Lisia poetica/Tomo 1º/Não ser eu aldeã

Não ser eu aldeã.
 

 

Ja não tem chefe proprio a Judea;
A fatal predicção foi cumprida :
Feudatária das águias de Roma.
Por monarcha estrangeiro é regida.

Os doctores da lei dormitavam
Juncto aos livros dos altos mysterios,
Dormitava na paz todo o mundo;
Nem lembrava o porvir dos imperios.

Era agreste o dezembro; alta a noute.
De Bethlem nas campinas escuras
Desabrocha na terra um sol vivo,
Desabrocham canções nas alturas.

Salve ó filho mimoso do Eterno!
Salve, ó mãe, toda amor e alegría!
Triplicado diadema de gloria
Sobre a tua humildade radia.

Ante o berço do Deus humano,
Nós, os vates, em côro ajoelhemos;
E, ao compasso das harpas dos anjos,
Nossas lyras mortaes dedelhemos.

Gloria e paz, paz e gloria, repetem
Nos céus anjos, no ar campanarios:
Nas cidades e aldeias, mil templos:
Pelos montes os bons solitarios.

Tosco adufe entre mãos pegureiras
Vem guiando singela folia;
Tamboris, castanhêtas retinem:
Em folguédos desata-se o dia.

Não ser eu aldea... que me fora,
Co tum-tum folgazão do pandeiro,
Por outeiros, e valles saltando,
Galhardias primar ao gaiteiro!

Lá c'o as moças louças, e os mancebos,
Em vistoso arrayal descantára
Villancetes a quem, nas palhinhas,
Os poderes do inferno quebrára.

Mas não sou aldea; sou captiva
Das cidades na atroz solidão;
Cantae vós, fortunosas, aos éccos;
Eu só canto no meu coração.

Lisboa 25 de Dezembro de 1845.

Maria José da Silva Canuto.