Era um homem de bem. Era humilde e bom. E, por acréscimo, como ainda sabia o idioma! Fazia parte de uma geração admirável, não apenas de professores de português, mas de exímios conhecedores da língua, um José Lourenço, um José Brasileiro Vilanova, um Adauto Pontes. Esse correto e admirável Geraldo Lapenda, que há pouco perdemos, “misto de retidão, equilíbrio, energia e, paradoxalmente, brandura” (declarou Lucilo Varejão Filho ao saudá-lo, na posse como vice-reitor da Universidade Federal), sabia realmente o português. Não digo que sabia “as normas da língua culta” porque detesto esse eufemismo ridículo, só para evitar o nome “gramática”, que a uns tantos parece repugnante, e, pior, para evitar a noção de que existiria um “certo” e um “errado” na língua, de sorte a se justificarem então todos os usos, desde os da linguagem coloquial até os simplesmente analfabetos. Lapenda sabia português, sabia profundamente, sabia exaustivamente, sabia muito mais do que deve saber qualquer um que tenha um mínimo de zelo pela própria língua e um mínimo, afinal, de patriotismo. E sabia português assim porque, em primeiro lugar, sabia latim, e com igual profundidade.
Tive o privilégio de haver sido seu aluno - é verdade que apenas um ano, o único em que estudei no Ginásio Pernambucano, que naquele tempo era praticamente uma universidade, tais os mestres que ali ensinavam (lá foram meus professores, além de Lapenda, uma Bernadete Pedrosa, um Lucilo Varejão, um Adauto Pontes: como pôde, depois, o ensino público decair tanto??). Reencontrei-o, passados vários anos, na Reitoria e na Universidade e o tive sempre como meu professor permanente. Várias vezes o incomodei, em consultas para tirar dúvidas, para aprender mais as riquezas, as potencialidades, os meandros da língua - não complicada, mas complexa e rica, que precisa de devotos, não de negadores.
Não esqueço que uma vez Lapenda - nessa simplicidade que é própria dos grandes homens, que amam mais a verdade do que o respeito humano - tomou a iniciativa de me chamar a um canto, numa sala da Reitoria, para me apontar um erro num escrito meu. Era uma frase que eu escrevera embora cheio de dúvidas: procurara a solução nalgumas gramáticas e, nada encontrando explicitamente, terminei adotando a norma geral que, naquele caso, sentia não ser adequada e, como Lapenda me mostrou, era mesmo inaplicável. E assim Lapenda espontaneamente, generosamente, com absoluta simplicidade, me corrigiu e me deu a lição exata, preciosa, inesquecível.
Naquela bonita saudação, em que propunha a indispensável pergunta: “Para que serve um professor de grego?”, Lucilo Varejão Filho elogiava Lapenda como “o melhor exemplo que conheço da utilidade da cultura humanística na formação dos cidadãos”. Conhecendo profundamente o grego e o latim (além de outras línguas, e até da própria iatê dos nossos fulniôs, sobre a qual escreveu trabalho inigualável), Geraldo Lapenda bem pode, como advogava Lucilo, ser evidência dos excelentes frutos de um assíduo contacto com “o espírito das velhas civilizações clássicas”. Como é ilustrativo, também, do excepcional nível da formação haurida nos velhos seminários - quantos intelectuais de altíssimo nível não estudaram, durante largo tempo de sua mocidade, nos seminários de antanho, desistindo depois da vocação sacerdotal? E é, ainda, para mim, o modelo do cultor da nossa língua portuguesa. Porque, como Manuel Bandeira pedia aos jovens poetas (que lhe mostrassem, antes de suas produções modernistas, o caderno de sonetos que tivessem composto), ensinando, assim, que a liberdade só é possível depois da disciplina e da técnica, - do mesmo modo também o escritor só se pode atrever a certas liberalidades com o idioma se, primeiro, dominar adequadamente as suas regras tradicionais. Saber Geraldo Lapenda vivo e lúcido, ainda que eu não o encontrasse freqüentemente, era para mim a tranqüilidade de uma absoluta segurança. Eu tinha a quem recorrer toda vez que me assaltasse uma dúvida maior de português de que não conseguisse dar conta com os compêndios de gramática.