Alvaro da Silveira costumava tocar a campainha depois do meio dia, quando alguma empresa impertinente lhe não assaltava o precioso somno da manha.
Fr. Antonio, prevenido, foi visitar sua familia, cuja ausencia lhe parecia longa e incomportavel. Antes de sair trocou algumas palavras com o dono da casa pedindo-lhe que entregasse a Deus a regeneração de seu filho.
Quando entrou na sala, sua sobrinha estava ao piano. Pé ante pé firmou-se onde de longe podia contempla'-la, e surpreende'-la com palmas. Reparou que o papel de estudo não era musica. Esperou. De improviso, ao som melancolico das teclas casou-se uma melodia triste, profundamente triste, como as convulsões de um longo gemido. Aquelle papel continha a letra do canto. Que versos seriam aquelles?
E o canto parou com a ultima nota do acompanhamento. Maria firmou os cotovellos nos braços da cadeira, e escondeu o rosto entre as mãos. Ás vezes corria as mãos pela testa, e deixava-as pender enlaçadas sobre o regaço. As suas posturas eram todas afflictivas.
—Que tens, minha filha—murmurou o padre caminhando para ella.
Maria ergueu-se arrebatadamente; correu aos braços do tio, e não teve exclamação que revelasse o alvoroço d'aquella surpresa.
—Cantavas como um anjo—continuou o padre, acariciando-lhe a face pousada no seu hombro—mas tão melancolico era o canto e a musica!... Nunca te ouvi ainda esta lamentação! Vejamos que poesia é esta!...
—Não, não, meu tio!,..—atalhou Maria, querendo affavelmente desvia'-lo do piano.
—Porque não? Mysterios para o teu amigo que t'os adivinha no coração? Segredos para o teu mestre, Maria!
—Não é segredo... é vergonha...—exclamou a linda menina com a voz entrecortada—Esses versos fui eu que os fiz..
—E tens reservado para ti esse dom? Quando disseste ao teu velho tio que fazias versos?—disse o padre sorrindo com meiguice.
—Eu não sabia que o eram... Nem sei se o são...—balbuciou Maria, córando, e procurando fugir de estar presente á leitura.
Fr. Antonio levou-a pela mão ao piano. Tomou da estante a poesia, e leu:
- PRESENTIMENTO
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«Minha paz no infortunio,
Minha alegria na dôr,
Quem m'a déra, qual a tive,
Qual m'a déstes, vós, SENHOR!
«Desbotou-se-me nos labios
Meu sorriso tão singelo...
E eu com elle premiava
Tanto amor, tanto desvelo!...
«Tanto amor, que eu vos pedia,
Do que os anjos tem nos céos,
Para amar meus paes, meu tio,
Como vos amo, meu Deus!
«Não scismei outras venturas,
Outros gosos não pedi:
Fui tão rica na pobreza...
Na pobreza empobreci.
«Senti lagrimas no rosto...
Sei que tenho aqui no seio
Escondida uma tristeza
Que de vós, meu Deus, não veio!
«Deu-m'a o mundo?... sim... daria...
Mas que mal ao mundo fiz!?
Serei eu de alguem inveja?
Pois que eu não seja feliz!
«Volva o tempo da penuria,
Quando eu fiz a pobre flor,
Que me dava um pão regado
Com meu pranto e meu suor.
«Dae-me as noites não dormidas
De trabalho e de alegria;
Meu orar na madrugada,
Quando, tão feliz, me erguia.
«Oh meu Deus! se a humilde serva,
Não votaste ao soffrimento,
Abafae lhe a voz, que a punge,
D'um cruel presentimento!»
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Fr. Antonio lera commovido essas singelas quadras, cujo toque de sentimento não póde enternecer-nos, talvez. Nos labios d'elle, tremulos e nervosos, a poesia soava como um canto funebre. Que tristeza no declamar! Poderia ter-se como uma elegia á innocencia de Maria? Por Deus que não. O hymno, que transluzia da nuvem escura da sua tristeza, era como a luz do relampago que aclara, de repente, um amplo espaço: era a luz electrica das intelligencias privilegiadas; o abalo do presentimento que quer saír do circulo do mysterio: a adivinhação do futuro.
—Que é o que entristece a tua vida, Maria?—perguntou Fr. Antonio.
—Já me lembrou se seria a muita felicidade, meu tio.
—Não te compreendo... abre-me o teu coração sem reserva... Serias culpada se fingisses a teu tio as razões do teu soffrimento...
—Não posso mentir-lhe, meu tio... Não sei ainda o que é fingimento... nunca na minha vida menti a alguem. Eu não sei porque estou triste. O meu coração não m'o diz, e a minha tristeza nasce-me do coração, esconde-se lá como um segredo afflictivo... E eu que mais hei de dizer-lhe, meu caro amigo? Que peço muito a Deus que me não quebre este calix de amargura, se a sua divina vontade ordena que eu o exgote.
Maria enxugava as lagrimas copiosas, que pareciam esfriar-lhe o calor febril das faces. Fr. Antonio, contemplativo, olhava para a sobrinha silenciosa, como querendo ler-lhe no rosto a ultima palavra d'aquella revelação confusa.
O coronel entrou na sala, e correu a abraçar seu irmão, e dar a mão a sua filha, que lh'a não beijara ainda. Maria, surpreendida, quiz, á custa de um sorriso violento, converter em alegria aquella saudação; mas a dôr de filha é necessario que seja peccaminosa para esconder-se aos olhos de pae. O coronel e sua esposa velavam as tristezas de Maria como lhe velariam perigosa enfermidade. Consultaram mutuamente os seus temores; e a severa experiencia do mundo alguma vez lhes inspirou bem tristes receios. Aos quatorze annos ha melancolias no coração de uma virgem, que apenas tem de mysterioso a tendencia irresistivel, que Deus lhe imprimiu para o ideal de um amor terreno, que, no altar da innocencia, recebe uma adoração, senão semelhante, ao menos perfumada com o mesmo incenso do amor divino. E a mãe de Maria recordava-se da sua infancia, e perguntava a seu marido se as lagrimas da filha seriam as precursoras de alguma paixão infeliz. Era indiscreta a pergunta. Não se dera nunca o incentivo de suspeita. A vida de Maria não tinha um instante mysterioso a seus paes. Trabalho e oração—não tinha outro desvelo desde o amanhecer até á ultima benção pedida a seus paes.
Maria, valendo-se da conversação do pae com o tio, retirara-se da sala. O coronel assim o queria, para consultar o irmão, homem de Deus, que via o coração dos outros com os olhos puros da probidade. Mas não são esses olhos os mais penetrantes para devassar segredos, que se escondem no coração apaixonado pelo mundo. Quem adivinha as luctas intimas do espirito, escravisado aos caprichos das paixões, é o homem das paixões, encanecido na amarga experiencia d'ellas. Bem pudera Maria dos Prazeres agonizar nas tribulações de um amor criminoso, e sua morte ser um mysterio para o padre que não sentia acordar em sua alma o echo dos gemidos de sua sobrinha. O amor de Deus preenche todas as necessidades, responde a todas as aspirações do coração de um justo. Não é o justo de uma longa vida irreprehensivel quem póde arrancar ao penitente, que se lhe ajoelha, uma revelação pungente, que o pejo emmudece nos labios. É necessario profunda'-la com a sonda das proprias agonias. É necessario adivinha'-la no espirito do penitente, a favor de um symptoma que revela outro, de uma palavra solta que vae prender-se á explicação de um longo silencio. E esta dolorosa syndicancia não póde exerce'-la a simples theoria das paixões.