Era em Petropolis, no anno de 186.... Já se vê que a minha historia não data de longe. É tomada dos annaes contemporancos e dos costumes actuaes. Talvez algum dos leitores conheça até as personagens que vão figurar n’este pequeno quadro. Não será raro que, encontrando uma d’ellas amanhã, Azevedo, por exemplo, um dos meus leitores exclame:
— Ah! cá vi uma historia em que se fallou de ti. Não te tratou mal o autor. Mas a semelhança era tamanha, houve tão pouco cuidado em disfarçar a physionomia, que eu, á proporção que voltava a pagina, dizia comigo: É o Azevedo, não ha duvida.
Feliz Azevedo! Á hora em que começa essa narrativa é elle um marido feliz, inteiramente feliz. Casado de fresco, possuindo por mulher a mais formosa dama da sociedade, e a melhor alma que ainda se incarnou ao sol da America, dono de algumas propriedades bem situadas e perfeitamente rendosas, acatado, querido, descansado, tal é o nosso Azevedo, a quem por cumulo de ventura coroão os mais bellos vinte e seis annos.
Deu-lhe a fortuna um emprego suave: não fazer nada. Possue um diploma de bacharel em direito; mas esse diploma nunca lhe servio; existe guardado no fundo da lata classica em que o trouxe da faculdade de São Paulo. De quando em quando Azevedo faz uma visita ao diploma, aliás ganho legitimamente, mas é para não se ver mais senão d’ahi a longo tempo. Não é um diploma, é uma reliquia.
Quando Azevedo sahio da faculdade de São Paulo e voltou para a fazenda da provincia de Minas-Geraes, tinha um projecto: ir á Europa. No fim de alguns mezes o pai consentio na viagem, e Azevedo preparou-se para realisal-a. Chegou á côrte no proposito firme de tomar lugar no primeiro paquete que sahisse; mas nem tudo depende da vontade do homem. Azevedo foi a um baile antes de partir; ahi estava armada uma rede em que elle devia ser colhido. Que rede! Vinte annos, uma figura delicada, esbelta, franzina, uma d’essas figuras vaporosas que parecem desfazer-se ao primeiro raio do sol. Azevedo não foi senhor de si: apaixonou-se; d’ahi a um mez casou-se, e d’ahi a oito dias partio para Petropolis.
Que casa encerraria aquelle casal tão bello, tão amante e tão feliz? Não podia ser mais propria a casa escolhida; era um edificio leve, delgado, elegante, mais de recreio que de morada; um verdadeiro ninho para aquellas duas pombas fugitivas.
A nossa historia começa exactamente tres mezes depois da ida para Petropolis. Azevedo e a mulher amavão-se ainda como no primeiro dia. O amor tomava então uma força maior e nova; é que... devo dizêl-o, ó casaes de tres mezes? é que apontava no horizonte o primeiro filho. Tambem a terra e o céo se alegrão quando aponta no horizonte o primeiro raio do sol. A figura não vem aqui por simples ornato de estylo; é uma deducção logica: a mulher de Azevedo chamava-se Adelaide.
Era, pois, em Petropolis, n’uma tarde de Dezembro do anno de 186.... Azevedo e Adelaide estavão no jardim que ficava em frente da casa onde occultavão a sua felicidade. Azevedo lia alto; Adelaide ouvia-o ler, mas como se ouve um écho do coração, tanto a voz do marido e as palavras da obra correspondião ao sentimento interior da moça.
No fim de algum tempo Azevedo deteve-se e perguntou :
— Queres que paremos aqui?
— Como quizeres, disse Adelaide.
— É melhor, disse Azevedo fechando o livro. As cousas boas não se gozão de uma assentada. Guardemos um pouco para a noite. Demais, era já tempo que eu passasse do idyllio escripto para idyllio vivo. Deixa-me olhar para ti.
Adelaide olhou para elle e disse:
— Parece que começamos a lua de mel.
— Parece e é, accrescentou Azevedo; e se o casamento não fosse eternamente isto, o que poderia ser? A ligação de duas existencias para meditar discretamente na melhor maneira de comer o machiche e o repolho? Ora, pelo amor de Deos! Eu penso que o casamento deve ser um namoro eterno. Não pensas como eu?
— Sinto, disse Adelaide.
— Sentes, é quanto basta.
— Mas que as mulheres sintão é natural, os homens...
— Os homens, são homens.
— O que nas mulheres é sentimento, nos homens é pieguice; desde pequena me dizem isto.
— Enganão-te desde pequena, disse Azevedo rindo.
— Antes isso!
— É a verdade. E desconfia sempre dos que mais fallão, sejão homens ou mulheres. Tens perto um exemplo. A Emilia falla muito da sua isenção. Quantas vezes se casou? Até aqui duas, e está nos vinte e cinco annos. Era melhor calar-se mais e casar-se menos.
— Mas n’ella é brincadeira, disse Adelaide.
— Pois não. O que não é brincadeira é que os tres mezes do nosso casamento parecem-me tres minutos...
— Tres mezes! exclamou Adelaide.
— Como foge o tempo! disse Azevedo.
— Dirás sempre o mesmo? perguntou Adelaide com um gesto de incredulidade.
Azevedo abraçou-a e perguntou:
— Duvidas?
— Receio. É tão bom ser feliz!
— Sêl-o-has sempre e do mesmo modo. De outro não entendo eu.
N’este momento ouvírão os dous uma voz que partia da porta do jardim.
— O que é que não entendes? dizia essa voz.
Olhárão.
A porta de jardim estava um homem alto, bem parecido, trajando com elegancia, luvas côr de palha, chicotinho na mão.
Azevedo pareceu ao principio não conhecêl-o, Adelaide olhava para um e para outro sem comprehender nada. Tudo isto, porém, não passou de um minuto; no fim d’elle Azevedo exclamou:
— É o Tito! Entra, Tito!
Tito entrou galhardamente no jardim; abraçou Azevedo e fez um comprimento gracioso a Adelaide.
— É minha mulher, disse Azevedo apresentando Adelaide ao recem-chegado.
— Já o suspeitava, respondeu Tito; e aproveito a occasião para dar-te os meus parabens.
-— Recebeste a nossa carta de participação?
— Em Valparaiso.
— Anda sentar-te e conta-me a tua viagem.
— Isso é longo, disse Tito sentando-se. O que te posso contar é que desembarquei hontem no Rio, Tratei de indagar a tua morada. Disserão-me que estavas temporariamente em Petropolis. Descansei, mas logo hoje tomei a barca da Prainha e aqui estou. Eu já suspeitava que com o teu espirito de poeta irias esconder a tua felicidade em algum recanto do mundo. Com effeito, isto é verdadeiramente uma nesga do paraiso. Jardim, caramanchões, uma casa leve e elegante, um livro. Bravo! Maria de Dirceu... É completo! Tityræ, tu patolæ. Caio no meio de um idyllio. Pastorinha, onde está o cajado?
Adelaide ri ás gargalhadas.
Tito continúa:
— Ri mesmo como uma pastorinha alegre. E tu, Theocrito, que fazes? Deixas correr os dias como as aguas do Parahyba? Feliz creatura!
— Sempre o mesmo! disse Azevedo.
— O mesmo doudo? Acha que elle tem razão, minha senhora?
-— Acho, se o não offendo...
— Qual offender! Se eu até me honro com isso; sou um doudo inoffensivo, isso é verdade. Mas é que realmente são felizes como poucos. Ha quantos mezes se casárão?
— Tres mezes fazem domingo, respondeu Adelaide.
— Disse ha pouco que me parecião tres minutos, accrescentou Azevedo.
Tito olhou para ambos e disse sorrindo:
— Tres mezes, tres minutos! Eis toda a verdade da vida. Se os puzessem sobre uma grelha, como São Lourenço, cinco minutos erão cinco mezes. E ainda se falla em tempo! Ha lá tempo! O tempo está nas nossas impressões. Ha mezes para os infelizes e minutos para os venturosos!
— Mas que ventura! exclama Azevedo.
— Completa, não? Imaginação! Marido de um seraphim, nas graças e no coração, não reparei que estava aqui... mas não precisa corar!... D’isto me ha de ouvir vinte vezes por dia; o que penso, digo. Como não te hão de invejar os nossos amigos!
— Isso não sei.
— Pudera! Encafuado n’este desvão do mundo, de nada pódes saber. E fazes bem. Isto de ser feliz á vista de todos é repartir a felicidade. Ora, para respeitar o principio devo ir-me já embora...
Dizendo isto, Tito levantou-se.
— Deixa-te d’isso: fica comnosco.
— Os verdadeiros amigos tambem são a felicidade, disse Adelaide.
— Ah!
— É até bom que aprendas em nossa escola a sciencia do casamento, accrescentou Azevedo.
— Para que? perguntou Tito meneando o chicotinho.
— Para te casares.
— Hum!... fez Tito.
— Não pretende? perguntou Adelaide.
— Estás ainda o mesmo que em outro tempo?
— O mesmissimo, respondeu Tito.
Adelaide fez um gesto de curiosidade e perguntou:
— Tem horror ao casamento?
— Não tenho vocação, respondeu Tito. É puramente um caso de vocação. Quem a não tiver não se metta n’isso, que é perder o tempo e o socego. Desde muito tempo estou convencido d’isto.
— Ainda te não bateu a hora.
— Nem bate, disse Tito.
— Mas, se bem me lembro, disse Azevedo offerecendo-lhe um charuto, houve um dia em que fugiste ás theorias do costume: andavas então apaixonado...
— Apaixonado, é engano. Houve um dia em que a Providencia trouxe uma confirmação aos meus instinctos solitarios. Metti-me a pretender uma senhora...
— É verdade: foi um caso engraçado.
— Como foi o caso? perguntou Adelaide.
— O Tito vio em um baile uma rapariga. No dia seguinte apresenta-se em casa d’ella, e, sem mais nem menos, pede-lhe a mão. Ella responde... que te respondeu?
— Respondeu por escripto que eu era um tolo e me deixasse d’aquillo. Não disse positivamente tolo, mas vinha a dar na mesma. É preciso confessar que semelhante resposta não era propria. Voltei atrás e nunca mais amei.
— Mas amou n’aquella occasião? perguntou Adelaide.
— Não sei se era amor, respondeu Tito, era uma cousa... Mas note, isto foi ha uns bons cinco annos. D’ahi para cá ninguem mais me fez bater o coração.
— Peior para ti.
— Eu sei! disse Tito levantando os hombros. Se não tenho os gozos intimos do amor, não tenho nem os dissabores, nem os desenganos. É já uma grande fortuna!
— No verdadeiro amor não ha nada d’isso, disse sentenciosamente a mulher de Azevedo.
— Não ha? Deixemos o assumpto; eu podia fazer um discurso a proposito, mas prefiro...
— Ficar comnosco, Azevedo atalhou-o. Está sabido.
— Não tenho essa intenção.
— Mas tenho eu. Has de ficar.
— Mas se eu já mandei o criado tomar alojamento no hotel de Bragança....
— Pois manda contra-ordem. Fica comigo.
— Insisto em não perturbar a tua paz.
— Deixa-te d’isso.
— Fique! disse Adelaide.
— Ficarei.
— E amanhã, continuou Adelaide, depois de ter descansado, ha de nos dizer qual é o segredo da isenção de que tanto se ufana.
— Não ha segredo, disse Tito. O que ha é isto. Entre um amor que se offerece e... uma partida de voltarete, não hesito, atiro ao voltarete. A proposito, Ernesto, sabes que encontrei no Chile um famoso parceiro de voltarete? Fez a casca mais temeraria que tenho visto... sabe o que é uma casca, minha senhora?
— Não, respondeu Adelaide.
— Pois eu lhe explico.
Azevedo olhou para fóra e disse:
— Ahi chega a D. Emilia.
Com effeito á porta do jardim parava uma senhora dando braço a um velho de cincoenta annos.
D. Emilia era uma moça a que se póde chamar uma bella mulher; era alta na estatura e altiva de caracter. O amor que pudesse infundir seria por imposição. De suas maneiras e das suas graças inspirava um não sei que de rainha que dava vontade de leval-a a um throno.
Trajava com elegancia e simplicidade. Ella tinha essa elegancia natural que é outra elegancia diversa da elegancia dos enfeites, a proposito do qual já tive occasião de escrever esta maxima: « Que ha pessoas elegantes, e pessoas enfeitadas. »
Olhos negros e rasgados, cheios de luz e de grandeza, cabellos castanhos e abundantes, nariz recto como o de Sapho, boca vermelha e breve, faces de setim, collo e braços como os das estatuas, taes erão os traços da belleza de Emilia.
Quanto ao velho que lhe dava o braço, era, como disse, um homem de cincoenta annos. Era o que se chama em portuguez chão e rude, — um velho gaiteiro. Pintado, espartilhado, via-se nelle uma como que ruina do passado reconstruida por mãos modernas, de modo a ter esse aspecto bastardo que não é nem a austeridade da velhice, nem a frescura da mocidade. Não havia duvida de que o velho devia ter sido um bello rapaz em seus tempos; mas presentemente, se algumas conquistas tivesse feito, só podia contentar-se com a lembrança d’ellas.
Quando Emilia entrou no jardim todos se achavão de pé. A recem-chegada apertou a mão a Azevedo e foi beijar Adelaide. Ia sentar-se na cadeira que Azevedo lhe offerecêra quando reparou em Tito que se achava a um lado.
Os dous comprimentárão-se, mas com ar differente. Tito parecia tranquilo e friamente polido; mas Emilia, depois de comprimental-o, conservou os olhos fitos n’elle, como que avocando uma memoria do passado.
Feitas as apresentações necessarias, e a Diogo Franco (é o nome do velho braceiro), todos tomárão assentos.
A primeira que fallou foi Emilia:
— Ainda hoje não vinha se não fosse a obsequiosidade do Sr. Diogo.
Adelaide olhou para o velho e disse:
— O Sr. Diogo é uma maravilha.
Diogo impertigou-se e murmurou com certo tem de modestia:
— Nem tanto, nem tanto.
— É, é, disse Emilia. Não é talvez uma, porém duas maravilhas. Ah! sabes que me vai fazer um presente?
— Um presente! exclamou Azevedo.
— É verdade, continuou Emilia, um presente que mandou vir da Europa e lá dos confins; recordações das suas viagens de adolescente...
Diogo estava radiante.
— É uma insignificancia, disse elle olhando ternamente para Emilia.
— Mas o que é? perguntou Adelaide.
— É... adivinhem? É um urso branco!
— Um urso branco!
— Devéras?
— Está para chegar, mas só hontem é que me deu noticia d’elle. Que amavel lembrança!
— Um urso! exclamou ainda Azevedo.
Tito inclinou-se ao ouvido do amigo, e disse em voz baixa:
— Com elle fazem dous.
Diogo jubiloso pelo effeito que causava a noticia do presente, mas illudido no caracter d’esse effeito, disse:
— Não vale a pena. É um urso que eu mandei vir; é verdade que eu pedi dos mais bellos. Não sabem o que é um urso branco. Imaginem que é todo branco.
— Ah! disse Tito.
— É um animal admiravel! tornou Diogo.
— Acho que sim, disse Tito. Ora imagina tu o que não será um urso branco que é todo branco. Que faz este sujeito? perguntou elle em seguida a Azevedo.
— Namora a Emilia; tem cincoenta contos.
— E ella?
— Não faz caso delle.
— Diz ella?
— E é verdade.
Emquanto os dous trocavão estas palavras, Diogo brincava com os sinetes do relogio e as duas senhoras conversavão. Depois das ultimas palavras entre Azevedo e Tito, Emilia voltou-se para o marido de Adelaide e perguntou:
— Dá-se isto, Sr. Azevedo? Então faz-se annos n’esta casa e não me convidão?
— Mas a chuva? disse Adelaide.
— Ingrata! Bem sabes que não ha chuva em casos taes.
— Demais, accrescentou Azevedo, fez-se a festa tão á capucha.
— Fosse como fosse, eu sou de casa.
— É que a lua de mel continua apezar de cinco mezes, disse Tito.
— Ahi vens tu com os teus epigrammas, disse Azevedo.
— Ah! isso é máo, Sr. Tito!
— Tito? perguntou Emilia a Adelaide em voz baixa.
— Sim.
— D. Emilia não sabe ainda quem é o nosso amigo Tito, disse Azevedo. Eu até tenho medo de dizêl-o.
— Então é muito feio o que tem para dizer?
— Talvez, disse Tito com indifferença.
— Muito feio! exclamou Adelaide.
— O que é então? perguntou Emilia.
— É um homem incapaz de amar, continuou Adelaide. Não póde haver maior indifferença para o amor... Em resumo, prefere a um amor... o que? um voltarete.
— Disse-te isso? perguntou Emilia.
— E repito, disse Tito. Mas note bem, não por ellas, é por mim. Acredito que todas as mulheres sejão credoras da minha adoração; mas eu é que sou feito de modo que nada mais lhes posso conceder do que uma estima desinteressada.
Emilia olhou para o moço e disse:
— Se não é vaidade, é doença.
— Ha de me perdoar, mas eu creio que não é doença, nem vaidade. É natureza: uns aborrecem as laranjas, outros aborrecem os amores: agora se o aborrecimento vem por causa das cascas, não sei; o que é certo é que é assim.
— É ferino! disse Emilia olhando para Adelaide.
— Ferino, eu? disse Tito levantando-se. Sou uma seda, uma dama, um milagre de brandura... Dóe-me, devéras, que eu não possa estar na linha dos outros homens, e não seja, como todos, propenso a receber as impressões amorosas, mas que quer? a culpa não é minha.
— Anda lá, disse Azevedo, o tempo te ha de mudar.
— Mas quando? Tenho vinte e nove annos feito.
— Já vinte e nove? perguntou Emilia.
— Completei-os pela Pascoa.
— Não parece.
— São os seus bons olhos.
A conversa continuou por este modo, até que se annunciou o jantar. Emilia e Diogo tinhão jantado, ficárão apenas para fazer companhia ao casal Azevedo e a Tito, que declarou desde o principio estar cahindo de fome.
A conversa durante o jantar versou sobre causas indifferentes.
Quando se servia o café appareceu á porta um criado do hotel em que morava Diogo; trazia uma carta para este, com indicação no sobrescripto de que era urgente. Diogo recebeu a carta, leu-a e pareceu mudar de côr. Todavia continuou a tomar parte na conversa geral. Aquella circumstancia, porém, deu lugar a que Adelaide perguntasse a Emilia:
— Quando te deixará este eterno namorado?
— Eu sei cá! respondeu Emilia. Mas a final de contas, não é máo homem. Tem aquella mania de me dizer no fim de todas as semanas que nutre por mim uma ardente paixão.
— Emfim, se não passa de declaração semanal.
— Não passa. Tem a vantagem de ser um braceiro infallivel para a rua e um realejo menos máo dentro de casa. Já me contou umas cincoenta vezes as batalhas amorosas em que entrou. Todo o seu desejo é acompanhar-me a uma viagem á roda do globo. Quando me falla n’isto, se é á noite, e é quasi sempre à noite, mando vir o chá, excellente meio de aplacar-lhe os ardores amorosos. Gosta do chá que se pella. Gosta tanto como de mim! Mas aquella do urso branco? E se realmente mandou vir um urso?
— Aceita.
— Pois eu hei de sustentar um urso? Não me faltava mais nada!
Adelaide sorrio-se e disse:
— Quer me parecer que acabas por te apaixonar...
— Por quem? Pelo urso?
— Não, pelo Diogo.
N’este momento achavão-se as duas perto de uma janella. Tito conversava no sofá com Azevedo. Diogo reflectia profundamente estendido n’uma poltrona.
Emilia tinha os olhos em Tito. Depois de um silencio, disse ella para Adelaide:
— Que achas ao tal amigo do teu marido? Parece um presumido. Nunca se apaixonou! É crivel?
— Talvez seja verdade.
— Não acredito. Pareces criança! Diz aquillo dos dentes para fóra...
— É verdade que não tenho maior conhecimento d’elle...
— Quanto a mim, pareceu-me não ser estranha aquella cara... mas não me lembro!
— Parece ser sincero... mas dizer aquillo é já atrevimento.
— Está claro...
— De que te ris?
— Lembra-me um do mesmo genero que este, disse Emilia. Foi já ha tempos. Andava sempre a gabar-se da sua isenção. Dizia que todas as mulheres erão para elle vasos da China: admirava-as e nada mais. Coitado! Cahio em menos de um mez. Adelaide, vi-o beijar-me a ponta dos sapatos... depois do que desprezei-o.
— Que fizeste?
— Ah! não sei o que fiz. Santa Astucia foi quem operou o milagre. Vinguei o sexo e abati um orgulhoso.
— Bem feito.
— Não era menos do que este. Mas fallemos de cousas sérias... Recebi as folhas francezas de modas...
— Que ha de novo?
— Muita cousa. Amanhã t’as mandarei. Repara em um novo córte de mangas. É lindissimo. Já mandei encommendas para a côrte. Em artigos de passeios ha fartura e do melhor.
— Para mim quasi que é inutil mandar.
— Porque?
— Quasi nunca saio de casa.
— Nem ao menos irás jantar comigo no dia de anno bom?
— Oh! com toda a certeza!
— Pois vai... Ah! irá o homem? O Sr. Tito?
— Se estiver cá... e quizeres...
— Pois que vá, não faz mal... saberei contêl-o... Creio que não será sempre tão... incivil. Nem sei como pódes ficar com esse sangue-frio! A mim faz-me mal aos nervos!
— É-me indiferente.
— Mas a injuria ao sexo... não te indigna?
— Pouco.
— És feliz.
— Que queres que eu faça a um homem que diz aquillo? Se não fosse casada era possivel que me indignasse mais. Se fosse livre era provavel que lhe fizesse o que fizeste ao outro. Mas eu não posso cuidar d’essas cousas...
— Nem ouvindo a preferencia do voltarete? Pôr-nos abaixo da dama de copas! E o ar com que elle diz aquillo! Que calma, que indiferença!
— É máo! é máo!
— Merecia castigo...
— Merecia. Queres tu castigal-o?
Emilia fez um gesto de desdem e disse:
— Não vale a pena.
— Mas tu castigaste o outro.
— Sim... mas não vale a pena.
— Dissimulada!
— Porque dizes isso?
— Porque já te vejo meia tentada a uma nova vingança...
— Eu? Ora qual!
— Que tem? Não é crime...
— Não é, de certo; mas... veremos.
— Ah! serás capaz?
— Capaz? disse Emilia com um gesto de orgulho ofendido.
— Beijar-te-ha elle a ponta do sapato?
Emilia ficou silenciosa por alguns momentos; depois apontando com o leque para a botina que lhe calçava o pé, disse:
— E hão de ser estes.
Emilia e Adelaide se dirigirão para o lado em que se achavão os homens. Tito, que parecia conversar intimamente com Azevedo, interrompeu a conversa para dar attenção ás senhoras. Diogo continuava mergulhado na sua meditação.
— Então o que é isso, Sr. Diogo? perguntou Tito. Está meditando?
— Ah! perdão, estava distrahido!
— Coitado! disse Tito baixo a Azevedo.
Depois, voltando-se para as senhoras:
— Não as incommoda o charuto?
— Não senhor, disse Emilia.
— Então, posso continuar a fumar?
— Póde, disse Adelaide.
— É um máo vicio, mas é o meu unico vicio. Quando fumo parece que aspiro a eternidade. Enlevo-me todo e mudo de ser. Divina invenção!
— Dizem que é excellente para os desgostos amorosos, disse Emilia com intenção.
— Isso não sei. Mas não é só isto. Depois da invenção do fumo não ha solidão possivel. É a melhor companhia d’este mundo. Demais, o charuto é um verdadeiro Memento homo: convertendo-se pouco a pouco em cinzas, vai lembrando ao homem o fim real e infallivel de todas as cousas: é o aviso philosophico, é a sentença funebre que nos acompanha em toda a parte. Já é um grande progresso... Mas estou eu a aborrecer com uma dissertação tão pesada. Hão de desculpar... que foi descuido. Ora, a fallar a verdade, eu já vou desconfiando; Vossa Excellencia olha com olhos tão singulares...
Emilia, a quem era dirigida a palavra, respondeu:
— Não sei se são singulares, mas são os meus.
— Penso que não são os do costume. Está talvez Vossa Excellencia a dizer comsigo que eu sou um exquisito, um singular, um...
— Um vaidoso, é verdade.
— Setimo mandamento: não levantar falsos testemunhos.
— Falsos, diz o mandamento.
— Não me dirá em que sou eu vaidoso?
— Ah! a isso não respondo eu.
— Porque não quer?
— Porque... não sei. É uma cousa que se sente, mas que se não póde descobrir. Respira-lhe a vaidade em tudo: no olhar, na palavra, no gesto... mas não se atina com a verdadeira origem de tal doença.
— É pena. Eu tinha grande prazer em ouvir da sua boca o diagnostico da minha doença. Em compensação póde ouvir da minha o diagnostico da sua... A sua doença é... Digo?
— Póde dizer.
— É um despeitozinho.
— Devéras?
— Vamos ver isso, disse Azevedo rindo-se.
Tito continuou:
— Despeito pelo que eu disse ha pouco.
— Puro engano! disse Emilia rindo-se.
— É com toda a certeza. Mas é tudo gratuito. Eu não tenho culpa de cousa alguma. A natureza é que me fez assim.
— Só a natureza?
— E um tanto de estudo. Ora vou expôr-lhe as
minhas razões. Veja se posso amar ou pretender: primeiro, não sou bonito...
— Oh!... disse Emilia.
— Agradeço o protesto, mas continuo na mesma opinião: não sou bonito, não sou...
— Oh!... disse Adelaide.
— Segundo: não sou curioso, e o amor, se o reduzirmos ás suas verdadeiras porporções, não passa de uma curiosidade; terceiro: não sou paciente, e nas conquistas amorosas a paciencia é a principal virtude; quarto, finalmente: não sou idiota, porque, se com todos estes defeitos pretendesse amar, mostraria a maior falta de razão. Aqui está o que eu sou por natural e por industria.
— Emilia, parece que é sincero.
— Acreditas?
— Sincero como a verdade, disse Tito.
— Em ultimo caso, seja ou não seja sincero, que tenho eu com isso?
— Eu creio que nada, disse Tito.