O tio de Soares chamava-se o Major Luiz da Cunha Villela, e era com effeito um homem já velho e adoentado. Comtudo não se podia dizer que morreria cedo. O Major Villela observava um rigoroso regimen que lhe ia entretendo a vida. Tinha uns bons sessenta anos. Era um velho alegre e severo ao mesmo tempo. Gostava de rir, mas era implacavel com os máos costumes. Constitucional por necessidade, era no fundo de sua alma absolutista. Chorava pela sociedade antiga; criticava constantemente a nova. Emfim foi o ultimo homem que abandonou a cabelleira de rabicho.
Vivia o Major Villela em Catumby, acompanhado de sua sobrinha Adelaide, e mais uma velha parenta. A sua vida era patriarcal. Importando-se pouco ou nada com o que ia por fóra, o major entregava-se todo ao cuidado de sua casa, aonde poucos amigos e algumas familias da vizinhança o ião ver, e passar as noites com elle. O major conservava sempre a mesma alegria, ainda nas occasiões em que o rheumatismo o prostrava. Os rheumaticos difficilmente acreditaráõ n’isto; mas eu posso affirmar que era verdade.
Foi n’um dia de manhã, felizmente um dia em que o major não sentia o menor achaque, e ria e brincava com as duas parentas, que Soares appareceu em Catumby á porta do tio.
Quando o major recebeu o cartão com o nome do sobrinho, suppôz que era alguma coçoada. Podia contar com todos em casa, menos o sobrinho. Fazião já dous annos que o não via, e entre a ultima e a penultima vez tinha mediado anno e meio. Mas o moleque disse-lhe tão seriamente que o nhonhô Luiz estava na sala de espera, que o velho acabou por acreditar.
— Que te parece, Adelaide?
A moça não respondeu.
O velho foi á sala de visitas.
Soares tinha pensado no meio de apparecer ao tio. Ajoelhar-se era dramatico de mais; cahir-lhe nos braços exigia certo impulso intimo que elle não tinha; além de que, Soares vexava-se de ter ou fingir uma commoção. Lembrou-se de começar uma conversação alheia ao fim que o levava lá, e acabar por confessar-se disposto a arrepiar carreira. Mas este meio tinha o inconveniente de fazer preceder a reconciliação por um sermão, que o rapaz dispensava. Ainda não se resolvêra a aceitar um dos muitos meios que lhe vierão á idéa, quando o major appareceu á porta da sala.
O major parou á porta sem dizer palavra e lançou sobre o sobrinho um olhar severo e interrogador.
Soares hesitou um instante; mas como a situação podia prolongar-se sem beneficio seu, o rapaz seguio um movimento natural: foi ao tio e estendeu-lhe a mão.
— Meu tio, disse elle, não precisa dizer mais nada; o seu olhar diz-me tudo. Fui peccador e arrependo-me. Aqui estou.
O major estendeu-lhe a mão, que o rapaz beijou com o respeito de que era susceptivel.
Depois encaminhou-se para uma cadeira e sentou-se; o rapaz ficou de pé.
— Se o teu arrependimento é sincero, abro-te a minha porta e o meu coração. Se não é sincero pódes ir embora; ha muito tempo que não frequento a casa da opera: não gosto de comediantes.
Soares protestou que era sincero. Disse que fôra dissipado e doudo, mas que aos trinta annos era justo ter juizo. Reconhecia agora que o tio sempre tivera razão. Suppôz ao principio que erão simples rabugices de velho, e mais nada; mas não era natural esta leviandade n’um rapaz educado no vicio? Felizmente corrigia-se a tempo. O que elle agora queria era entrar em bom viver, e começava por aceitar um emprego publico que o obrigasse a trabalhar e fazer-se serio. Tratava-se de ganhar uma posição.
Ouvindo o discurso de que fiz o extracto acima, o major procurava adivinhar o fundo do pensamento de Soares. Seria elle sincero? O velho concluio que o sobrinho fallava com a alma nas mãos. A sua illusão chegou ao ponto de ver-lhe uma lagrima nos olhos, lagrima que não appareceu, nem mesmo fingida.
Quando Soares acabou, o major estendeu-lhe a mão e apertou a que o rapaz lhe estendeu tambem.
— Creio, Luiz. Ainda bem que te arrependeste a tempo. Isso que vivias não era vida nem morte; a vida é mais digna e a morte mais tranquilla do que a existencia que malbarataste. Entras agora em casa como um filho prodigo. Terás o melhor lugar á mesa. Esta familia é a mesma familia.
O major continuou por este tom; Soares ouvio a pé quedo o discurso do tio. Dizia comsigo que era a amostra da pena que ia soffrer, e um grande desconto dos seus pecados.
O major acabou levando o rapaz para dentro, onde os esperava o almoço.
Na sala de jantar estavão Adelaide e a velha parenta. A Sra. Antonia de Moura Villela recebeu Soares com grandes exclamações que envergonhárão sinceramente o rapaz. Quanto a Adelaide, apenas o comprimentou sem olhar para elle; Soares retribuio o comprimento.
O major reparou na frieza; mas parece que sabia alguma cousa, porque apenas deu uma risadinha amarella, cousa que lhe era peculiar.
Sentárão-se á mesa, e o almoço correu entre as pilherias do major, as recriminações da Sra. Antonia, as explicações do rapaz e o silêncio de Adelaide. Quando o almoço acabou, o major disse ao sobrinho que fumasse, concessão enorme que o rapaz a custo aceitou. As duas senhoras sahírão; ficárão os dous á mesa.
— Estás então disposto a trabalhar?
— Estou, meu tio.
— Bem; vou ver se te arranjo um emprego. Que emprego preferes?
— O que quizer, meu tio, comtanto que eu trabalhe.
— Bem. Levarás amanhã, uma carta minha a um dos ministros. Deos queira que possas obter o emprego sem difficuldade. Quero ver-te trabalhador e serio; quero ver-te homem. As dissipações não produzem nada, a não serem dividas e desgostos... Tens dividas?
— Nenhuma, respondeu Soares.
Soares mentia. Tinha uma dívida de alfaiate, relativamente pequena; queria pagal-a sem que o tio soubesse.
No dia seguinte o major escreveu a carta promettida, que o sobrinho levou ao ministro; e tão feliz foi, que d’ahi a um mez estava empregado em uma secretaria com um bom ordenado.
Cumpre fazer justiça ao rapaz. O sacrificio que fez de transformar os seus habitos da vida foi enorme, e a julgal-o pelos seus antecedentes, ninguem o julgára capaz de tal. Mas o desejo de perpetuar uma vida de dissipação póde explicar a mudança e o sacrificio. Aquillo na existencia de Soares não passava de um parenthesis mais ou menos extenso. Almejava por fechal-o e continuar o periodo como havia começado, isto é, vivendo com Aspasia e pagodeando com Alcibiades.
O tio não desconfiava de nada; mas temia que o rapaz fosse novamente tentado á fuga, ou porque o seduzisse a lembrança das dissipações antigas, ou porque o aborrecesse a monotonia e a fadiga do trabalho. Com o fim de impedir o desastre, lembrou-se de inspirar-lhe ambição politica. Pensava o major que a politica seria um remédio decisivo para aquelle doente, como se não fosse conhecido que os louros de Lovelace e os de Turgot andão muita vez na mesma cabeça.
Soares não desanimou o major. Disse que era natural acabar a sua existencia na politica, e chegou a dizer que algumas vezes sonhára com uma cadeira no parlamento.
— Pois eu verei se te posso arranjar isto, respondeu o tio. O que é preciso é que estudes a sciencia da politica, a historia do nosso parlamento e do nosso governo; e principalmente é preciso que continues a ser o que és hoje: um rapaz serio.
Se bem o dizia o major, melhor o fazia Soares, que desde então metteu-se com os livros e lia com afinco as discussões das camaras.
Soares não morava com o tio, mas passava lá todo o tempo que lhe sobrava do trabalho, e voltava para casa depois do chá, que era patriarcal, e bem differente das ceiatas do antigo tempo.
Não affirmo que entre as duas phases da existencia de Luís Soares não houvesse algum elo de união, e que o emigrante das terras de Gnido não fizesse de quando em quando alguma excursão á patria. Em todo o caso essas excursões erão tão secretas que ninguem sabia d’ellas, nem talvez os habitantes das referidas terras, com excepção dos poucos escolhidos para receberem o expatriado. O caso era singular, porque n’aquelle paiz não se reconhece o cidadão naturalisado estrangeiro, ao contrario da Inglaterra, que não dá aos subditos da rainha o direito de escolherem outra patria.
Soares encontrava-se de quando em quando com Pires. O confidente do convertido manifestava a sua amizade antiga offerecendo-lhe um charuto de Havana e contando-lhe algumas boas fortunas havidas nas campanhas do amor, em que o alarve suppunha ser consummado general.
Havia já cinco mezes que o sobrinho do major Villela se achava empregado, e ainda os chefes da repartição não tinhão tido um só motivo de queixa contra elle. A dedicação era digna de melhor causa. Exteriormente via-se em Luiz Soares um monge; raspando-se um pouco achava-se o diabo.
Ora, o diabo vio de longe uma conquista...