ATO PRIMEIRO

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QUADRO PRIMEIRO

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A cena representa uma sala com um toucador, portas laterais, porta no fundo, um banco e mesa com bancais de damasco, algumas cadeiras de espaldar, decoração da época.

CENA I

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1. PAULA (Só, acabando de compor a mesa) - O que se havia de meter em cabeça àquele pobre Alcoforado! E escolher-me a mim logo a mim para sua confidente! Mas enfim ele é tão novo, que não era de razão que eu o deixasse morrer assim sem mais nem menos. Que doido aquele!... Foi logo oferecer oferendas e romanas àquela santa que por certo lhas não há-de aceitar; porém, que se me dá a mim que ele gaste cera com maus defuntos em vez de a mandar benzer para se guardar dos trovões!

CENA II

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PAULA, a DUQUESA

2. PAULA - Jesus! Sois vós, Senhora Duquesa!

3. A DUQUESA (Sorrindo-se) - De que te admiras?

4. PAULA - Tão cedo! Apenas o sol acaba de nascer! Acaso estais doente?

5. A DUQUESA - Não pude dormir; assim me acontece sempre em terras pequenas. Não tenho em que empregar os serões, deito-me cedo, e passo a noite a revolver-me no leito.

6. PAULA - Como estais pálida! Realmente é-nos preciso ir para a corte quanto antes; que se passais muitas noites como esta, não vos asseguro a vida por um ceitil.

7. A DUQUESA - Dizes bem; porém enquanto por cá andamos. não te esqueças de me toucar.

8. PAULA - Sim, toucar-vos agora para terdes ao meio-dia um toucado desfeito e sem graça.

9. A DUQUESA - Compô-lo-ás de novo. Custa muito? (Paula começa a toucá-la). Já hoje viste o Senhor Duque?

10. PAULA - Ah! o Senhor Duque! Está outro como vós! Esta manhã, ainda o sol não era nascido, senti um tropel à porta do palácio; cheguei-me a janela, e vi dois cavalos arreados e prontos; pouco depois saiu o Senhor Duque, cavalgou de um salto o primeiro que encontrou, e quando Fernão Velho, o vedor, acabava de cavalgar o segundo, já ele se tinha sumido lá, bem longe, como quem vai caminho da tapada.

11. A DUQUESA - Pobre homem!

12. PAULA - Pobre! Bem terrível que é ele.

13. A DUQUESA - Terrível por quê? Não sabes tu que o Duque tem alma grande e coração generoso?

14. PAULA - Generoso e grande quanto quiserdes; o que todavia não obsta a que eu em sentindo os seus passos me não deseje a cinqüenta braças pela terra dentro, ou a cinqüenta léguas distante dele.

15. A DUQUESA - Deveras antes compadecer-te do muito que ele há sofrido! Crês tu que a sua tristeza sombria e inexpugnável cifre-se toda nas rugas que lhe vês sulcar o rosto? Não... mais funda é a sua raiz, tu a encontrarás no seu pensamento e nas recordações dolorosíssimas que o esmagam.

16. PAULA - Vão lá ter compaixão de um homem que amedronta a gente!... Apesar de me repetir a mim mesma quanto me dizeis, Senhora Duquesa, não posso acabar comigo de... antipatizar com ele.

17. A DUQUESA (Severa) - Falas de meu marido?

18. PAULA - Jesus! Eu bem sei que ele é vosso marido; porém, devo eu por isso faltar à verdade... Meu Deus, parece que nunca sentistes calar-vos pelos ossos uma sensação de frio quando ele firma sobre um rosto qualquer aqueles olhos negros e sombrios, que parecem querer virar a gente de dentro para fora.

19. A DUQUESA - Cala-te (Mais baixo) Eu mesma, Paula, eu mesma, quando adivinho, não me e preciso ver, quando adivinho que meu marido me encara fixamente, sinto o sangue arder me nas faces e perturbo-me toda como se fosse criminosa; e todavia não tenho um pensamento, nem sequer um pensamento de que me deva acusar.

20. PAULA - Vede! Até vós mesma...

21. A. DUQUESA - Não posso escutá-lo sem estar em contínuo sobressalto; mesmo quando ele me fala eu temo a explosão da sua cólera. A sua cólera terrível! Eu a temo!... E contudo, para que o amasse bem pouco lhe seria preciso... ele não o quer.

22. PAULA - Ele, senhora!

23. A DUQUESA - O rei seu tio, a rainha sua avó, a duquesa sua mãe, todos o constrangeram a celebrar este casamento bem contra a sua vontade. Ele o não queria, a ponto de tentar evadir-se disfarçado. Reputa-me a causa de haver ele mentido a sua vocação, e ainda me não pôde perdoar.

24. PAULA - Mas que culpa tendes vós?

25. A DUQUESA - Nenhuma; e contudo ele tem razão. Quem se não irrita de encontrar continuadamente o mesmo obstáculo diante de si? Apesar disso ele trata-me com magnificência real, tem para comigo deferência e atenções, que eu bem sei que mais são filhas da urbanidade que do coração; mas outro fosse ele que facilmente se esqueceria na sua vida íntima das maneiras de cortesão. Sempre é certo que ele é bem melhor do que o supões.

26: PAULA - Não vos contradirei, Senhora Duquesa. Prouvera ao céu que ele fosse tão bom como vós sois.

27. A DUQUESA - Quê! Já aprendeste a lisonjear?

28. PAULA - Pois deveras, Senhora Duquesa, sou eu a primeira em dizer-vos coisas tão simples como isto?

29. A DUQUESA - Certo, és a primeira.

3,3. PAULA - Pasmo com o que me dizeis. Permitis-me que vos fale toda a minha verdade?

31. A DUQUESA - Dize-a.

32. PAULA - Olhai, senhora; se sou a primeira em dizer-vos que sois bela e que tendes bom coração, muitos outros que pensam como eu calam-se prudentemente para que não tomeis a verdade por ofensa, nem por lisonja o louvor merecido.

33. A DUQUESA - Boa Paula! Julgas que todos me vêem com os teus olhos, e que em mim pensam com a tua alma?

34. PAULA - Não, senhora; com melhores olhos que os meus, com alma mais ardente que a minha... Um sobre todos...

35. A DUQUESA - Quem?

36. PAULA - Aquele belo mancebo que todas as manhãs passa por defronte do vosso balcão montado em um formoso ginete murzelo, que ele parece sofrear não com esforço, mas só por força da sua gentileza.

37. A DUQUESA - De quem falas tu?

38. PAULA (Continuando) - Ainda não cinge espada de cavaleiro, mas...

39. A DUQUESA - Ah!

40. PAULA - Mas quando ele a houver cingido... vereis... vereis que nome terá o senhor Alcoforado! Há-de ser alguma coisa assim, como Hermigues, o Traga-Mouros, ou Leonardo, O Cavaleiro Namorado.

41. A DUQUESA - És mais hábil do que eu, que ainda lhe não pude descobrir partes de cavaleiro.

42. PAULA - Oh! É porque ainda lhas não quisestes descobrir, ou porque talvez ainda não atentastes bem nele.

43. A DUQUESA - Muito te interessas por ele, minha boa Paula.

44. PAULA - Muito: por que vos hei-de eu mentir? Gosto muito dele... Sabeis o que o outro dia me aconteceu?

45. A DUQUESA - Que foi?

46. PAULA - O outro dia tinha eu na mão aquela vossa fita de cetim raso aleonado, e ele, que me viu com ela, veio direito a mim, e sem me dar tempo para dizer ai! cortou um pedaço e... levou-o!

47. A DUQUESA (Levantando-se) - Imprudente! não sabes que tenho por costume de a trazer, e que todos em palácio já me viram com ela?

48. PAULA - Não vos estou dizendo que não tive tempo para dizer ai! E depois, que mal há nisso? Uma fita já toda amarrotada!...

49. A DUQUESA (Severa) - Seja o que for, senhora, coisas que me pertençam não as quero por mãos de estranhos. Quando para aqui viemos, eu pedi ao Senhor Duque que me livrasse da etiqueta cortesã, da numerosa companhia das damas do meu serviço, e que a vós só fosse lícito acompanhar-me. Não deveis, portanto, abusar da minha condescendência, nem comprometer-me com a vossa leviandade. Não sabeis que gênio tem o duque.

50. PAULA - Mas que queríeis vós que eu fizesse? Ele julgou que a fita fosse minha.

51. A DUQUESA (Menos severa) - Estais certa disso?

52. PAULA - Pois de quem a havia ele de julgar? Viu-me com uma fita nas mãos, e pensou, muito naturalmente, que era minha.

53. A DUQUESA (Á parte) - Vaidosa! (Alto) - Bem: o Senhor Duque não pensará tão naturalmente como vós; e assim é mister que a tomeis a haver.

54. PAULA - Eu lha pedirei, Senhora Duquesa; e se ele a recusar... Oh! Então nós o faremos julgar contumaz e revel, e como tal degradar para alguma das sete partidas do mundo, com baraço ao pescoço e pregão que diga: Cavaleiro descortês e descomedido degradado por amor.

55. A DUQUESA - Se ele vos não quiser atender, recorreremos a outra justiça, menos pomposa, porém mais segura. (Senta-se e com a mão faz sinal para que se retire).

56. PAULA (À parte) - Jesus, Senhor! (Abre a porta do fundo e olha a furto para dentro) - Ainda não!

57. A DUQUESA - Que dizes tu?

58. PAULA - Nada, senhora; estava agora lembrando-me daquele pobre cavaleiro!

59. A DUQUESA - Está bem, está bem. (Repete-lhe o sinal. Paula sai: momento de silêncio). Não gosto de ouvir falar nele, e não posso pensar em outra coisa. Por quê?.. . (Torna-se pensativa).

CENA III

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ALCOFORADO, a DUQUESA

60. ALCOFORADO - Senhora Duquesa!

61. A DUQUESA (Levantando-se) - Paula! Paula!

62. PAULA (Entrando) - Que me quereis, Senhora Duquesa?

63. A DUQUESA (Em voz baixa) - Não sabias tu que ele vinha? Por que me deixaste só?

64. PAULA - Não o sabia, senhora.

45. A DUQUESA - Não importa; ficarás comigo.

66. PAULA - Quereis que ele presuma que dele vos arreceais?

67. A DUQUESA - Ah! (Alto) - Que fazias tu?

68. PAULA - Ia para junto dos vossos filhos.

69. A DUQUESA - Está bem; podes ir. (Paula sai).

CENA IV

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ALCOFORADO, a DUQUESA

70. ALCOFORADO - Senhora Duquesa...

11. A DUQUESA (Sem olhar para ele) - A que vindes, senhor?

72. ALCOFORADO - Saber se alguma coisa vos apraz mandar do meu serviço.

73. A DUQUESA - Nada, senhor; podeis retirar-vos. (Alcoforado encara-a tristemente por alguns segundos, e vai para sair. A Duquesa observando-o). Pobre mancebo! bastou uma só palavra minha para o entristecer àquele ponto!... (Sentando-se). Senhor Alcoforado! (Voltando-se para ele). Como vai a vossa boa irmã, senhor?

74. ALCOFORADO - Vós sois boa, Senhora Duquesa. Sois severa de vez em quando, porém também tendes acentos que são como alívio para quem os escuta.

75. A DUQUESA (Admirada) - Mas quando eu vos falo de vossa irmã, a que propósito vem a minha bondade?

76. ALCOFORADO - A que vem, senhora?... É que vós me vistes triste e pensativo, temendo ter incorrido no vosso desagrado, e não quiseste que eu me fosse da vossa presença com aquele espinho no coração. Sois boa e generosa: pois não é generosa a mão que, podendo colher uma flor para a desfolhar no seu caminho, a deixa verde e orvalhada, balancear-se na sua haste? Não é generoso o pé que, podendo calcar um inseto, resalva-o para lhe não fazer mal algum?

77. A DUQUESA - Enlouqueceis, senhor?

78. ALCOFORADO - Que sei eu, Senhora Duquesa? Eu mesmo não sei o que digo; mas já que principiei a dizer-vos destas coisas que não compreendo, e que todavia não possa esconder-vos por mais tempo, deixai que as diga por uma vez, e podeis depois ordenar-me que não mais apareça diante de vós... Oh! não; dai-me um castigo bem rigoroso, mas não me exileis da vossa presença.

79. A DUQUESA - Inquietais-me.

80. ALCOFORADO - Escutai-me, Senhora Duquesa. As pessoas da vossa hierarquia têm às vezes necessidade urgente de um homem resoluto e discreto que marche afoitamente por meio das trevas sem temer os golpes de um punhal traiçoeiro, nem a morte obscura e sem glória, que em meio delas o poderá alcançar: têm às vezes caprichos imperiosos, e para os satisfazer é preciso todo o aparelho da tortura e todo o horror do cadafalso. Assim mo disseram. Se alguma vez tiverdes um desses caprichos ou uma dessas necessidades, dizei-me: - vai! e eu andarei por meio das trevas; - sofre! e eu me sujeitarei à tortura; - morre! e eu subirei ao cadafalso.

81. A DUQUESA - Senhor Alcoforado, não queira Deus dar-me tais pensamentos, nem tenha eu a criminosa vontade de manchar em seu começo a vossa vida que promete ser tão bela. A vossa pátria tem necessidade de almas puras, de braços esforçados e de homens que saibam morrer por ela; não de morte infamante como a quereis, mas da morte gloriosa do valente na arena do combate! Será doravante meu cuidado abrir diante de vós uma senda nobre e grande por onde marcheis desassombrado e a passos de gigante.

82. ALCOFORADO - Não vos pedi eu que me não exilásseis da vossa presença?

83. A DUQUESA - Ah! chamais a isto exílio!... Bem sei que na vossa idade há sempre motivos fortes que nos prendem à terra em que vivemos; porém é bem melhor que vos vades afazendo à idéia de que cedo ou tarde os haveis de romper, e por motivos talvez mais ponderosos. (Atentando no barrete). Tendes um lindo barrete, Senhor Alcoforado.

84. ALCOFORADO - Um mimo de minha irmã, senhora.

85. A DUQUESA - Deixai-mo ver?... É lindo. E esta fita também foi vossa irmã quem vô-la deu?

86. ALCOFORADO (À parte) - Céus!... (Alto) - Não, senhora.

87. A DUQUESA - Agora me lembra! A minha camareira queixou-se-me há pouco de que impolidamente lhe haveis cortado uma fita que ela trazia na mão. (Desprendendo a fita). E como essa fita era minha, não levareis a mal que eu dela me aposse de novo. (Dá-lhe o barrete e põe a fita sobre a mesa. Momento de silêncio) - Vós partireis, Senhor Alcoforado.

88. ALCOFORADO - Poderia eu desobedecer-vos, senhora!

89. A DUQUESA - Partireis. O Senhor rei D. Manuel abriu aos seus campeões as portas da Ásia e derribou as da África: lá ireis ganhar as vossas esporas, e desde já vos asseguro que eu me alegrarei a cada notícia que me chegar de algum feito brioso que houverdes praticado, porque então conhecerei que sois digno de toda a minha proteção.

90. ALCOFORADO - E as pequenas palmas que eu colher no campo da glória, poderei, senhora, poderei depor aos pés da minha protetora?

91. A DUQUESA - Quem vô-lo obstará? As nossas donas ainda se não esqueceram de sentir emoção ao aspecto de um rosto queimado pelo sol da África, de uma fronte coroada de louros ou de um peito coberto de cicatrizes. D. Manuel é magnífico; quando vemos uma comenda ao peito de um lidador, bem sabemos que ela esconde uma ferida gloriosa.

92. ALCOFORADO - E para que eu não desfaleça na senda perigosa que ora vou trilhar sozinho e sem conselhos...

93. A DUQUESA - Quereis uma memória, não é assim?

94. ALCOFORADO - Não me atrevia a pedi-la.

95. A DUQUESA (Brincando com a fita) - Dar-vos-emos uma memória, Senhor Alcoforado; uma memória que em nossa ausência vos aconselhe e que vos diga que. assim como estimaremos o vosso triunfo, uma ação má que praticardes nos será motivo de grande nojo e nos desconceituará perante nós mesma. (Momento de silêncio. A duquesa levanta-se e estende-lhe a fita). - Não é isto o que desejais possuir?

96. ALCOFORADO (Com entusiasmo) - Mouros e africanos! Atravessarei os mares para vos ir atacar impávido nas vossas espeluncas, para vos acossar nos vossos páramos ardentes, para vos ir desafiar da porta das vossas fortalezas espedaçando o cajado dos vossos alarves. E quando dentre as vossas ruínas, do cimo de algum pano de muralha, a minha espada ensangüentada e fumegante apontar para o Ocidente rutilando sobre vós outros como um meteoro aziago, o eco do meu nome atravessará de novo os mares e vós direis por ventura, com orgulho, que era digno... (Caindo-lhe aos pés e tomando-lhe a fita) - Da vossa proteção.

CENA V

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OS MESMOS, um PAJEM

97. O PAJEM - Senhora Duquesa! (Alcoforado levanta-se confuso). - O duque, meu senhor, manda saber de vós se lhe permitis visitar-vos.

98. A DUQUESA - Dizei ao senhor duque que sou bem feliz quando ele se digna de me honrar com a sua presença. (O pajem sai). Senhor Alcoforado, os fidalgos da comitiva do meu nobre esposo e senhor de ora em diante só me poderão falar no salão do palácio.

99. ALCOFORADO - Mercê, Senhora Duquesa!

100. A DUQUESA - E isto começa desde já a efetuar-se.

101. ALCOFORADO - Mandais, senhora. (Curva-se e retira-se).

102. A DUQUESA (Pensativa) - Fui imprudente.

CENA VI

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O DUQUE, a DUQUESA

103. O DUQUE - Minha duquesa, venho hoje feliz e venturoso... (Olhando em redor de si com desconfiança). Não faláveis a alguém?

104. A DUQUESA - Ao senhor Alcoforado, que se retirou neste momento.

105. O DUQUE - É um gentil mancebo o senhor Alcoforado. Nós prometemos ao seu velho pai fazer dele um brioso cavaleiro, e por São Tiago, não nos falta vontade de cumprirmos com a nossa promessa. Que pretendia ele?

106. A DUQUESA - Quase nada: que lhe permitísseis entrar noutra carreira, deixando o vosso serviço, e que impetrásseis del-rei vosso tio uma recomendação aos fronteiros de África para...

107. O DUQUE (Interrompendo-a) - Para que o tratem com mil atenções; deixando-o vegetar na sua barraca de campanha, como uma flor numa estufa, não é isso?

108. A DUQUESA - Não, senhor; para que lhe assinem um posto perigoso, onde ele possa alcançar morte honrosa ou nome glorioso.

109. O DUQUE - Bem, multo bem. Apraz-me sabê-lo desse acordo, que é de um ânimo generoso revelar tal ardimento em tão verde juventude! Nós lhe abriremos essa estrada e talvez que um dia nós mesmo, fronteiro das terras dentre Douro e Minho, fujamos da vossa muito amada companhia para irmos além-mar com os nossos vassalos, acometer os idólatras ao grito de: Bragança e Portugal!... O senhor rei D. Manuel, que nos não quis ver professar na religião de Malta, permitirá sem dúvida à nossa espada dilatar-lhe o império por terras de infiéis. (Momento de silêncio). Não é para isto que vimos ter convosco. Sentai-vos. Dizei-me, Duquesa, não vos apraz esta vida um pouco rústica que viemos aqui buscar neste desterro?

110. A DUQUESA - Não é do meu dever seguir-vos para onde vos aprouver levar-me?

111. O DUQUE - Não vos falo do vosso dever; trata-se de vós, do vosso gosto; pergunto-vos se não amais esta vivenda.

112. A DUQUESA - Duque, poderia eu estar melhor algures que na vossa companhia?

113. O DUQUE - Sempre boa, afável e condescendente! Mas certo que deveis amar esta vida que aqui passamos em Vila Viçosa. Tendes a alma um pouco propensa à tristeza e à melancolia: é um contágio em todos os que me cercam e que vivem da minha vida. Para essas almas, Duquesa, a vida cortesã é pesada e odiosa... Eu mesmo... há momentos na minha vida em que eu daria de boa mente honrarias, brasões, títulos, nome e tudo para que, aldeão simples e humilde, me deixassem viver obscuro e feliz longe do clamor das turbas e do bulício do mundo. Não imaginais com que profundo prazer parto sempre para viver uma semana na Serra de Ossa com os meus capelães, alimentando-me com a doutrina daqueles santos padres, ou exercendo as práticas mais severas da sua religião; ou então, e bem melhor, para habitar o meu oratório no Convento do Bosque. O meu oratório, sabeis o que é? Uma ermidazinha humilde e vergonhosa ali escondida entre as ramas do arvoredo frondoso como um pensamento de virgem, aformoseado pelo silêncio e pelo pudor. Os pensamentos que aqui me perseguem, dolorosos como a realidade, lá me aparecem doces e tristes como uma recordação.

114. A DUQUESA - Eu concebo, Senhor Duque, que vós partais sempre com a felicidade no coração, e que sempre torneis...

115. O DUQUE (Atalhando-a) - Mais feliz do que parti. Tenho a certeza de encontrar sempre a vossa inalterável doçura, a vossa alma compassiva e angélica e o vosso rosto sereno e tranqüilo. Não é convosco que as minhas recordações... (Apertando a cabeça) Sempre elas!...

116. A DUQUESA - Sofreis, Senhor Duque?

117. O DUQUE - Muito. Esta noite não sei que negros pensamentos me atormentaram. A morte lastimosa de meu pai, a minha infância desvalida, o meu envenenamento, o meu exílio por terras estranhas eram eventos dolorosíssimos que, sem cessar, me passavam por diante dos olhos roubando-me o sono... e a razão, creio eu...

118. A DUQUESA - E não vos distraístes com o passeio desta manhã?

119. O DUQUE - Sim. A corrida afanada, o tresfolgar dos cavalos e a aragem fresca do romper da alva tiveram forças para me chamar à realidade em poucos instantes. Respirei profundamente o ar puríssimo dos campos, vi o sol bordar o horizonte com uma franja de púrpura, derramar pelo céu alvacentos listões de fogo vivíssimo e destacar dos montes, como uma coluna de incenso, a neblina pegajosa que ali se balançava como um penacho de guerreiro em dia de batalha. Vi a natureza sorrir-se em redor de mim; e eu extasiei-me de a sentir tão fundamente, e fui feliz! Tão feliz como no dia em que o senhor rei houve por bem mandar abrir as portas do meu palácio, fechadas com estrondo por um vento de morte. Tão feliz como no dia em que eu arranquei o crepe fúnebre que enlutava o meu escudo, pregado ali pela mão do carrasco. (Levantando-se). Quando meu pai... Pajem! Pajem!

120. A DUQUESA - Que tende vós, senhor?

121 - O DUQUE - Não vedes que me é preciso sair ainda, que me é preciso matar este pensamento com algum exercício? (O pajem entra).

CENA VII

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OS MESMOS, um PAJEM

122 - O DUQUE - Fernão Velho que mande selar os ginetes, que faça aprontar a matilha e os falcões e que abra a sala de armas para que os meus pajens e os senhores do meu serviço que me quiserem acompanhar se aparelhem para a caça. (O pajem vai-se).

CENA VIII

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O DUQUE, a DUQUESA

123 - O DUQUE - Não vindes, Senhora Duquesa?

124 - A DUQUESA - Se me permitis, D. Jaime.

125 - O DUQUE - Vamos à devesa de Vilaboim que, como sabeis, abunda em caça; tem alguns javalis, mas creio que deles não vos arreceais; e demais, é ocasião de experimentardes o vosso belo palafrém andaluz que há pouco vos chegou de Espanha. Quereis vir?

126 - A DUQUESA - Mandais...

127 - O DUQUE - Não, peço-vos.

128 - A DUQUESA - Mas... desejais ao menos levar-me na vossa companhia?

129 - O DUQUE - Ser-me-ia prazer se para vós não fosse incômodo.

130 - A DUQUESA - Irei, D. Jaime.

131 - O DUQUE - Eu vô-lo agradeço, minha boa guerreira, e de volta falaremos do vosso protegido!

132 - A DUQUESA - Meu protegido!

133 - O DUQUE - Sim, não vos interessais por ele?

134 - A DUQUESA - Como coisa que, por assim dizer, vos pertence.

135 - O DUQUE - É ser cruel, Duquesa! Pois nem ao menos quereis que tenha a presunção de haver retribuído com outra a vossa cortesia? Como quiserdes, é certo, que me não pesa de vos ficar obrigado. Ele partirá. Vireis já, não é assim?

136 - A DUQUESA - Creio que vos não farei esperar.

137 - O DUQUE - Então serei breve. (O duque vai-se).

CENA IX

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A DUQUESA

138 - A DUQUESA (Só) - Ele irá também conosco; eu o adivinho... Vê-lo-ei pela última vez.

FIM DO PRIMEIRO QUADRO

ATO PRIMEIRO

QUADRO SEGUNDO

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A cena representa o mesmo aposento do quadro primeiro

CENA I

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A DUQUESA, PAULA

139 - PAULA - Como estais, Senhora Duquesa?

140 - A DUQUESA - Boa. Não veio alguém saber de mim?

141 - PAULA - Um pajem do senhor duque da parte de seu amo.

142 - A DUQUESA - Tu que lhe disseste?

143 - PAULA - Que descansáveis; e ele tornou para dizer-me que o senhor duque seria convosco logo que acabásseis de repousar.

144 - A DUQUESA - Está bem. (Momento de silêncio).

145 - PAULA - Senhora Duquesa, é certo o que se diz que vos ia acontecendo?

146 - A DUQUESA - O quê?

147 - PAULA - Um desastre?

148 - A DUQUESA - É certo.

149 - PAULA - Mas podia ele ser de morte?

150 - A DUQUESA - Que sei eu? Talvez fosse: felizmente o meu bom anjo me não desamparou.

151 - PAULA - O vosso bom anjo?

152 - A DUQUESA - Sim. Foi um momento horrível, Paula. O duque se havia embrenhado pela floresta com a sua comitiva e alguns cavaleiros que me guardavam insensivelmente me foram abandonando seguindo o vôo de um falcão que tinham soltado: de repente o meu palafrém arrancou comigo pulando troncos, pedras e valados.

153 - PAULA - E não caístes?

154 - A DUQUESA - Quis ver de que se tinha ele espantado: voltei a cabeça e vi... foi horrível! Um javali que vinha sobre mim.

155 - PAULA - Jesus, Senhor!

156 - A DUQUESA - Perdi o tino; em vez de lhe soltar as rédeas, puxei-as com força: ele tropeçou, caiu, e eu caí com ele.

157 - PAULA - Virgem Santíssima... E como vos salvastes?

158 - A DUQUESA - Houve-me por morta, porém não tive tempo para ter medo. Escrava da minha sorte e sem tentar escapar-lhe, fechei os olhos, senti o zunido de uma coisa que cortava os ares e um braço que me enlaçava pela cintura quando eu ia a rair por terra.

159 - PAULA - Foi o senhor duque!... Bom homem!... Que muito que lhe eu já quero só pelo bem que vos há feito!

160 - A DUQUESA - Não foi ele. Abri os olhos para ver o protetor que o céu tão oportunamente me enviara. Era Alcoforado quem me tinha salvado a vida. Por esforço de coragem sobrenatural, que ainda não sei como a achei em mim, quis-me interpor entre ele e o animal que pouco havia não tinha ousado afrontar; porém ao tropel de alguns cavaleiros olhei naquela direção e vi meu marido que de nós se aproximava: senti como uma nuvem diante dos olhos e caí desmaiada.

161 - PAULA - Nobre mancebo!

162 - A DUQUESA - Quando tornei a mim já ele tinha desaparecido: vi somente o javali com um venábulo que o atravessava de parte a parte. Foi preciso vê-lo para me convencer de que o que eu supunha um sonho tinha sido uma realidade.

163 - PAULA - Então, Senhora Duquesa! Não é com razão que vos digo que o mancebo, em quem ainda não pudestes descobrir partes de cavaleiro, será em algum tempo guerreiro de nomeada?

164 - A DUQUESA - Tens razão, boa Paula. A estas horas que seria de mim se ele não fosse?

165 - PAULA - Em bem que vos dele ele desmentido tão cavalheiroso! Ainda quereis que lhe eu peça a vossa fita?

166 - A DUQUESA - Quando outra coisa não fosse, ser-me-ia bastante desairoso negar coisa tão pouca a quem tanto fez por meu respeito; não lhe fales nela! (Silêncio)

CENA II

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OS MESMOS, o DUQUE

167 - O DUQUE (Sombrio) - Como ides, senhora?

168 - A DUQUESA - Foi um sobressalto, Senhor Duque; um delíquio passageiro que não merecia vossa solicitude.

169 - O DUQUE - Folgamos de vos achar perfeitamente restabelecida. Pesar-nos-ia que por nossa causa sofrêsseis graves incômodos.

170 - A DUQUESA - Quando eu os sofresse, D. Jaime, não teríeis razão para vos culpardes a vós mesmo. É verdade que fostes vós que me pedistes de ir a esta caçada; porém o acontecimento que teve lugar estava tanto acima da prudência humana que não era de ser prevenido.

171 - O DUQUE - Sim, Duquesa, estava muito acima da prudência humana, porém, não dos meus pressentimentos. Já falastes ao vosso salvador?

172 - A DUQUESA - Não, Senhor Duque.

173 - O DUQUE - Convém que lhe faleis. A pessoas da nossa hierarquia não está bem dever favores a quem quer que seja; porém, quando tal aconteça, deve-se-lhe uma remuneração tal que ele se não lembre do favor prestado senão do galardão recebido. Falai-lhe, prometei-lhe quanto vos aprouver, que nós de antemão subscrevemos a tudo quanto lhe prometerdes: antes mais que menos... Paula, na antecâmara da senhora duquesa deve estar algum dos nossos pajens; dizei-lhe que chame o Senhor Alcoforado e trazei-nos depois um copo de água. (Paula sai).

CENA III

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O DUQUE, a DUQUESA

174 - O DUQUE (Rompendo o silêncio) - Quereis ir para a corte, Senhora Duquesa?

175 - A DUQUESA - E vós também ides?

176 - O DUQUE - Comigo ou sem mim, isso que importa?

177 - A DUQUESA - Duque, morarei de bom grado onde quer que morardes: o lugar pouco me importa.

178 - O DUQUE - Mas não se dirá que sou um esposo colérico e despótico, que entorpeço a vossa vontade, que embargo as vossas ações, que ponho obstáculos aos vossos mais inocentes, mais íntimos desejos? Por Deus, senhora, tende sequer por um instante, sequer uma vez um desejo vosso, uma vontade vossa, livre e independente de outro desejo e de outra vontade Não vos mostreis como vítima adornada para o sacrifício e levada para ali mau grado seu; mostrai-vos senhora, que realmente o sois.

179 - A DUQUESA - Irei, Senhor Duque.

180 - O DUQUE - Falei assim, que vos entenderemos. A corte tem muitas festas, muita pompa, muitos divertimentos: precisais deles, bem o sabemos.

CENA IV

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OS MESMOS, PAULA (com um copo de água)

181 - O DUQUE (Continuando) - Com o vosso gênio careceis de distrações, e fazeis bem em vos distrairdes, ou dia virá em que, como eu, mau grado vosso, sereis vítima da vossa imaginação. (Tomando o copo maquinalmente). Sei que esta vida não deve quadrar com a vossa vida e assim aprovo inteiramente a vossa resolução. (Levando o copo aos lábios e logo arrojando-o ao chão). Esta água... Esta água.

182 - A DUQUESA (Levantando-se assustada) - Ah!

183 - PAULA - Água rosada, senhor: não é o que costumais beber?

184 - O DUQUE (Tomando vivamente as mãos da duquesa) - Oh! Perdão, perdão, duquesa! (À Paula). - Ide-vos. (Paula sai).

CENA V

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O DUQUE, a DUQUESA

185 - O DUQUE - Contra a minha vontade vos atemorizei; foi um movimento rápido, impetuoso, violento... não tive tempo para o conter.

186 - A DUQUESA - Fizestes-me bem mal, senhor!

187 - O DUQUE - Bem o vejo. Desastrado que eu sou! Mas vós que tanto tempo há me conheceis, por que vos não rides dos meus arrebatamentos, das minhas desconfianças, dos meus acessos de cólera? Por que vos não rides, senhora?

188 - A DUQUESA - Não posso.

189 - O DUQUE (Sentando-se) - Já compreendeis a razão por que vos não desejo comigo? É porque mais que nunca os meus ataques multiplicam-se, acabrunham-me, perseguem-me e contudo já os não devíeis temer; não vos devíeis atemorizar quando vos não compadecêsseis de mim.

190 - A DUQUESA - Oh! Senhor!

191 - O DUQUE - Sim, compadecer-vos, porque eu sou mais infeliz que mau. Apenas me levantei do berço, que ao invés de meu pai vi um cadafalso por cima da minha cabeça; apenas no exílio, fomos envenenados, eu e meu irmão: ele morreu e eu continuei a arrastar a minha vida sobre a terra. Despojado violentamente de quanto há no mundo de mais precioso e caro, continuadamente contrariado nas minhas inclinações as mais íntimas, as mais santas; ainda hoje! hoje, que sou homem, duque, poderoso e respeitado, como dizem, sofro de ter nascido nobre em vez de ter nascido vilão, de ser senhor em vez de ser vassalo, de ser livre em vez de ser escravo!

192 - A DUQUESA - Não digais tal, senhor.

193 - O DUQUE (Pegando-lhe na mão) - Digo-vos isto porque é este o meu sentimento; e porque, se assim não fora, eu não sentiria, mesmo agora, a vossa mão tremer na minha, fria e gelada; como que já não tendes vida.

194 - A DUQUESA - Foi o terror momentâneo; já o não sinto.

195 - O DUQUE - Ouvi. Esta manhã, quando vos eu vi por terra, sozinha e sem defesa contra o javali que vos ia espedaçar, julguei que vos havia perdido, e por minha culpa; quando vi o Senhor Alcoforado arrojar seu venábulo, da distância em que eu estava, e como vos visse cair, pareceu-me que o ferro vos tinha ofendido, e que morríeis dele. Felizmente que nada vos aconteceu, graças à mão carteira do mancebo que tomou a seu cargo desmentir os meus pressentimentos. Bem sabeis quanto sou supersticioso! A minha insônia desta noite, as duas mortes de que escapastes, fazem-me crer que uma fatalidade sobrevirá hoje à minha família. Não o duvideis!... Será o terceiro golpe o mais terrível! A vítima não escapará. Quando levei aos lábios aquele copo de água rosada que a vossa camareira me oferecia, a morte de meu irmão me passou por diante dos olhos como um relâmpago, e eu me esqueci de mim, de vós, de tudo, para só me lembrar do que já sofri com o veneno que me deram. Atemorizei-vos, bem contra a minha vontade.

196 - A DUQUESA - Mas por que pensais em coisas tão tristes? Por que vos não distraís?

197 - O DUQUE - Posso eu pensar noutra coisa que nisto não seja?.. Posso eu achar prazer senão em afundar-me nos meus pensamentos e torturar-me a mim mesmo?... Partireis, duquesa; jovem, nobre e formosa, não é com um homem como eu que deveis passar a vida. Ireis para a companhia de minha mãe que também é vossa, por ela fostes educada... (Entra Alcoforado). Quem ousa interromper-nos?

CENA VI

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OS MESMOS, ALCOFORADO

198 - ALCOFORADO - Senhor Duque...

199 - O DUQUE (Severo) - O que nos quereis?

200 - ALCOFORADO (Concentrado) - Serei acaso algum mendigo?

201 - O DUQUE (Mais severo) - O que nos quereis, senhor?

202 - ALCOFORADO - Inferno! Ser assim tratado na presença dela!

203 - O DUQUE (Levantando-se) - Mancebo, não costumamos a repetir as nossas ordens. Cabeças mais nobres, presunções mais bem fundadas que as vossas, nós as temos por mais de uma vez curvado até se nivelarem com o solo. Rompei o silêncio, senhor, ou por S. Tiago...

204 - ALCOFORADO - Eu me retiro, Senhor Duque...

205 - A DUQUESA - Duque, não fostes vós quem o mandastes chamar?

206 - O DUQUE - Ah! sim, sim. Que miserável cabeça que eu tenho! Perdoai, meu jovem amigo; outros pensamentos agora nos ocupavam, porém o salvador da nossa nobre esposa e senhora será sempre benvindo, qualquer que seja o lugar em que estivermos. Sentai-vos.

207 - ALCOFORADO - Senhor Duque, se mo permitirdes, eu escutarei de pé as vossas determinações.

208 - O DUQUE - Como vos aprouver. A duquesa nossa esposa vos quer agradecer a destreza e coragem com que hoje lhe salvastes a vida. Nós nos retiramos; vinde, porém, ter conosco antes de vos partirdes para África e, onde quer que estiverdes, lembrai-vos que tendes um amigo no duque de Bragança e Guimarães. (Estende-lhe a mão, Alcoforado hesita). Tomai-a, Senhor Alcoforado; mais nobre que ela a de el-rei; mais leal nenhuma. (Alcoforado toma-lhe a mão) Adeus. (Sai).

CENA VII

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A DUQUESA, ALCOFORADO, PAULA

209 - PAULA (Espreitando da porta) - Já se foi? (Andando para o meio da cena). - Viva Deus!... Está hoje terrível o senhor duque.

210 - A DUQUESA (Levantando-se e levando a Paula para um canto da cena) - Paula, não saias de junto de mim!

211 - PAULA - Por que, senhora?

212 - A DUQUESA - Não saias. (Vindo sentar-se). - Senhor Alcoforado, quando esta manhã vos oferecemos a nossa proteção, de mau grado a aceitastes, e cedo tivestes ocasião de nos provar que bem mais útil nos seria a nós o vosso braço do que a vós a nossa proteção.

213 - ALCOFORADO - Foi um acaso, Senhora Duquesa, não falemos mais dele.

214 - PAULA - Mas deveras, senhor, que vos portastes com toda a gentileza.

215 - ALCOFORADO (Em voz baixa) - Paula, quero dever-te um grande favor.

216 - A DUQUESA - Foi um acaso, é verdade, mas um acaso que nos podia ser funesto se ali felizmente não deparássemos convosco.

217 - PAULA (A Alcoforado, em voz baixa) - O que quereis de mim?

218 - ALCOFORADO - Se não fosse eu seria outro; em vez daquele incidente haveria outro qualquer, porque é bem de ver que não podíeis morrer assim. (Em voz baixa, a Paula). Deixa-nos a sós.

219 - PAULA - Oh! Sempre é certo que tendes o coração bem generoso e a mão certeira e leal como vós sois. (Em voz baixa). Ela pediu-me que a não deixasse; tentarei.

220 - A DUQUESA - Mas... pesa-vos acaso que em o nosso reconhecimento vos devamos alguma coisa?

221 - ALCOFORADO - Oh! Não, senhora. Se eu vos devesse a vida haveria por isso de estimá-la menos? O evento desta manhã foi realmente um acaso bem indiferente para vós, bem venturoso para mim.

222 - PAULA - Permitis, Senhora Duquesa, que eu me retire por um instante?

223 - ALCOFORADO (Em voz baixa) - Não voltes!

224 - PAULA (Em voz baixa) - Deixai-me!

225 A DUQUESA (Em voz baixa) - Louca! E o que te eu disse?

226 - PAULA (Em voz baixa) - É só por um instante.

227 - A DUQUESA - Vai, mas não te esqueças. (Paula sai).

CENA VIII

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A DUQUESA, ALCOFORADO

228 - A DUQUESA (Depois de um momento de silêncio) - Quando hoje tornei a mim do meu desmaio, procurei-vos entre as pessoas que me cercavam, não tanto para vos agradecer, como para convencer-me por meus próprios olhos que nenhum mal havíeis sofrido por meu respeito.

229 - ALCOFORADO - É certo que entre as pessoas que vos cercam nenhuma houve que vos pudesse dar notícias minhas?

230 - A DUQUESA - Não me atrevi a perguntá-lo.

231 - ALCOFORADO - Ah! Não vos atrevestes! De certo, fora pasmos que donas como vós inquirissem em público de pessoas como eu.

232 - A DUQUESA - Não foi por esse motivo. (Hesitando). Queria saber de vós mesmo se estáveis perfeitamente bem.

233 - ALCOFORADO - Eu vô-lo agradeço, senhora. Infelizmente nada sofri.

234 - A DUQUESA - Infelizmente!

235 - ALCOFORADO - Infelizmente. Se algum desastre me houvesse acontecido, talvez que por um instante vos esquecêsseis da vossa nobreza para derramar um olhar de compaixão sobre o mísero que por vós se houvesse sacrificado: talvez que por um instante vos esquecêsseis da prudência, essa virtude divina que é o móvel das vossas ações, não para verter lágrimas sobre mim, mas ao menos para desatar uma palavra do coração, para soltar um grito que me convencesse de que também experimentais o que tão profundamente fazeis sentir.

236 - A DUQUESA - Não vos compreendo, senhor!

237 - ALCOFORADO - Mas acreditais o que ainda hoje vos disse; compreendeis ao menos que eu vos serviria de joelhos toda a minha vida, para que do alto da vossa grandeza deixásseis cair sobre mim triste e mesquinho uma palavra de comiseração; que eu daria a minha vida por um sorriso vosso, que eu daria a minha cabeça ao carrasco se me fizésseis um aceno e se me prometêsseis chorar sobre a minha estrela, sobre mim, ainda quando só fosse no silêncio da noite, quando nenhuns olhos pudessem interrogar os vossos olhos, orvalhados com lágrimas, quando nem uma voz pudesse desafiar a vossa voz, embargada pelos soluços? Compreendeis ao menos isto, Senhora Duquesa?

238 - A DUQUESA - Não, senhor. Que sou eu para vos merecer tão alta dedicação?

239 - ALCOFORADO - Que sois vós! Sei-o eu por ventura? Sois o objeto que me fere continuadamente os sentidos, a idéia que tenazmente me ocupa a alma, a imagem que veio sentar-se imperiosamente à minha cabeceira e dizer-me: "não terás olhos senão para mim", a voz que me brada a todo o instante: "não terás ouvidos senão para mim", o fantasma que me prende, que me enlaça, que me eleva nas asas da esperança, que me abate no abismo da desesperação e que me repete sempre e sempre: "morrerás por mim!". Tentei resistir a esta idéia, a esta imagem, a este fantasma; não o pude, que mais podia a fascinação do que a minha vontade. Evoquei o amor de família, as afeições que eu há pouco sentia ardentemente por meu pai, nobre velho cuja mão descansa sobre a minha cabeça como no bordão da sua velhice; por meu irmão, jovem esperançoso que vai no caminho da vida medindo os seus passos sobre os meus passos; por minha irmã, donzela extremosa que se apegou ao meu destino como hera ao muro mal construído que está prestes a desabar; e as minhas afeições foram mudas e os meus olhos cegos e os meu ouvidos surdos... Só essa imagem cintilava na minha vida como uma santa numa capela ardente, cercada de turíbulos e envolta em ondas de incenso. Deixei-me arrastar por ela. Cedi; perdi-me.

240 - A DUQUESA - Eu devia tê-lo adivinhado! (Resolutamente). Estais salvo, senhor; partireis para África.

241 - ALCOFORADO (Amargamente) - Não é essa a vossa vontade?

242 - A DUQUESA - Partireis, senhor; não escuteis uma palavra, não volteis a cabeça para trás. Parti amanhã, esta noite, agora mesmo, parti!... Embrenhai-vos pelos esquadrões dos inimigos sem temor da morte, que ela respeita os valentes; e, quando vos tornardes do vosso delírio, a santa que há-de cintilar no meio das vossas esperanças não será a imagem de uma mulher; será a glória e estareis salvo.

243 - ALCOFORADO - Partirei, Senhora Duquesa; mas juro-vos que me não hei-de esquecer. Terei eu tempo para isso? A minha vida pende de um fio, não sei qual: sei que há-de romper-se e que não tardará muito!

244 - A DUQUESA - Longe os maus agouros, Senhor Alcoforado; partireis cheio de vida e voltareis carregado de louros.

245 - ALCOFORADO - Que farei deles? A minha imagem, dizei vós, se terá apagado como um sonho ou como o fumo nos ares; meu pai terá desaparecido da face da terra, que os seus dias já não podem ser muitos; meus irmãos... Sei eu por ventura o que será deles durante a minha peregrinação?

246 - A DUQUESA - Pensareis então diversamente, Senhor Alcoforado. Eu, porém, vos não quero demorar; deveis partir precipitadamente se quereis partir.

247 - ALCOFORADO - Partirei amanhã, Senhora Duquesa.

248 - A DUQUESA - Talvez seja tarde!

249 - ALCOFORADO - Com bem ânsia me quereis longe de vós, senhora!

250 - A DUQUESA - Ouvi. Disse-me o senhor duque que vos prometesse o que me aprouvesse, que ele guardaria a minha palavra. O que quereis vós?

251 - ALCOFORADO - Nada, Senhora Duquesa.

252 - A DUQUESA - Nada! Refleti bem. O vosso arrependimento seria tardio, ou a demora vos poderia prejudicar. Que posto quereis no exército?

253 - ALCOFORADO - Nada, nada quero, e contudo... Senhora Duquesa, poderia eu pedir-vos mercê mais especial?

254 - A DUQUESA - Falai.

255 - ALCOFORADO - Julgais na vossa consciência que me deveis um serviço, não é assim?

256 - A DUQUESA - A vida, Senhor Alcoforado; e somos bem feliz em o poder confessar altamente.

257 - ALCOFORADO - Pois bem, um serviço feito a vós. Sois vós quem o deveis galardoar, não é verdade? E de feito, que tenho eu com o senhor duque?

258 - A DUQUESA - Concluí, senhor.

259 - ALCOFORADO - Dizei mais. O homem que arriscou a sua vida só por amor de vos salvar, e que não esperou pelo vosso agradecimento nem sequer por uma palavra vossa, que todavia ele quisera escutar, mesmo a troco de seu sangue, julgais que seja capaz de vos faltar com o acatamento que vos é devido?

260 - A DUQUESA - Não o cremos; mas...

261 - ALCOFORADO - Ainda uma palavra. E se não julgais que ele vos possa faltar ao decoro podereis julgar que ele queira abusar da vossa gratidão ou arriscar a vossa honra?

262 - A DUQUESA - Em a vossa consciência, Senhor Alcoforado, que vos temos por um mancebo lhano e cortês, incapaz de faltar com o respeito às donas, de as ofender por gestos ou ações, ou de sacrificar a sua honra a um capricho irrefletido. Concluí. Que vos podemos nós fazer que seja recompensa de favor tamanho?

263 - ALCOFORADO - É uma entrevista que vos peço.

264 - A DUQUESA - Uma entrevista!

265 - ALCOFORADO - Sim: uma hora, um instante em que eu vos possa, sem testemunha e sem temor de ser escutado, dizer-vos tudo quanto sinto, tudo quanto sofro, e partirei, esperançoso senão feliz, resignado senão contente. Será a última vez que nos veremos, Senhora Duquesa, a última, e não mais ouvireis falar de mim!

266 - A DUQUESA - E não estamos a sós?

267 - ALCOFORADO - Mas posso ser interrompido de momento a momento; e que o não pudesse! Quando o homem sofre como eu. sofro, é-lhe preciso morder com força os lábios entre os dentes para. não emitir um som... e ai dele! se deixa escapar um gemido, porque depois dos gemidos virão os gritos, e depois dos gritos a desesperação!... Concedei-me a entrevista, Senhora Duquesa; não ouvireis da minha boca uma só palavra que vos faça corar, nem um só gesto que vos possa ofender; eu vô-lo juro; é só para que vejais as lágrimas, que eu tenho, as dores que eu padeço, para que vos compadeçais de mim!... Oh! senhora, é de joelhos!...

268 - A DUQUESA - Levantai-vos, levantai-vos... Esta manhã quase que vos surpreenderam a meus pés. Meu Deus! Que terror que eu tenho!

269 - ALCOFORADO - Vede!... Dizeis que estamos a sós, e toda vos atemorizais por eu cair a vossos pés.

270 - A DUQUESA - Não seria isso imprudência?

271 - ALCOFORADO - Muito prudente sois vós, Senhora Duquesa! Quando o meu sangue corresse em ondas sobre o soalho da vossa habitação, fora prudência e até delicadeza, mandar limpá-lo bem depressa para que os vossos pés se não manchassem nele.

272 - A DUQUESA - Sois injusto!

273 - ALCOFORADO (Despeitoso) - Serei, senhora.

274 - A DUQUESA - Não percebeis vós que a prudência é para mim um dever?

275 - ALCOFORADO - E também para o homem; contudo, se eu só houvesse consultado a prudência, não teria há pouco arremessado o meu venábulo, porque em vez de vos salvar poderia errar o tiro e atravessar-vos com ele; se eu houvesse consultado a prudência, não me teria interposto entre vós e o javali, porque o javali poderia espedaçar-me; se eu houvesse consultado a prudência... oh! não me teria em corpo e alma dedicado a uma pessoa de alta nobreza, que eu sei que não tem amor senão aos seus títulos, que não tem olhos senão para as suas louçanias.

276 - A DUQUESA - Insensato, julgais que é o medo que me faz prudente e que é por atenção a mesquinhezas que vos não estendo a mão caroável e benfazeja quando vejo que sofreis e que careceis de mim!... Já pouco prudente tenho eu sido mostrando-vos por vezes que me não sois inteiramente indiferente... bem pouco prudente, Senhor Alcoforado! Porque um volver de olhos, um sinal mais expressivo, uma proteção decidida da minha parte vos abriria a sepultura mais depressa do que o podeis imaginar. D. Jaime é cioso; o seu orgulho tem olhos de lince, a sua cólera é terrível e a sua vingança é estrepitosa como o trovão e fulminante como o raio. Se a menor suspeita lhe atravessasse o espírito... faríeis bem em cair de joelhos e pedir a Deus perdão das vossas culpas.

277 - ALCOFORADO - Tempo foi na minha infância em que, acordando pelo meio da noite, sentia verdadeiro terror quando escutava no silêncio das trevas o estrídulo de alguma ave noturna; hoje, porém, os seus pios agoureiros rebentam-me por baixo dos pés e eu vos confesso que os escuto sem sobressalto nem terror.

278 - A DUQUESA - Dizem contudo que há às vezes nesse canto um anúncio de morte.

279 - ALCOFORADO - Seja embora; porém, a morte não aterra senão a quem não está afeito a lidar com os seus terrores: eu desde a infância que os experimento.

280 - A DUQUESA - Então, senhor, apesar de tudo.

281 - ALCOFORADO - Eu vô-lo suplico!

282 - A DUQUESA - Vereis que não sou medrosa. Paula vos transmitirá o que eu houver determinado; porém, lembrai-vos... lembrai-vos que à vossa honra me confio e que eu me escudarei com a vossa proteção. (Vai-se).

CENA IX

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283 - ALCOFORADO (Só) - Confia na tua inocência e na palavra de um homem honrado que daria a sua vida para te poupar um desgosto.

FIM DO SEGUNDO QUADRO E DO PRIMEIRO ATO