LAVRA
DE
ANFRISO
Pello Lecenceado Manoel da Veiga.
EPISTOLA DEDICATORIA
AO EXCELLENTISSIMO PRINCIPE
O SENHOR D. DVARTE.
Non nos deſanguine Regum venimus; at norſto veniunt de ſanguine Reges.
PRINCIPE excelſo,a quem a natureſa
Por celeſte fauor da môr ventura
Deu o ſangue Real da ſumma Alteza.
Principe de outro grande imagem pura,
Filho de Manoel Rey ſoberano,
Cuja grãdeza,& nome oje em vòs dura
Alto ſangue onde adora o pouo humano
Não tanto virdes vôs de Reis famoſos:
Quãto de vôs Rey Lyſio& Rey Hiſpano.
Príncipe de altos Duques generoſos,
De cuia ſoberana deſcendencia
ficaõ os meſmos,certos glorioſos.
Do claro Theodoſio a preminencia
Vos fâs tal: que com ter tantos Reis dado,
Inda promete Reis eſſa Excellencia».
Quando ha de vir o ſeculo dourado?
Em que veia comptir minha eſperança,
Por dardes reſplandor a hũ grande eſtado».
Taõ chea o Ceo vos fes luz de Bragança,
Que não podeis crecer à mor grandeza:
Tudo o mais com vos ter crecc c bonãça
Tudo com voſco luz;tudo ſe preza,
Os mais dignos altâres da Ventura
Ficão â quem de voſſa natureza.
Naõ temais de infortúnio a noite eſcura,
que ſo para ſe honrar a ſorte ingrata
firmes reféns de amor em vos procura,
Ia para diſcantaruos ſe deſata
De hum nouo Orfeo a lingoa ſonoroſa
Ia toca lyras de ouro,orgaons de prata.
Tera voſſa Excellencia generoſa
Louuores mil,ou viua em paz dourada:
Ou ſuſtente batalha ſanguinoſa:.
Entre tanto na frauta mal formada,
Por imitar ſenhor ao Mantuano,
Canto de Poliama roxa entrada.
Principe,que no Reyno Luſitano
De hũ Duque filho fois que ẽ noſſa idade
He anchora a qualquer afflito humano.
Vede aquella parerna Mageſtade,
De taõ doce brandura acompanhada.
Bebei nelle Senhor a humanidade.
E eſta Muſa que vai mal cultiuada,
Alhea de conceitos,& artificio
Seja em voſſa frandeſa agaſalhada.
Aqui vos canta o ruſtico exercicio,
Dai voſſa mam Real aos meus Paſtores,
que o cantaruos romaraõ per officio.
Outro tempos viraõ,dias maiores,
Quando na tuba clara,& ſonoroſa
Vos poſſa offerecer verſos melhores.
Entâm ha de notar, Elyſia roſa
Voſſa fermoſa luz reſplandecente,
Dando eclipſes a Roma glorioſa
Emtão num carro de ouro preminente,
Nouas aclamaçõis de altiuo ſolio
Vos hade dar a eſtranha,& a Lyſia gente.
Num compendio de amor,num breue ſcholio
Vos fara cada qual or mais grandeſa
Dentro nos corações ſeu Capitolio.
E aquelle que indo oje Italia preſa,
Vendo voſſos quilates ſoberanos,
De ſeus lumes abate a mòr clareza.
Iá deixão ſeus aſſentos os Trajanos;
Ia perdem ſeu valor ſua excellencia,
Os que vencerão Turcos, & Affricanos.
Pafece que renace â competencia
No Sybillino peito hum nouo ſprito,
Que tem de voſſa gloria alta ſciencia.
Ceſſe de Polliam o falſo eſcrito.
Cujas grandeſas forão mentiroſas;
O voſſo verdadeiro he infinito.
Voſſos berços Senhor brotãrão roſas;
Dando o balſamo Aſſyrio vulgarmente
Alegres primaueras deleitoſas.
Agora ſe hão de ver mais claramente
Em voſſa caſa os tempos Saturninos;
Voſſo nome ha de andar de gente em gẽte;
Vòs mouendo os alfanges diamantinos
Materia aueis de ſer de altas hiſtorias
Para mais ſublimar a engenhos dinos.
Princepe raro voſſas grandes glorias
Hão de por em profundo eſquecimento
Dos Ceſares antigos as memorias.
Vôs ſois de altas venturas firmamento,
Vôs de Bragança imagem verdadeora,
Vôs liſonja de amor ao pensamento.
Vôs deſdo Herculeo Calpe a derradeira
Parte,onde o roxo ma açouta a terra,
Que inda do Grego Rey treme a bãdeira:
Sereis Põpilio em paz, Torquato em guerra
E os ecchos immortaes da voſſa fama
Hâo de animar a mais inculta ſerra.
Vos ſois Principe áquelle aquém Deos amàa
E a quem qual Samuel em tenra idade
No ſilencio da noite aſi vos chama;
São vozes mudas de alta ſaudade
As eſtrellas, que fallão de conrino
Como lingoas da eterna Mageſtade.
Ide flor do alto ramo Brigantino
Libertar a corrente venturoſa
Que a carne lauou ja do Rey Diuino.
Aquella ſepultura milagroſa;
Poſſuida de torpes Agarenos,
Per voſſa mão ſoſpira valeroſa.
Vede Príncipe raro eſtes acenos
Com que o voſſo Pianeta vos prouoca
Pera dardes do Ceo bens não pequenos.
Eſta empreſa tão ardua a vòs ſô toca;
Zeloſa Luſitania á competencia
Por Capitão ſublime vos inuoca.
Na grandeſa ſenhor deſſa excellencia
Se eſtão pronoſticando altas venturas.
Pera perpetuar voſſa aſcendencia.
E ſe deſpois de ver as agoas puras
Da perfeita juſtiça comprimento
Onde as vozes ſoarão das alturas:
Quiſerdes aſſolar o impio aſſento,
De Alcacere,mouendo a grão ruina
Ate a minima pedra & fundamento.
Ide noua eſperança Brigantina
Pello meo dos Caens fazendo ruas;
Mouendo com deſtreza eſpada fina.
Ia vos eſtâo tremendo as meas luas;
Ia com medo de vos ſe eſtão quebrando
Nouo Leão de Heſpanha,eſpadas nuas.
De voſſo Rey,& tio o campo infando
Que ja ſangue bebeo em fatais horas,
ſó por voſſa vingança eſtâ bradando.
Sangue do Regio Abel que inda oje choras,
O meu Princepe te ouue;& por vingarte
Odios ao tempo tem,que tras demoras.
Parece que retumba em toda a parte
Dos Martyres de Chriſto a voz choroſa,
Que em ſoſpiros enuolta diz:DVARTE.
O companhia ſanta,& glorioſa,.
Que debaxo do altar do Sarraceno
Aos Anjos publicais a dor penoſa:
Oie eſtollas vos manda o Ceo ſereno;
Pera que reueſtidas de eſperança
Vingadas vos vejais em luſtro ameno.
Ide Principe meu mouendo a lança
Contra aquella infelice,& dura terra
Rubricada com o ſangue de Bragança.
Lembraiuos que naquella infauſta guerra,
Onde o ſangue Real foi derramado,
O voſſo por igoal tão bem ſe encerra.
Vede o campo de Alcacer matizado
Co ſangue do alto Pay,quãdo o Rey ſãto
Foi de ſeu doce Primo acompanhado.
Se deſpertão memorias entretanto
Os illuſtres exemplos da Aſcendencia:
Vede na tenra idade aquelle eſpanto.
Vede aquella clariſſima excellencia
Como na verde infância ſem receo
Deſpreſa de Mauorte a violencia.
Eilo correndo vai largando o freo
Ao ginete feròs que o vento igoala;
Eilo temido ja do ſangue alheo.
Eis co ſom do cauallo o chão ſe aballa;
Eilo com deſtra mão brandindo a lança.
Por acodir ao Primo ſe aſsinalla.
O Theodoſio gloria de Bragança
Que inda no berço eſpadas,& pilouros ,
Mouendo, voſſo gozo então ſe alcança;
Minino deſpreſaueis os teſouros
logo era para vòs, & gloria inteira
Cos deſpojos brincar dos feros Mouros.
Principe vede o pay, que na fronteira
Quando apenas onze annos coroauão
Três mezes da Olympiada terceira:
Vede os noſſos, que em vello ſe animauão;
Vede como ferido não ſe acanha:
O que glorias alli ſe ſemeauão!
O ſangue paternal,que o campo banha
Vos deſperta as memorias de contino
Sò por irdes ganhar honra tamanha
Vede como ſe preza o Brigantino
Dos finaes do Senhor no meſmo roſto,
Qual Paulo diſſe ja do Reu Diuino.
Eſtai Principe excelſo a tudo oppoſto
Vede que aquelle ſangue derramado
Em trono de ſafiras eſta poſto.
Como ſerâ de Deos pouco eſtimado
De voſſo Pay e tio o ſacrificio?
Se o trabalho do pouo he tão honrado?
Mal faltara do premio o beneficio.
Voſſo Pay ao martirio naõ faltou
Aelle lhe faltou eſte exercicio.
Principe ſoberano vendo eſtou.
O diuino primor com que heis de amar
dO Rey IESVS que tanto vos amou.
Ia vos vejo o ſeu nome dilatar.
Ia com eſpada,& vox tendo alta inueja
De ſerdes hoſtia viua em ſeu Altar.
Tender de Martyr ſer razaõ ſobeja,
De outro Martyr antigo deſcendeis,
Por mais que hum latinzinho ladrar veja.
Inuejas infernais, odios crueis
A fernando fizeraõ violencia;
Sendo exemplo Real de homens fieis.
Mas naõ pode mancharſe a Excellencia,
Que entra no Ceo cõ o roxo do Martyrio
Sobre as brancas eſtollas da inocencia.
Piſay Alma ſublima o claro empyrio,
Em quanto reuerdece eternamente
De voſſa alta inocencia o branco lirio.
E vos ò generoſo decendente
Que a juſtiça heis de amar taõ ſé receo
Vede de ambos o animo excellente
Hum do algôs natural,outro do alheo
O cutello prouou eom ſanto brio;
Sendo em fins deſiguais,igoal o meo.
Vede o Pay,vede o Auo,& vede o tio,
E pello reino,& gloria de IESVS
Entrai Principe excelſo em deſafio
O eſtandarte real da Santa Cruz
Por voſſa altiua mão ſeja aruorado,
Pera a treua Africana dardes lus.
O quaõ ditoſo,& bem auenturado!
Serey ſe acompanhar eſſa Excellencia
Pera ſer por meu Deos ſacrificado
O nobre Catiueiro! o nobre auſencia!
O priſaõ doce,algemas venturoſas!
ô morte de meus olhos competencia!
O morrer por IESVS,hora de roſas
O riſco onde ſe exalta a meſma vida
O milicias de amor vitorioſas!
Alli fica ganhada a fe he perdida
Deſta preſente luz a doce vſura,
Pella ley do Senhor offerecida.
Duuido qual tereis por mais venturá;
Mas ſei quem trocarà por hum tormẽto
A beata viſaõ da eſſencia pura.
Não mais ſubido voſſo intento
Em triunfar vencendo os inimigos;
Do q̃ em ſofrer por Deos hũ baxo aſſéro.
Mas que digo?ſe,os males,& os perigos
Tudo aueis de vencer com ſabio peito;
Como quem tem os Anjos por amigos:
Alargando me vou no campo eſtreito
Deſta pequena carta,que me obriga
A puxar polla redea ao meu conceito.
O ſe do ultimo tempo a Ius antiga
Me acompanhe eſtes mẽbros ja canſados
Pera que voßa gloria ao mundo diga.
Serão com minhas vozes ſuperados
O Deos de Arcadia,Lino,&o doce Orfeo
Poſto que pellos Pais ſejão julgados.
Então heis de ſubir ao quinto Ceo
Pera occupar te Marte a ardente esfera,
que ouuindo voſſo nome ja tremeo.
Entre tanto eſta humilde Primauera
Foi hum pequeno enſaio do futuro;
O fruito então virâ quando ſe eſpera
Ia com voſſos fauores me aſſegero
Contra quem me ladrar na partezinha;
Da qual gloria nenhũa a mi procuro.
Eſta ſomente foi a gloria minha
Louuar a Real caſa de Bragança,
Dando o que deuedor ha tanto tinha.
Neſtas rimas ſenhor tãobem ſe alcança
Quão facil he na vida hum breue riſo:
* Quão depreſſa ſe murcha hũa eſperança.
Aqui ſe repreſenta o grande Anfriſo,
Aqui a nobre Laura,a Deos atados
* Dando ameno teatro ao paraiſo.
Não queira Deos que os cantos profanados
ſejão ditos ſenhor por minha boca,
Nem a voſſa grandeza apreſentados.
Eſta ſanra tragedia a vôs ſo toca.
Vede o naufraso Anfriſo,que na area
Por ſeu patrão ſeguro vos inuoca.
Vede que vomitado em noite fea.
Dos mares infernais de Babylonia
Socorro eſtà pedindo em terra alhea.
Não parece ſenhor ſer couſa idonia
Que ache milhor Patrão que o Luſitano
O Anfriſo de Teſſalia & Macedonia.
Naõ ſaõ iſto Canções de Amor profano:
Mas ſaõ hũas eſcadas verdadeiras
Pera poder ſubir ao deſengano.
Saõ huãs cantilenas derradeiras,
que deu hum triſte ciſne â noſſa idade
Com ſoſpiros mortais de mil maneiras.
Em coua de dragois, & eſcuridade
Dous partos produzi,& o meſmo Ceo
Teſtemunha ſera deſta verdade.
Alli a dura hiſtoria ſe teceo
Do perſeguido Anfriſo,& a de Fileno,
que primaueras da Alma enriqueceo.
Em luzes de papel pobre,& pequeno,
Com apertado paõ,com agoa breue
As muſas meditei,que hoje condeno,
Deſde que o claro Sol em libre eſteue
Toquei grilhõis no eſcuro laberynto:
Ate ver as eſcamas de ouro,& neue.
Neſte termo fata,breue,& ſuccinto,
Do que Fileno,& Anfriſo me enfinaraõ
Dous tragicos paineis aos olhos pinto.
Quando liuros de gloria me faltaraõ,
Por naõ goſtar da furia o meu Tirano.
Exemplos de Pompeo me acompanharaõ
Que como bem diſia o Affricano
eſta o doce fruito do que offende
Nas dores do offendido,& no ſeu dano.
O Capitão famoſo que iſto entende
Perdendo o ſenhorio de Farſalis:
Nem hum final de dor ſeu geſto offende.
Oera que o Dictador de antiga Italia
Cõ ſeu tormento as glorias não dobraſſe:
Tal por baldar ao meu,canto em Caſtalia.
Mas como pode ſer que ſe apuraſſe
Obra?da qual ſoſpeito que ſe a vira,
* Fugitiuos borrões Plauto a chamaſſe:
Na alhea letra a minha fe eſculpira,
Principe meu,com a tinta adulterada,
Que apenas quinto olhar traslada & tira.
Depois que em papel branco a vi laurada,
Por não ſer de Ariſtarchos offendida:
A eſſe templo Real foi conſagrada.
Aqui vereis pintada,& traduzida
Qual Principe que fois da ſumma Alteza
Deſte primeiro monſtro a infauſta vida.
Que ſe os monſtros que gera a natureza
Aos Principes maiores ſe offerecem,
Argumentos de gloria, & de grandeza:
Os monſtros de Fortuna mais merecem,
Por terem mais que ver;& a piedade
E a gloria de hũ Senhor mais engrandecẽ.
Ora pois neſſa leda Mageſtade
Acheu naufragios tais fermozo amparo
Que he a Principes deuida a humanidade
Nunca de gloria o Ceo vos ſeja auaro
Vòs ireis triunfando: eu eſcreuendo
Em heroico eſtillo grande & raro.
Eu cantarei a Homero eſcurecendo;
E ſentirà Alexandre noua inueja:
Vôs meus cantos do cão ireis erguendo,
Que heis de vencer Achylles na peleja.