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Trocar o dia pela noite, dizia Luiz Soares, é restaurar o imperio da natureza corrigindo a obra da sociedade. O calor do sol está dizendo aos homens que vão descansar e dormir, ao passo que a frescura relativa da noite é a verdadeira estação em que se deve viver. Livre em todas as minhas acções, não quero sujeitar-me á lei absurda que a sociedade me impõe: velarei de noite, dormirei de dia.

Contrariamente a varios ministerios, Soares cumpria este programma com um escrupulo digno de uma grande consciencia. A aurora para elle era o crepusculo, o crepusculo era a aurora. Dormia doze horas consecutivas durante o dia, quer dizer das seis da manhã ás seis da tarde. Almoçava ás sete e jantava ás duas da madrugada. Não ceiava. A sua ceia limitava-se a uma chicara de chocolate que o criado lhe dava ás cinco horas da manhã quando elle entrava para casa. Soares engulia o chocolate, fumava dous charutos, fazia alguns trocadilhos com o criado, lia uma pagina de algum romance, e deitava-se.

Não lia jornaes. Achava que um jornal era a cousa mais inutil d’este mundo, depois da camara dos deputados, das obras dos poetas e das missas. Não quer isto dizer que Soares fosse athêo em religião, politica e poesia. Não. Soares era apenas indifferente. Olhava para todas as grandes cousas com a mesma cara com que via uma mulher feia. Podia vir a ser um grande perverso; até então era apenas uma grande inutilidade.

Graças a uma boa fortuna que lhe deixára o pai, Soares podia gozar a vida que levava, esquivando-se a todo o genero de trabalho e entregue sómente aos instinctos da sua natureza e aos caprichos do seu coração. Coração é talvez de mais. Era duvidoso que Soares o tivesse. Elle mesmo o dizia. Quando alguma dama lhe pedia que elle a amasse, Soares respondia:

— Minha rica pequena, eu nasci com a grande vantagem de não ter cousa nenhuma dentro do peito nem dentro da cabeça. Isso que chamão juizo e sentimento são para mim verdadeiros mysterios. Não os compreendo porque os não sinto.

Soares accrescentava que a fortuna suplantára a natureza deitando-lhe no berço em que nasceu uma boa somma de contos de réis. Mas esquecia que a fortuna, apezar de generosa, é exigente, e quer da parte dos seus afilhados algum esforço proprio. A fortuna não é Danaide. Quando vê que um tonel esgota a agua que se lhe põe dentro vai levar os seus cantaros a outra parte. Soares não pensava n’isto. Cuidava que os seus bens erão renascentes como as cabeças da hydra antiga. Gastava ás mãos largas; e os contos de réis, tão difficilmente accumulados por seu pai, escapavão-se-lhe das mãos como passaros sequiosos por gozarem do ar livre.

Achou-se, portanto, pobre quando menos o esperava. Um dia de manhã, quer dizer ás ave-marias, os olhos de Soares vírão escriptas as palavras fatidicas do festim babylonico. Era uma carta que o criado lhe entregára dizendo que o banqueiro de Soares a havia deixado á meia-noite. O criado falava como o amo vivia: ao meio-dia chamava meia-noite.

— Já te disse, respondeu Soares, que eu só recebo cartas dos meus amigos, ou então...

— De alguma rapariga, bem sei. É por isso que lhe não tenho dado as cartas que o banqueiro tem trazido ha um mez. Hoje, porém, o homem disse que era indispensavel que lhe eu désse esta.

Soares sentou-se na cama, e perguntou ao criado meio alegre e meio zangado:

— Então tu és criado dele ou meu?

— Meu amo, o banqueiro disse que se trata de um grande perigo.

— Que perigo?

— Não sei.

— Deixa ver a carta.

O criado entregou-lhe a carta.

Soares abrio-a e leu-a duas vezes. Dizia a carta que o rapaz não possuía mais que seis contos de réis. Para Soares seis contos de réis erão menos que seis vintens.

Pela primeira vez na sua vida Soares sentio uma grande commoção. A idéa de não ter dinheiro nunca lhe havia acudido ao espirito; não imaginava que um dia se achasse na posição de qualquer outro homem que precisava de trabalhar.

Almoçou sem vontade e sahio. Foi ao Alcazar. Os amigos achárão-o triste; perguntárão-lhe se era alguma mágoa de amor. Soares respondeu que estava doente. As Lais da localidade achárão que era de bom gosto ficarem tristes também. A consternação foi geral.

Um dos seus amigos, José Pires, propôz um passeio a Botafogo para distrahir as melancolias de Soares. O rapaz aceitou. Mas o passeio a Botafogo era tão commum que não podia distrahil-o. Lembrárão-se de ir ao Corcovado, idéa que foi aceita e executada immediatamente.

Mas que ha hi que possa distrahir um rapaz nas condições de Soares? A viagem ao Corcovado apenas lhe produzio uma grande fadiga, aliás útil, porque, na volta, dormio o rapaz a somno solto.

Quando acordou mandou dizer ao Pires que viesse fallar-lhe immediatamente. D’ahi a uma hora parava um carro á porta: era o Pires que chegava, mas acompanhado de uma rapariga morena que respondia ao nome de Victoria. Entrárão os dous pela sala de Soares com a franqueza e o estrepito naturaes entre pessoas de familia.

— Não está doente? perguntou Victoria ao dono da casa.

— Não, respondeu este; mas por que veio você?

— É boa! disse José Pires; veio porque é a minha chicara inseparavel... Querias fallar-me em particular?

— Queria.

— Pois fallemos ahi em qualquer canto; Victoria fica na sala vendo os albuns.

— Nada, interrompeu a moça; nesse caso vou-me embora. É melhor; só imponho uma condição: é que ambos hão de ir depois lá para casa; temos ceiata.

— Valeu! disse Pires.

Victoria sahio; os dous rapazes ficárão sós.

Pires era o typo do bisbilhoteiro e leviano. Em lhe cheirando novidade preparava-se para instruir-se de tudo. Lisonjeava-o a confiança de Soares, e adivinhava que o rapaz ia communicar-lhe alguma cousa importante. Para isso assumio um ar condigno com a situação. Sentou-se commodamente em uma cadeira de braços; pôz o castão da bengala na boca e começou o ataque com estas palavras:

— Estamos sós; que me queres?

Soares confiou-lhe tudo; leu-lhe a carta do banqueiro; mostrou-lhe em toda a nudez a sua miseria. Disse-lhe que n’aquella situação não via solução possivel, e confessou ingenuamente que a idéa do suicidio o havia alimentado durante longas horas.

— Um suicidio! exclamou Pires; estás doudo.

— Doudo! respondeu Soares; entretanto não vejo outra sahida n’este becco. Demais, é apenas meio suicidio, porque a pobreza já é meia morte.

— Convenho que a pobreza não é cousa agradavel, e até acho...

Pires interrompeu-se; uma idéa subita atravessára-lhe o espirito: a idéa de que Soares acabasse a conferencia por pedir-lhe dinheiro. Pires tinha um preceito na sua vida; era não emprestar dinheiro aos amigos. Não se empresta sangue, dizia elle.

Soares não reparou na phrase cortada do amigo, e disse:

— Viver pobre depois de ter sido rico... é impossivel.

— N’esse caso que me queres tu? perguntou Pires, a quem pareceu que era bom atacar o touro de frente.

— Um conselho.

— Inutil conselho, pois que já tens uma idéa fixa.

— Talvez. Entretanto confesso que não se deixa a vida com facilidade, e má ou boa, sempre custa morrer. Por outro lado, ostentar a minha miseria diante das pessoas que me vírão rico é uma humilhação que eu não aceito. Que farias tu no meu lugar?

— Homem, respondeu Pires, ha muitos meios...

— Venha um.

— Primeiro meio. Vai para New-York e procura uma fortuna.

— Não me convem; n’esse caso fico no Rio de Janeiro.

— Segundo meio. Arranja um casamento rico.

— É bom de dizer. Onde está esse casamento?

— Procura. Não tens uma prima que gosta de ti?

— Creio que já não gosta; e demais não é rica; tem apenas trinta contos; despesa de um anno.

— É um bom principio de vida.

— Nada; outro meio.

— Terceiro meio, e o melhor. Vai á casa de teu tio, angaria-lhe a estima, dize que estás arrependido da vida passada, aceita um emprego, emfim vê se te constitues seu herdeiro universal.

Soares não respondeu; a idéa pareceu-lhe boa.

— Aposto que te agrada o terceiro meio? perguntou Pires rindo.

— Não é máo. Aceito; e bem sei que é difficil e demorado; mas eu não tenho muitos á escolha.

— Ainda bem, disse Pires levantando-se. Agora o que se quer é algum juizo. Ha de custar-te o sacrificio, mas lembra-te que é o meio unico de teres dentro de pouco tempo uma fortuna. Teu tio é um homem achacado de molestias; qualquer dia bate a bota. Aproveita o tempo. E agora vamos á ceia da Victoria.

— Não vou, disse Soares; quero acostumar-me desde já a viver vida nova.

— Bem; adeos.

— Olha; confiei-te isto a ti só; guarda-me segredo.

— Sou um tumulo, respondeu Pires descendo a ascada.

Mas no dia seguinte já os rapazes e raparigas sabião que Soares ia fazer-se anachoreta... por não ter dinheiro nenhum. O proprio Soares reconheceu isto no rosto dos amigos. Todos parecião dizer-lhe: É pena! que pandego vamos nós perder!

Pires nunca mais o visitou.


O tio de Soares chamava-se o Major Luiz da Cunha Villela, e era com effeito um homem já velho e adoentado. Comtudo não se podia dizer que morreria cedo. O Major Villela observava um rigoroso regimen que lhe ia entretendo a vida. Tinha uns bons sessenta anos. Era um velho alegre e severo ao mesmo tempo. Gostava de rir, mas era implacavel com os máos costumes. Constitucional por necessidade, era no fundo de sua alma absolutista. Chorava pela sociedade antiga; criticava constantemente a nova. Emfim foi o ultimo homem que abandonou a cabelleira de rabicho.

Vivia o Major Villela em Catumby, acompanhado de sua sobrinha Adelaide, e mais uma velha parenta. A sua vida era patriarcal. Importando-se pouco ou nada com o que ia por fóra, o major entregava-se todo ao cuidado de sua casa, aonde poucos amigos e algumas familias da vizinhança o ião ver, e passar as noites com elle. O major conservava sempre a mesma alegria, ainda nas occasiões em que o rheumatismo o prostrava. Os rheumaticos difficilmente acreditaráõ n’isto; mas eu posso affirmar que era verdade.

Foi n’um dia de manhã, felizmente um dia em que o major não sentia o menor achaque, e ria e brincava com as duas parentas, que Soares appareceu em Catumby á porta do tio.

Quando o major recebeu o cartão com o nome do sobrinho, suppôz que era alguma coçoada. Podia contar com todos em casa, menos o sobrinho. Fazião já dous annos que o não via, e entre a ultima e a penultima vez tinha mediado anno e meio. Mas o moleque disse-lhe tão seriamente que o nhonhô Luiz estava na sala de espera, que o velho acabou por acreditar.

— Que te parece, Adelaide?

A moça não respondeu.

O velho foi á sala de visitas.

Soares tinha pensado no meio de apparecer ao tio. Ajoelhar-se era dramatico de mais; cahir-lhe nos braços exigia certo impulso intimo que elle não tinha; além de que, Soares vexava-se de ter ou fingir uma commoção. Lembrou-se de começar uma conversação alheia ao fim que o levava lá, e acabar por confessar-se disposto a arrepiar carreira. Mas este meio tinha o inconveniente de fazer preceder a reconciliação por um sermão, que o rapaz dispensava. Ainda não se resolvêra a aceitar um dos muitos meios que lhe vierão á idéa, quando o major appareceu á porta da sala.

O major parou á porta sem dizer palavra e lançou sobre o sobrinho um olhar severo e interrogador.

Soares hesitou um instante; mas como a situação podia prolongar-se sem beneficio seu, o rapaz seguio um movimento natural: foi ao tio e estendeu-lhe a mão.

— Meu tio, disse elle, não precisa dizer mais nada; o seu olhar diz-me tudo. Fui peccador e arrependo-me. Aqui estou.

O major estendeu-lhe a mão, que o rapaz beijou com o respeito de que era susceptivel.

Depois encaminhou-se para uma cadeira e sentou-se; o rapaz ficou de pé.

— Se o teu arrependimento é sincero, abro-te a minha porta e o meu coração. Se não é sincero pódes ir embora; ha muito tempo que não frequento a casa da opera: não gosto de comediantes.

Soares protestou que era sincero. Disse que fôra dissipado e doudo, mas que aos trinta annos era justo ter juizo. Reconhecia agora que o tio sempre tivera razão. Suppôz ao principio que erão simples rabugices de velho, e mais nada; mas não era natural esta leviandade n’um rapaz educado no vicio? Felizmente corrigia-se a tempo. O que elle agora queria era entrar em bom viver, e começava por aceitar um emprego publico que o obrigasse a trabalhar e fazer-se serio. Tratava-se de ganhar uma posição.

Ouvindo o discurso de que fiz o extracto acima, o major procurava adivinhar o fundo do pensamento de Soares. Seria elle sincero? O velho concluio que o sobrinho fallava com a alma nas mãos. A sua illusão chegou ao ponto de ver-lhe uma lagrima nos olhos, lagrima que não appareceu, nem mesmo fingida.

Quando Soares acabou, o major estendeu-lhe a mão e apertou a que o rapaz lhe estendeu tambem.

— Creio, Luiz. Ainda bem que te arrependeste a tempo. Isso que vivias não era vida nem morte; a vida é mais digna e a morte mais tranquilla do que a existencia que malbarataste. Entras agora em casa como um filho prodigo. Terás o melhor lugar á mesa. Esta familia é a mesma familia.

O major continuou por este tom; Soares ouvio a pé quedo o discurso do tio. Dizia comsigo que era a amostra da pena que ia soffrer, e um grande desconto dos seus pecados.

O major acabou levando o rapaz para dentro, onde os esperava o almoço.

Na sala de jantar estavão Adelaide e a velha parenta. A Sra. Antonia de Moura Villela recebeu Soares com grandes exclamações que envergonhárão sinceramente o rapaz. Quanto a Adelaide, apenas o comprimentou sem olhar para elle; Soares retribuio o comprimento.

O major reparou na frieza; mas parece que sabia alguma cousa, porque apenas deu uma risadinha amarella, cousa que lhe era peculiar.

Sentárão-se á mesa, e o almoço correu entre as pilherias do major, as recriminações da Sra. Antonia, as explicações do rapaz e o silêncio de Adelaide. Quando o almoço acabou, o major disse ao sobrinho que fumasse, concessão enorme que o rapaz a custo aceitou. As duas senhoras sahírão; ficárão os dous á mesa.

— Estás então disposto a trabalhar?

— Estou, meu tio.

— Bem; vou ver se te arranjo um emprego. Que emprego preferes?

— O que quizer, meu tio, comtanto que eu trabalhe.

— Bem. Levarás amanhã, uma carta minha a um dos ministros. Deos queira que possas obter o emprego sem difficuldade. Quero ver-te trabalhador e serio; quero ver-te homem. As dissipações não produzem nada, a não serem dividas e desgostos... Tens dividas?

— Nenhuma, respondeu Soares.

Soares mentia. Tinha uma dívida de alfaiate, relativamente pequena; queria pagal-a sem que o tio soubesse.

No dia seguinte o major escreveu a carta promettida, que o sobrinho levou ao ministro; e tão feliz foi, que d’ahi a um mez estava empregado em uma secretaria com um bom ordenado.

Cumpre fazer justiça ao rapaz. O sacrificio que fez de transformar os seus habitos da vida foi enorme, e a julgal-o pelos seus antecedentes, ninguem o julgára capaz de tal. Mas o desejo de perpetuar uma vida de dissipação póde explicar a mudança e o sacrificio. Aquillo na existencia de Soares não passava de um parenthesis mais ou menos extenso. Almejava por fechal-o e continuar o periodo como havia começado, isto é, vivendo com Aspasia e pagodeando com Alcibiades.

O tio não desconfiava de nada; mas temia que o rapaz fosse novamente tentado á fuga, ou porque o seduzisse a lembrança das dissipações antigas, ou porque o aborrecesse a monotonia e a fadiga do trabalho. Com o fim de impedir o desastre, lembrou-se de inspirar-lhe ambição politica. Pensava o major que a politica seria um remédio decisivo para aquelle doente, como se não fosse conhecido que os louros de Lovelace e os de Turgot andão muita vez na mesma cabeça.

Soares não desanimou o major. Disse que era natural acabar a sua existencia na politica, e chegou a dizer que algumas vezes sonhára com uma cadeira no parlamento.

— Pois eu verei se te posso arranjar isto, respondeu o tio. O que é preciso é que estudes a sciencia da politica, a historia do nosso parlamento e do nosso governo; e principalmente é preciso que continues a ser o que és hoje: um rapaz serio.

Se bem o dizia o major, melhor o fazia Soares, que desde então metteu-se com os livros e lia com afinco as discussões das camaras.

Soares não morava com o tio, mas passava lá todo o tempo que lhe sobrava do trabalho, e voltava para casa depois do chá, que era patriarcal, e bem differente das ceiatas do antigo tempo.

Não affirmo que entre as duas phases da existencia de Luís Soares não houvesse algum elo de união, e que o emigrante das terras de Gnido não fizesse de quando em quando alguma excursão á patria. Em todo o caso essas excursões erão tão secretas que ninguem sabia d’ellas, nem talvez os habitantes das referidas terras, com excepção dos poucos escolhidos para receberem o expatriado. O caso era singular, porque n’aquelle paiz não se reconhece o cidadão naturalisado estrangeiro, ao contrario da Inglaterra, que não dá aos subditos da rainha o direito de escolherem outra patria.

Soares encontrava-se de quando em quando com Pires. O confidente do convertido manifestava a sua amizade antiga offerecendo-lhe um charuto de Havana e contando-lhe algumas boas fortunas havidas nas campanhas do amor, em que o alarve suppunha ser consummado general.

Havia já cinco mezes que o sobrinho do major Villela se achava empregado, e ainda os chefes da repartição não tinhão tido um só motivo de queixa contra elle. A dedicação era digna de melhor causa. Exteriormente via-se em Luiz Soares um monge; raspando-se um pouco achava-se o diabo.

Ora, o diabo vio de longe uma conquista...


A prima Adelaide tinha vinte e quatro annos, e a sua belleza, no pleno desenvolvimento da sua mocidade, tinha em si o condão de fazer morrer de amores. Era alta e bem proporcionada; tinha uma cabeça modelada pelo typo antigo; a testa era espaçosa e alta, os olhos rasgados e negros, o nariz levemente aquilino. Quem a contemplava durante alguns momentos sentia que ella tinha todas as energias, a das paixões e a da vontade.

Ha de lembrar-se o leitor do frio comprimento trocado entre Adelaide e seu primo; tambem se ha de lembrar que Soares disse ao amigo Pires ter sido amado por sua prima. Ligão-se estas duas cousas. A frieza de Adelaide resultava de uma lembrança que era dolorosa para a moça; Adelaide amára o primo, não com um simples amor de primos, que em geral resulta da convivencia e não de uma subita attracção. Amára-o com todo o vigor e calor de sua alma; mas já então o rapaz iniciava os seus passos em outras regiões e ficou indifferente aos affetos da moça. Um amigo que sabia do segredo perguntou-lhe um dia por que razão não se casava com Adelaide, ao que o rapaz respondeu friamente:

— Quem tem a minha fortuna não se casa; mas se se casa é sempre com quem tenha mais. Os bens de Adelaide são a quinta parte dos meus; para ella é negócio da China; para mim é um máo negocio.

O amigo que ouvíra esta resposta não deixou de dar uma prova da sua affeição ao rapaz indo contar tudo á moça. O golpe foi tremendo, não tanto pela certeza que lhe dava de não ser amada, como pela circumstancia de nem ao menos ficar-lhe o direito de estima. A confissão de Soares era um corpo de delicto. O confidente officioso esperava talvez colher os despojos da derrota; mas Adelaide, tão depressa ouvio a delação, como desprezou o delator.

O incidente não passou d’isto.

Quando Soares voltou á casa do tio, a moça achou-se em dolorosa situação; era obrigada a conviver com um homem ao qual nem podia dar apreço. Pela sua parte, o rapaz também se achava acanhado, não porque lhe doessem as palavras que dissera um dia, mas por causa do tio, que ignorava tudo. Não ignorava; o moço é que o suppunha. O major soube da paixão de Adelaide e soube tambem da repulsa que tivera no coração do rapaz. Talvez não soubesse das palavras textuaes repetidas á moça pelo amigo de Soares; mas se não conhecia o texto, conhecia o espirito; sabia que, pelo motivo de ser amado, o rapaz entrára a aborrecer a prima, e que esta, vendo-se repellida, entrára a aborrecer o rapaz. O major suppôz até durante algum tempo que a ausencia de Soares tinha por motivo a presença da moça em casa.

Adelaide era filha de um irmão do major, homem muito rico e igualmente excentrico, que morrêra havião dez annos deixando a moça entregue aos cuidados do irmão. Como o pai de Adelaide fizera muitas viagens, parece que gastou n’ellas a maior parte da sua fortuna. Quando morreu apenas coube a Adelaide, filha unica, cerca de trinta contos, que o tio conservou intactos para serem o dote da pupilla.

Soares houve-se como pôde na singular situação em que se achava. Não conversava com a prima; apenas trocava com ela as palavras estrictamente necessarias para não chamar a attenção do tio. A moça fazia o mesmo.

Mas quem póde ter mão ao coração? A prima de Luiz Soares sentio que pouco a pouco lhe ia renascendo o antigo affecto. Procurou combatêl-o sinceramente; mas não se impede o crescimento de uma planta senão arrancando-lhe as raizes. As raizes existião ainda. Apezar dos esforços da moça o amor veio pouco a pouco invadindo o lugar do odio, e se até então o supplicio era grande, agora era enorme. Travára-se uma luta entre o orgulho e o amor. A moça soffreu consigo; não articulou uma palavra.

Luiz Soares reparava que quando os seus dedos tocavão os da prima, esta experimentava uma grande emoção: corava e empallidecia. Era um grande navegador aquelle rapaz nos mares do amor: conhecia-lhe a calma e a tempestade. Convenceu-se de que a prima o amava outra vez. A descoberta não o alegrou; pelo contrario, foi-lhe motivo de grande irritação. Receiava que o tio, descobrindo o sentimento da sobrinha, propuzesse o casamento ao rapaz; e recusal-o não seria comprometter no futuro a esperada herança? A herança sem o casamento era o ideal do moço. Dar-me asas, pensava elle, atando-me os pés, é o mesmo que condemnar-me á prisão. É o destino do papagaio domestico; não aspiro a têl-o."

Realisárão-se as previsões do rapaz. O major descobrio a causa da tristeza da moça e resolveu pôr termo áquella situação propondo ao sobrinho o casamento.

Soares não podia recusar abertamente sem comprometter o edificio da sua fortuna.

— Este casamento, disse-lhe o tio, é complemento da minha felicidade. De um só lance reuno duas pessoas que tanto estimo, e morro tranquillo sem levar nenhum pezar para o outro mundo. Estou que aceitarás.

— Aceito, meu tio; mas observo que o casamento assenta no amor, e eu não amo minha prima.

— Bem; has de amal-a; casa-te primeiro...

— Não desejo expôl-a a uma desillusão.

— Qual desillusão! disse o major sorrindo. Gosto de ouvir-te fallar essa linguagem poetica, mas casamento não é poesia. É verdade que é bom que duas pessoas antes de se casarem se tenhão já alguma estima mutua. Isso creio que tens. Lá fogos ardentes, meu rico sobrinho, são cousas que ficão bem em verso, e mesmo em prosa; mas na vida, que não é prosa nem verso, o casamento apenas exige certa conformidade de genio, de educação e de estima.

— Meu tio sabe que eu não me recuso a uma ordem sua.

— Ordem, não! Não te ordeno, proponho. Dizes que não amas tua prima; pois bem, faze por isso, e d’aqui a algum tempo casem-se que me darão gosto. O que eu quero é que seja cedo, porque não estou longe de dar á casca.

O rapaz disse que sim. Adiou a difficuldade não podendo resolvêl-a. O major ficou satisfeito com o arranjo e consolou a sobrinha com a promessa de que podia casar-se um dia com o primo. Era a primeira vez que o velho tocava em semelhante assumpto, e Adelaide não dissimulou o seu espanto, espanto que lisonjeou profundamente a perspicacia do major.

— Ah! tu pensas, disse elle, que eu por ser velho já perdi os olhos do coração? Vejo tudo, Adelaide; vejo aquillo mesmo que se quer esconder.

A moça não pôde reter algumas lagrimas, e como o velho a consolasse dando-lhe esperanças, ella respondeu abanando a cabeça:

— Esperanças, nenhuma!

—— Descansa em mim! disse o major.

Comquanto a dedicação do tio fosse toda espontanea e filha do amor que votava á sobrinha, esta comprehendeu que semelhante intervenção podia fazer suppôr ao primo que ella esmolava os affectos do seu coração.

Aqui fallou o orgulho da mulher, que preferia o soffrimento á humilhação. Quando ella expôz estas objecções ao tio, o major sorrio-se affavelmente e procurou acalmar a susceptibilidade da moça.

Passárão-se alguns dias sem mais incidente; o rapaz estava no gozo da dilação que lhe dera o tio. Adelaide readquirio o seu ar frio e indifferente. Soares comprehendia o motivo, e áquella manifestação do orgulho respondia com um sorriso. Duas vezes notou Adelaide essa expressão de desdem da parte do primo. Que mais precisava para reconhecer que o rapaz sentia por ella a mesma indifferença de outro tempo? Accrescia que sempre que os dous se encontravão sós, Soares era o primeiro que se afastava d’ella. Era o mesmo homem.

— Não me ama, não me amará nunca! dizia a moça comsigo.


Um dia de manhã o major Villela recebeu a seguinte carta:

« Meu valente major. — Cheguei da Bahia hoje mesmo, e lá irei de tarde para ver-te e abraçar-te. Prepara um jantar. Creio que me não hás de receber como qualquer individuo. Não esqueças o vatapá. — Teu amigo, Anselmo. »

— Bravo! disse o major. Temos cá o Anselmo; prima Antonia, mande fazer um bom vatapá.

O Anselmo que chegára da Bahia chamava-se Anselmo Barroso de Vasconcellos. Era um fazendeiro rico, e veterano da independencia. Com os seus setenta e oito annos ainda se mostrava rijo e capaz de grandes feitos. Tinha sido intimo amigo do pai de Adelaide, que o apresentou ao major, vindo a ficar amigo d’este depois que o outro morrêra. Anselmo acompanhou o amigo até os seus ultimos instantes; e chorou a perda como se fôra seu proprio irmão. As lágrimas cimentárão a amizade entre elle e o major.

De tarde appareceu Anselmo galhofeiro e vivo como se começasse para elle uma nova mocidade. Abraçou a todos; deu um beijo em Adelaide, a quem felicitou pelo desenvolvimento das suas graças.

— Não se ria de mim, disse-lhe elle, eu fui o maior amigo de seu pai. Pobre amigo! morreu nos meus braços.

Soares, que soffria com a monotonia da vida que levava em casa do tio, alegrou-se com a presença do galhofeiro ancião, que era um verdadeiro fogo de artifício. Anselmo é que pareceu não sympathisar com o sobrinho do major. Quando o major ouvio isto, disse:

— Sinto muito, porque Soares é um rapaz serio.

— Creio que é serio de mais. Rapaz que não ri...

Não sei que incidente interrompeu a phrase do fazendeiro.

Depois do jantar Anselmo disse ao major:

— Quantos são amanhã?

— 15.

— De que mez?

— É boa! de Dezembro.

— Bem; amanhã 15 de Dezembro preciso ter uma conferencia contigo e os teus parentes. Se o vapor se demora um dia em caminho pregava-me uma boa peça.

No dia seguinte verificou-se a conferencia pedida por Anselmo. Estavão presentes o major, Soares, Adelaide e D. Antonia, unicos parentes do finado.

— Faz hoje dez annos que falleceu o pai d’esta menina, disse Anselmo apontando para Adelaide. Como sabem, o Dr. Bento Varella foi o meu melhor amigo, e eu tenho consciencia de haver correspondido á sua affeição até aos ultimos instantes. Sabem que elle era um genio excentrico; toda a sua vida foi uma grande originalidade. Ideava vinte projectos, qual mais grandioso, qual mais impossivel, sem chegar ao cabo de nenhum, porque o seu espirito creador tão depressa compunha uma cousa como entrava a planear outra.

— É verdade, interrompeu o major.

— O Bento morreu nos meus braços, e como derradeira prova da sua amizade confiou-me um papel com a declaração de que eu só o abrisse em presença dos seus parentes dez annos depois de sua morte. No caso de eu morrer os meus herdeiros assumirião essa obrigação; em falta d’elles, o major, a Sra. D. Adelaide, emfim qualquer pessoa que por laço de sangue estivesse ligada a elle. Emfim, se ninguem houvesse na classe mencionada, ficava incumbido um tabellião. Tudo isto havia eu declarado em testamento, que vou reformar. O papel a que me refiro, tenho aqui no bolso.

Houve um movimento de curiosidade.

Anselmo tirou do bolso uma carta fechada com lacre preto.

— É este, disse elle. Está intacto. Não conheço o texto; mas posso mais ou menos saber o que está dentro por circumstancias que vou referir.

Redobrou a attenção geral.

— Antes de morrer, continuou Anselmo, o meu querido amigo entregou-me uma parte da sua fortuna, quero dizer a maior parte, porque a menina recebeu apenas trinta contos. Eu recebi d’elle trezentos contos, que guardei até hoje intactos, e que devo restituir segundo as indicações d’esta carta.

A um movimento de espanto em todos seguio-se um movimento de anxiedade. Qual seria a vontade mysteriosa do pai de Adelaide? D. Antonia lembrou-se que em rapariga fôra namorada do defunto, e por um momento lisongeou-se com a idéa de que o velho maniaco se houvesse lembrado d’ella ás portas da morte.

— N’isto reconheço eu o mano Bento, disse o major tomando uma pitada; era o homem dos mysterios, das sorpresas e das idéas extravagantes, seja dito sem aggravo aos seus pecados, se é que os teve...

Anselmo tinha aberto a carta. Todos prestárão ouvidos. O veterano leu o seguinte:

« Meu bom e estimadissimo Anselmo. — Quero que me prestes o ultimo favor. Tens contigo a maior parte da minha fortuna, e eu diria a melhor se tivesse de alludir á minha querida filha Adelaide. Guarda esses trezentos contos até d’aqui a dez annos, e ao terminar o prazo, lê esta carta diante dos meus parentes.

« Se n’essa época a minha filha Adelaide fôr viva e casada entrega-lhe a fortuna. Se não estiver casada, entrega-lh’a também, mas com uma condição: é que se case com o sobrinho Luiz Soares, filho de minha irmã Luiza; quero-lhe muito, e apesar de ser rico, desejo que entre na posse da fortuna com minha filha. No caso em que esta se recuse a esta condição, fica tu com a fortuna toda. »

Quando Anselmo acabou de ler esta carta seguio-se um silencio de sorpresa geral, de que partilhava o proprio veterano, alheio até então ao conteúdo da carta.

Soares tinha os olhos em Adelaide; esta tinha-os no chão.

Como o silencio se prolongasse, Anselmo resolveu rompêl-o.

— Ignorava, como todos, disse elle, o que esta carta contém; felizmente chega ella a tempo de se realisar a ultima vontade do meu finado amigo.

— Sem duvida nenhuma, disse o major.

Ouvindo isto, a moça levantou insensivelmente os olhos para o primo, e os d’ella encontrárão-se com os d’elle. Os d’elle transbordavão de contentamento e ternura; a moça fitou-os durante alguns instantes. Um sorriso, já não zombeteiro, passou pelos labios do rapaz. A moça sorrio tambem; mas que sorriso! Jámais uma rainha sorrio com tamanho desdem ás zumbaias de um cortezão.

Anselmo levantou-se.

— Agora que estão scientes d’isto, disse elle aos dous primos, espero que resolvão, e como o resultado não póde ser duvidoso, desde já os felicito. Entretanto, hão de dar-me licença, que tenho de ir a outras partes.

Com a sahida de Anselmo dispersára-se a reunião. Adelaide foi para o seu quarto com a velha parenta. O tio e o sobrinho ficárão na sala.

— Luiz, disse o primeiro, és o homem mais feliz do mundo.

— Parece-lhe, meu tio? disse o moço procurando disfarçar a sua alegria.

— És. Tens uma moça que te ama loucamente. De repente cahe-lhe nas mãos uma fortuna inesperada; e essa fortuna só póde havêl-a com a condição de se casar comtigo. Até os mortos trabalhão a teu favor.

— Affirmo-lhe, meu tio, que a fortuna não pesa nada n’estes casos, e se eu assentar em casar com a prima será por outro motivo.

— Bem sei que a riqueza não é essencial; não é. Mas emfim vale alguma cousa. É melhor ter trezentos contos que trinta; sempre é mais uma cifra. Contudo não te aconselho que te cases com ella se não tiveres alguma affeição. Nota que eu não me refiro a essas paixões de que me fallaste. Casar mal, apezar da riqueza, é sempre casar mal.

— Estou convencido d’isto, meu tio. Por isso ainda não dei a minha resposta, nem dou por ora. Se eu vier a affeiçoar-me á prima estou prompto a entrar na posse d’essa inesperada riqueza.

Como o leitor terá adivinhado, a resolução do casamento estava assentada no espirito de Soares. Em vez de esperar a morte do tio, parecia-lhe melhor entrar desde logo na posse de um excellente peculio, o que se lhe afigurava tanto mais facil, quanto que era a voz do tumulo que o impunha.

Soares contava tambem com a profunda veneração de Adelaide por seu pai. Isto, ligado ao amor que a rapariga sentia por elle, devia produzir o desejado effeito.

N’essa noite o rapaz dormio pouco. Sonhou com o Oriente. Pintou-lhe a imaginação um harem rescendente das melhores essencias da Arabia, forrado o chão com tapetes da Persia; sobre molles divans ostentavão-se as mais parfeitas bellezas do mundo. Uma Circassiana dansava no meio do salão ao som de um pandeiro de marfim. Mas um furioso eunucho, precipitando-se na sala com o yatagan desembainhado, enterrou-o todo no peito de Soares, que acordou com o pesadelo, e não pôde mais conciliar o somno.

Levantou-se mais cedo e foi passear até chegar a hora do almoço e da repartição.


O plano de Luiz Soares estava feito.

Tratava-se de abater as armas pouco a pouco, simulando-se vencido diante da influencia de Adelaide. A circumstancia da riqueza tornava necessaria toda a discrição. A transição devia ser lenta. Cumpria ser diplomata.

Os leitores terão visto que, apezar de certa argucia da parte de Soares, não tinha elle a perfeita comprehensão das cousas, e por outro lado o seu caracter era indeciso e vario.

Hesitára em casar com Adelaide quando o tio lhe fallou n’isso, quando era certo que viria a obter mais tarde a fortuna do major. Dizia então que não tinha vocação de papagaio. A situação agora era a mesma; aceitava uma fortuna mediante uma prisão. É verdade que se esta resolução era contraria á primeira, podia ter por causa o cansaço que lhe ia produzindo a vida que levava. Além de que, d’esta vez, a riqueza não se fazia esperar; era entregue logo depois do consorcio.

— Trezentos contos, pensava o rapaz, é quanto basta para eu ser mais do que fui. O que não hão de dizer os outros!

Antevendo uma felicidade que era certa para elle, Soares começou o assedio da praça, aliás praça rendida.

Já o rapaz procurava os olhos da prima, já os encontrava, já lhes pedia aquillo que recusára até então, o amor da moça. Quando, á mesa, as suas mãos se encontravão, Soares tinha o cuidado de demorar o contacto, e se a moça retirava a sua mão, o rapaz nem por isso desanimava. Quando se encontrava a sós com ella, não fugia como outr’ora, antes lhe dirigia alguma palavra, a que Adelaide respondia com fria polidez.

— Quer vender o peixe caro, pensava Soares.

Uma vez atreveu-se a mais. Adelaide tocava piano quando elle entrou sem que ella o visse. Quando a moça acabou, Soares estava por trás d’ella.

— Que lindo! disse o rapaz; deixe-me beijar-lhe essas mãos inspiradas.

A moça olhou séria para elle, pegou no lenço que puzera sobre o piano, e sahio sem dizer palavra.

Esta scena mostrou a Soares toda a difficuldade da empreza; mas o rapaz confiava em si, não porque se reconhecesse capaz de grandes energias, mas por especie de esperança na sua boa estrella.

— É difficil subir a corrente, disse elle, mas sobe-se. Não se fazem Alexandres na conquista de praças desarmadas.

Comtudo as desilusões ião-se succedendo, e o rapaz, se o não alentasse a idéa da riqueza, teria abatido as armas.

Um dia lembrou-se de escrever-lhe uma carta. Lembrou-se de que era difficil expôr-lhe de viva voz tudo quanto sentia; mas que uma carta, por muito odio que ella lhe tivesse, sempre seria lida.

Adelaide devolveu a carta pelo moleque da casa que lh’a havia entregue.

A segunda carta teve a mesma sorte. Quando mandou a terceira, o moleque não a quiz receber.

Luiz Soares teve um instante de desengano. Indifferente á moça, já começava a odial-a; se casasse com ella era provavel que a tratasse como inimigo mortal.

A situação tornava-se ridicula para elle; ou antes, já o era ha muito, mas Soares só então o comprehendeu. Para escapar ao ridiculo, resolveu dar um golpe final, mas grande. Aproveitou a primeira occasião que pôde, e fez uma declaração positiva á moça, cheia de supplicas, de suspiros, talvez de lagrimas. Confessou os seus erros; reconheceu que não a havia comprehendido; mas arrependêra-se e confessava tudo. A influencia d’ella acabára por abatêl-o.

— Abatêl-o! disse ella; não compreendo. A que influencia allude?

— Bem sabe; á influencia da sua belleza, do seu amor... Não supponha que lhe estou mentindo. Sinto-me hoje tão apaixonado que era capaz de commetter um crime!

— Um crime?

— Não é crime o suicidio? De que me serviria a vida sem o seu amor? Vamos, falle!

A moça olhou para elle durante alguns instantes sem dizer palavra.

O rapaz ajoelhou-se.

— Ou seja a morte, ou seja a felicidade, disse elle, quero recebêl-a de joelhos.

Adelaide sorrio e soltou lentamente estas palavras:

— Trezentos contos! É muito dinheiro para comprar um miseravel.

E deu-lhe as costas.

Soares ficou petrificado. Durante alguns minutos conservou-se na mesma posição, com os olhos fitos na moça que se afastava lentamente. O rapaz dobrava-se ao peso da humilhação. Não prevíra tão cruel desforra da parte de Adelaide. Nem uma palavra de odio, nem um indicio de raiva; apenas um calmo desdem, um desprezo tranquilo e soberano. Soares soffrêra muito quando perdeu a fortuna; mas agora que o seu orgulho foi humilhado, a sua dôr foi infinitamente maior.

Pobre rapaz!

A moça foi para dentro. Parece que contava com aquella scena; porque entrando em casa, foi logo procurar o tio, e declarou-lhe que, apezar de quanto venerava a memoria do pai, não podia obedecer-lhe, e desistia do casamento.

— Mas não o amas tu? perguntou-lhe o major.

— Amei-o.

— Amas a outro?

— Não.

— Então explica-te.

Adelaide expôz francamente o procedimento de Soares desde que alli entrára, a mudança que fizera, a sua ambição, a scena do jardim. O major ouvio attentamente a moça, procurou desculpar o sobrinho, mas no fundo elle acreditava que Soares era um máo caracter.

Este, depois que pôde refrear a sua colera, entrou em casa e foi despedir-se do tio até o dia seguinte.

Pretextou que tinha um negocio urgente.


Adelaide contou miudamente ao amigo de seu pai os successos que a obrigavão a não preencher a condição da carta posthuma confiada a Anselmo. Em consequencia d’esta recusa, a fortuna devia ficar com Anselmo; a moça contentava-se com o que tinha.

Não se deu Anselmo por vencido, e antes de aceitar a recusa foi ver se sondava o espirito de Luiz Soares.

Quando o sobrinho do major vio entrar por casa o fazendeiro suspeitou que alguma coisa houvesse a respeito do casamento. Anselmo era perspicaz; de modo que, apezar da apparencia de victima com que Soares lhe apparecêra, comprehendeu elle que Adelaide tinha razão.

Assim pois tudo estava acabado. Anselmo dispôz-se a partir para a Bahia, e assim o declarou á familia do major.

Nas vesperas de partir achavão-se todos juntos na sala de visitas, quando Anselmo soltou estas palavras:

— Major, está ficando melhor e forte; eu creio que uma viagem á Europa lhe fará bem. Esta moça também gostará de ver a Europa, e creio que a Sra. D. Antonia, apezar da idade, lá quererá ir. Pela minha parte sacrifico a Bahia e vou tambem. Approvão o conselho?

— Homem, disse o major, é preciso pensar...

— Qual pensar! Se pensarem não embarcaráõ. Que diz a menina?

— Eu obedeço ao tio, respondeu Adelaide.

— Além de que, disse Anselmo, agora que D. Adelaide está de posse de uma grande fortuna, ha de querer apreciar o que ha de bonito nos paizes estrangeiros afim de poder melhor avaliar o que ha no nosso...

— Sim, disse o major; mas você falla de grande fortuna...

— Trezentos contos.

— São seus.

— Meus! Então sou algum ratoneiro? Que me importa a mim a fantasia de um generoso amigo? O dinheiro é d’esta menina, sua legitima herdeira, e não meu, que aliás tenho bastante.

— Isto é bonito, Anselmo!

— Mas o que não seria se não fosse isto?

A viagem á Europa ficou assentada.

Luiz Soares ouvio a conversa toda sem dizer palavra; mas a idéa de que talvez pudesse ir com o tio sorrio-lhe ao espirito. No dia seguinte teve um desengano cruel. Disse-lhe o major que, antes de partir, o deixaria recommendado ao ministro.

Soares procurou ainda ver se alcançava seguir com a familia. Era simples cobiça na fortuna do tio, desejo de ver novas terras, ou impulsos de vingança contra a prima? Era tudo isso, talvez.

Á ultima hora foi-se a derradeira esperança. A familia partio sem elle.

Abandonado, pobre, tendo por unica perspectiva o trabalho diario, sem esperanças no futuro, e além do mais, humilhado e ferido em seu amor-proprio, Soares tomou a triste resolução dos cobardes.

Um dia de noite o criado ouvio no quarto d’elle um tiro; correu, achou um cadaver.

Pires soube na rua da noticia, e correu á casa de Victoria, que encontrou no toucador.

— Sabes de uma cousa? perguntou elle.

— Não. Que é?

— O Soares matou-se.

— Quando?

— N’este momento.

— Coitado! É sério?

— É sério. Vais sahir?

— Vou ao Alcazar.

— Canta-se hoje Barbe-Bleue, não é?

— É.

— Pois eu tambem vou.

E entrou a cantarolar a canção de Barbe-Bleue.

Luiz Soares não teve outra oração funebre dos seus amigos mais intimos.