O conde de *** era um homem de trinta annos, typo de galhardia na libertinagem, esbelto, gentil, apesar de resequido, na face, por certa aridez da dissolução, que requeima o corpo, ao passo que o viço da alma vae fenecendo.

O açor, pairando sobre a avesinha desprevenida, apenas viu que um rapaz de quinze annos transpozera o limiar do grande mundo, abateu o vôo, aferrou-o com as garras das paixões licenciosas, e desappareceu com a presa através de uma atmosphera, onde o veneno se respirava pelo filtro do prazer. Alvaro da Silveira foi a presa.

Muitos dos mais apontados em certa sociedade libertina de Lisboa, mescla de beaterio, hypocrisia, e despejo, quando viram Alvaro da Silveira ligado ao conde de ***, disseram: «está perdido!» E quem o não diria?

O conde tinha uma instrucção mediana, que puzera ao serviço da sua immoralidade. No seu principio, quando a favor do seu nascimento, era bem recebido nos salões de Lisboa, o conde insultava graciosamente a sã religião e a piedade. Lera com pertinacia alguns d'esses livros immoraes e grosseiros aos vinte annos, para grangear um bom cabedal de motejos contra a religião, e emancipar-se com elles de uma leitura a que sacrificava as longas horas da noite, como um sobrinho que se violenta, em noite de orgia, a ficar em casa com o velho tio, porque é esse o preço de uma herança, que deve, á farta, indemnisa'-lo depois.

Aos vinte e cinco annos sabia tudo quanto era preciso para insultar a Deus em nome de uma sciencia impia. Apostolo infatigavel da immoralidade, não respeitava sexo, nem edade, quando vibrava a ironia, pungente como uma frecha de fogo, ao seio da moral christã. A donzellas, a mães, a creanças, a velhas, a religiosas, e a devassas falava sempre no mesmo estylo. Se acontecia ser mal recebido, assumia uma auctoridade pedagogica, dava-se um ar de respeito, e justificava o que dissera em tom de mofa discursando contra o christianismo que elle dizia sepultado para sempre no tumulo que lhe abrira a sciencia.

Alvaro da Silveira descreu espontaneamente. Não deu trabalho ao companheiro, nem quiz profundar uma questão que lhe não importava. A negação formal era a ultima palavra da impiedade constituida em sciencia. A Alvaro bastava-lhe saber essa ultima palavra.

Todavia, a assiduidade da companhia, e o habito de escutar o seu amigo em polemicas, animadas pela fé de uma parte, e da outra pelo orgulho, deixaram-lhe uma tintura scientifica de atheismo.

Alvaro não recebera de seus paes educação religiosa. Esta falta desmentia a classe d'onde viera. A jerarchia dos brazões em Portugal, com quanto viciosa, parece gloriar-se com o seu privilegio de fé, e de virtudes christãs... extra-muros. A educação ahi é mais religiosa que scientifica: é mais para Deus que para o mundo. Não é milagre encontrar cá fóra o representante de oito seculos de heroes virtuosos e bravos, enxovalhando-se na lama das covardias e das torpezas: mas raro encontrareis no colo materno, uma creança de sangue illustre, como lá se diz, cuja primeira palavra articulada não seja DEUS.

Alvaro da Silveira era uma excepção; o instrumento—quem sabe?—de um acto providencial.