramos homens expulsos da familia, e da sociedade. Entregámo-nos a Deus. E, depois, no meio de nós estavam uns homens cobertos com o nosso habito, vivendo comnosco ha muitos annos, ajoelhando comnosco ao mesmo crucifixo, e comendo comnosco no mesmo refeitorio. Eram os nossos maiores inimigos. Velavam-nos desde matinas a completas; desde a oração commum do côro até ao ultimo padre nosso rezado no isolamento da cella. Eram como os pretorianos de Nero syndicando os actos religiosos dos agapes de Christo. Chamavam-se liberaes, illustrados e amigos dos homens. De Deus sabia eu que elles o não eram. Dos homens, cruel amizade era a sua, que precisava enfeitar o seu altar com o sangue dos seus companheiros!
«Nos ultimos mezes da nossa communidade... deixae-me dizer-vos uma prophecia amarga: nos ultimos mezes das ordens religiosas em Portugal, apresentaram-se aquelles padres ao prelado, e pediram a sua liberdade. Prevenindo alguma ligeira censura, em nome da regra do patriarcha, lembraram ao guardião que o punhal era a arma do homem livre, quando os algozes da humanidade não accediam aos augustos preceitos da razão natural.
«O prelado era um justo, que chegára aos oitenta annos, com os cilicios nos rins, vergando sob o peso de austeridade, alliviando quanto podia esse gravame dos hombros menos rijos dos seus subordinados. A morte, porém, era-lhe menos afflictiva que o pesar de uma tibieza de disciplina. A sua resposta foi simples:
«Deixemos vir a mão da liberdade bater á porta do mosteiro e seremos todos livres então. Uns, livres para morrer no desamparo. Outros, livres para viver de vergonha. Todos seremos livres. Em quanto a vós, meus irmãos, pedirei aos servos de Deus n'esta casa que peçam ao Senhor para vós as consolações e a prudencia que não posso dar-vos. Retirae-vos, que sou chamado ao côro.»
«Retiraram-se; mas, dois dias depois, ao amanhecer, foi aberta por violencia a portaria. Alguns homens d'alli sahiram vestidos, e armados como guerrilheiros. O padre porteiro, que subira á cella do prelado a annunciar-lhe o acontecimento, encontrou um cadaver. Ao passar-lhe a mão pela face topou um crucifixo inclinado sobre o seio. Ao agita'-lo, humedeceu as mãos no sangue que borrifára os lençoes. Gritou. Acudiram os monges. Em volta do seu leito ajoelharam homens que choravam. Não tinham outra supplica, nem balbuciavam uma palavra. Um justo estava ali morto: mataram-n'o seus irmãos, em nome de uma liberdade, que não consentiu ao venerando ancião a liberdade de viver mais alguns dias.
—Era preciso matarem-no para fugirem?—perguntou Maria com os olhos turvos de lagrimas.
—Não seria preciso, minha filha, mas as chaves do mosteiro são entregues ao prelado: mataram-n'o, tirando-lh'as.
—Mas o crucifixo,—replicou ella quem lh'o poria sobre a face?
—Foi o moribundo a quem os assassinos deixaram tempo de pedir a Deus o perdão dos seus matadores.
—Que acontecimento tão triste, minha mãe!—exclamou assombrada a menina, tomando entre as suas as mãos de sua mãe. E continuou: Eu não pensei que os homens podiam fazer isso!... Quem me déra o céo para meus paes e meus irmãos!
—E para o tio padre, não, meu anjinho?
—Meu tio tem certo o céo, porque tem soffrido muito, não é verdade?
—Muito, minha menina; mas não é já bastante o que tenho soffrido?
—Penso que sim... Eu não sei ainda a sua vida, mas lembra-me que meu tio póde fazer que os homens sejam bons, dizendo-lhes historias que os façam ter dó dos que soffrem.
Olharam-se todos com admiração. É que Maria contava sete annos de edade; e alguns mezes de soffrimento. Predestinação!?...