Na verdade, era pena que uma moça tão prendada de qualidades morais e físicas, como a filha do desembargador, nenhum sentimento inspirasse ao Bacharel Aguiar. Mas não a lastime a leitora, porque o Bacharel Aguiar nada dizia ao coração de Serafina, apesar dos seus talentos, da rara elegância das suas maneiras, de todos quantos dotes costumam adornar um herói de romance.
E não é romance isto, senão história verídica e real, pelo que, vai esta narrativa com as exíguas proporções de uma notícia, sem enfeites de estilo nem recheio de reflexões. O caso conto como o caso foi.
Sabido que os dois se não amavam nem pendiam para lá, convém saber mais que o gosto, o plano e não sei se também o interesse dos pais é que eles se amassem e casassem. Os pais punham uma coisa, e Deus dispunha outra. O comendador Aguiar, pai do bacharel, insistia ainda mais no casamento, pelo desejo que tinha de o meter na política, o que lhe parecia fácil desde que o filho se tornasse genro do desembargador, membro ativíssimo de um dos partidos e por agora deputado à Assembléia Geral.
O desembargador pela sua parte achava que lhe não fazia mal nenhum a filha participar da pingue herança que devia receber o filho do comendador, por morte deste.
Pena era que os dois jovens, esperanças de seus pais, derrubassem todos estes planos olhando um para o outro com a máxima indiferença. As famílias visitavam-se freqüentemente, as reuniões e as festas sucediam-se, mas nem Aguiar nem Serafina pareciam dar um passo para o outro. Tão grave caso exigia pronto remédio, e foi o comendador quem tomou a resolução de lho dar sondando o espírito do bacharel.
— João, disse o velho pai certa noite de domingo, depois do chá, achando-se com o filho a sós no gabinete: Acaso nunca pensaste em ser homem político?
— Oh! nunca! respondeu o bacharel espantado com a pergunta. Por que razão pensaria eu na política?
— Pela mesma razão porque outros pensam...
— Mas eu não tenho vocação.
— A vocação faz-se.
João sorriu.
O pai continuou.
— Não te faço esta pergunta à toa. Já houve quem me perguntasse a mesma coisa a teu respeito, eu não tive que responder porque a falar verdade as razões que me davam eram de peso.
— Quais eram?
— Diziam-me que tu andavas em colóquios e conferências com o desembargador.
— Eu? Mas naturalmente converso com ele; é pessoa da nossa amizade.
— Foi o que eu disse. A pessoa pareceu convencer-se da razão que eu lhe dava, e então imaginou outra coisa...
O bacharel arregalou os olhos à espera de ouvir outra coisa, enquanto o comendador acendia um charuto.
— Imaginou então, continuou o comendador puxando uma fumaça, que tu andavas... quero dizer... que pretendias... em suma, um namoro!
— Um namoro!
— É verdade.
— Com o desembargador?
— Velhaco! com a filha.
João Aguiar deu uma gargalhada. O pai pareceu rir também, mas reparando bem não era um riso, era uma careta.
Depois de um silêncio:
— Mas não vejo que houvesse alguma coisa de admirar, disse o comendador; tem-se visto namorar muito rapaz e muita moça. Tu estás na idade do casamento, ela também; nossas famílias visitam-se com freqüência; vocês falam-se com intimidade. Que admira que um estranho supusesse alguma coisa?
— Tem razão; mas não é verdade.
— Pois tanto melhor... ou tanto pior.
— Pior?
— Maganão! disse o velho pai afetando um ar galhofeiro, parece-te que a moça é algum peixe podre? Pela minha parte, entre as moças com que temos relações de família, nenhuma acho que se lhe compare.
— Oh!
— Oh! quê!
— Protesto.
— Protestas? Achas então que ela...
— Acho que é muito formosa e prendada, mas não acho que seja a mais formosa e prendada de todas as que conhecemos...
— Mostra-me alguma...
— Ora, há tantas!
— Mostra-me uma.
— A Cecília por exemplo, a Cecília Rodrigues, para o meu gosto é muito mais bonita que a filha do desembargador.
— Não digas isso; uma lambisgóia!
— Meu pai! disse João Aguiar com um tom de ressentimento que fez pasmar o comendador.
— Que é? perguntou este.
João Aguiar não respondeu. O comendador arrugou a testa e interrogou o rosto mudo do filho. Não leu, mas adivinhou alguma coisa desastrosa; — desastrosa, entenda-se, para os seus cálculos cônjugo-políticos ou político-conjugais, como melhor nome haja.
— Dar-se-á caso que... começou a dizer o comendador.
— Que eu a namore? interrompeu galhofeiramente o filho.
— Não era isso o que te ia perguntar, acudiu o comendador (que aliás não ia perguntar outra coisa), mas visto que tocaste nesse ponto, não era mau que me dissesses...
— A verdade?
— A singela verdade.
— Gosto dela, ela gosta de mim, e aproveito esta ocasião meu pai, para...
— Para nada, João!
O bacharel fez um gesto de espanto.
— Casar, não é? perguntou o comendador. Mas tu não vês a impossibilidade de semelhante coisa? Impossível, não digo que seja; tudo pode acontecer neste mundo, se a natureza o pede. Mas a sociedade tem suas leis que não devemos violar, e segundo elas esse casamento é impossível.
— Impossível!
— Tu levas-lhe em dote os meus bens, a tua carta de bacharel e um princípio de carreira. Que te traz ela? Nem sequer essa beleza que só tu lhe vês. Demais, e isto é o importante, não se dizem boas coisas daquela família.
— Calúnias!
— Pode ser, mas calúnias que correm e se acreditam; e visto que tu não podes fazer na véspera do casamento um manifesto aos povos desmentindo o que se diz e provando que nada é verdade, segue-se que as calúnias triunfarão.
Era a primeira vez que o bacharel conversava com o pai a respeito daquele grave ponto do seu coração. Aturdido com as objeções dele, não achou logo que responder e todo se limitou a interrompê-lo com um ou outro monossílabo. O comendador continuou no mesmo tom e concluiu dizendo que esperava dele não lhe desse um grave desgosto no fim da vida.
— Por que te não levou a fantasia à filha do desembargador ou outra nas mesmas condições? A Cecília, não, nunca será minha nora. Pode casar contigo, é verdade, mas então não serás meu filho.
João Aguiar não achou que responder ao pai. Ainda que achasse, não o poderia fazer porque quando deu acordo de si ele estava longe.
O bacharel foi para o seu quarto.