No dia seguinte à mesma hora voltei à casa de Lúcia; achei-a ao piano
— O que estava tocando?
— Nem sei!... Uma valsa que aprendi de ouvido.
— Continue!
— Não sei tocar, não! Estava brincando; não tinha que fazer. Como passou de ontem?
— Bem, obrigado. Já vê que a minha segunda visita não se demorou muito.
— Ainda assim não compensa a demora da primeira.
— Sentiu essa demora?. Qual! ontem nem me conheceu.
— Tanto como na Glória. Ainda que se tivessem passado anos, creio que em qualquer parte onde me encontrasse com o senhor, o reconheceria.
— Por que motivo então fingiu ontem não se lembrar de mim, logo que entrei ?
— Por quê?... Queria ver uma coisa.
— E não se pode saber o que era?
— Não é preciso!
— Há de me dizer!...
E tomei-lhe as mãos que estavam frias e trêmulas.
— Pois bem, eu lhe digo. Queria ver se ainda se lembrava do nosso primeiro encontro, respondeu ela furtando o corpo ao meu abraço.
— Duvidava? . . Não tinha razão; talvez fosse eu o que melhor guardasse essa lembrança.
Lúcia abanou a cabeça lentamente:
— Que vestido levava eu naquela tarde? perguntou sorrindo.
A pergunta embaraçou-me. Quando admiro uma mulher bonita, a impressão que ela produz em mim não me deixa ver mais que a sua beleza.
— Nem se recorda!
— É um defeito meu. Não reparo na toilette das moças bonitas pela mesma razão por que não se repara na moldura de um belo quadro.
— Que desculpa!... E eu por que reparei no seu traje, na cor de sua sobrecasaca, em tudo; até na sua bengala? Não é esta; a outra era mais bonita; tinha o castão de marfim. Está vendo que me lembro perfeitamente, e entretanto não tenho esses objetos diante dos olhos!
— Ah! É este o vestido?
— O vestido, as jóias, o penteado, o leque, aquele que o senhor apanhou. Nem desse se lembrava! Só falta o chapéu! Quer vê-lo ?
Lúcia saiu um instante e voltou. Ou porque a minha memória se avivasse, ou porque a ausência desse gentil chapéu, que parecia fugir-lhe da cabeça, tão de leve a cingia, mutilasse a graciosa imagem que eu vira na tarde de minha chegada; o fato é que a aparição já desvanecida surgira de repente aos meus olhos.
— Agora lembro-me! Estou vendo-a como a vi da primeira vez!
— Como daquela vez não me verá mais nunca!
— O que lhe falta?
— Falta o que o senhor pensava e não tornará a pensar! disse ela com a voz pungida por dor íntima!
Não compreendi então aquelas palavras, nem o tom com que foram proferidas; procurei-lhe o sentido, acompanhando com os olhos a Lúcia que tirava lentamente o chapéu, e fitava na sua imagem refletida pelo espelho um triste olhar.
— Ah! já sei! O que eu pensava?... Mas ainda penso: acho-a hoje tão bonita ou mais do que naquela tarde.
— Não é isto!
— O que é então ? Venha dizer-me.
Passei-lhe o braço pela cintura e apertei-a ao peito; eu estava sentado, ela em pé; meus lábios encontraram naturalmente o seu colo e se embeberam sequiosos na covinha que formavam nascendo os dois seios modestamente ocultos pela cambraia. Com o meu primeiro movimento, Lúcia cobriu-se de ardente rubor; e deixou-se ir sem a menor resistência, com um modo de tímida resignação.
Quando porém os meus lábios se colaram na tez de cetim e meu peito estreitou as formas encantadoras que debuxavam a seda, pareceu-me que o sangue lhe refluía ao coração. As palpitações eram bruscas e precipites. Estava lívida e mais branca do que o alvo colarinho do seu roupão. Duas lágrimas em fio, duas lágrimas longas e sentidas, como dizem que chora a corça expirando, pareciam cristalizadas sobre a face, de tão lentas que rolavam.
É o coração, quando fortemente confrangido por violenta emoção, que espreme esse soro do sangue que gela e coalha.
Pungiu-me aquela aflição.
Retirei vivamente o braço; enquanto Lúcia sentava-se trêmula, afastei-me revoltado contra mim, e ao mesmo tempo indignado contra essa mulher que zombava da minha credulidade, e contra Sá que me iludira. Não sabia o que pensar; para fugir a uma posição que me incomodava horrivelmente, fui debruçar-me na janela.
Um instante depois ouvi sua voz doce e carinhosa:
— Não se agaste comigo !
Voltei-me; ela sorriu a dois passos de mim, e com uma expressão suplicante, como de quem pedisse perdão.
— Acabemos com isso, Lúcia. Sabes o que me traz à tua casa: se te desagrado por qualquer motivo, dize francamente, que eu tomo o meu chapéu e não te aborrecerei mais. Se pensas que valho tanto como os outros, não percas o tempo a fingir o que não és. Esta comédia de amor pode divertir os mocinhos de 18 anos e os velhos de 50; mas afianço-te que não lhe acho a menor graça.
— Não seja tão injusto' Em que lhe pareço fingida? Já me perguntou alguma coisa que eu lhe negasse? Já me recusei a um pedido seu?
— Entretanto te ofendeste com uma simples carícia!
— Não me ofendi; e a prova é que não dei sinal de desagrado, nem conservo o menor ressentimento. Não me conhece!... Sei o que valho, e não sou capaz de iludir a ninguém, muito menos ao senhor.
— Mas, há pouco, o que significavam essas lágrimas?
— Ah, não repare! Sofro do coração; às vezes sobe-me o sangue à cabeça, fico muito pálida, e sinto uma dor aguda que me arranca lágrimas dos olhos!. . . Não é nada; passa-me logo. Já passou! concluiu com um sorriso dorido.
— É diferente; desculpa. Incomodava-me essa idéia de pensares que estava disposto a fazer-te a corte. Seria soberanamente ridículo para nós ambos.
— Decerto!
Lúcia acompanhou estas duas palavras com um riso estridente e um olhar que ainda vejo brilhar nas sombras de minhas recordações: olhar vivo e cintilante, que luziu como as chispas do brilhante ferido pela réstia da luz, e veio bater-me em cheio na face, cobrindo-me com o mais agro desprezo que pode estilar um coração de mulher.
Dirigiu-se a uma porta lateral, e fazendo correr com um movimento brusco a cortina de seda, desvendou de relance uma alcova elegante e primorosamente ornada. Então voltou-se para mim com o riso nos lábios, e de um gesto faceiro da mão convidou-me a entrar.
A luz, que golfava em cascatas pelas janelas abertas sobre um terraço cercado de altos muros, enchia o aposento, dourando o lustro dos móveis de pau-cetim, ou realçando a alvura deslumbrante das cortinas e roupagens de um leito gracioso. Não se respiravam nessas aras sagradas à volúpia, outros perfumes senso o aroma que exalavam as flores naturais dos vasos de porcelana colocados sobre o mármore dos consolos, e as ondas de suave fragrância que deixava na sua passagem a deusa do templo.
Lúcia não disse mais palavra; parou no meio do aposento, defronte de mim.
Era outra mulher.
O rosto cândido e diáfano, que tanto me impressionou à doce claridade da lua, se transformara completamente: tinha agora uns toques ardentes e um fulgor estranho que o iluminava. Os lábios finos e delicados pareciam túmidos dos desejos que incubavam. Havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes da narina que tremiam com o anélito do respiro curto e sibilante, e também nos fogos surdos que incendiavam a pupila negra.
A suave fluidez do gesto meigo sucedeu a veemência e a energia dos movimentos. O talhe perdera a ligeira flexão que de ordinário o curvava, como uma haste delicada ao sopro das auras; e agora arqueava enfunando a rija carnação de um colo soberbo, e traindo as ondulações felinas num espreguiçamento voluptuoso. As vezes um tremor espasmódico percorria-lhe todo o corpo, e as espáduas se conchegavam como se um frio de gelo a invadira de súbito; mas breve sucedia a reação, e o sangue abrasando-lhe as veias, dava à branca epiderme reflexos de nácar e às formas uma exuberância de seiva e de vida, que realçavam a radiante beleza.
Era uma transfiguração completa.
Enquanto a admirava, a sua mão ágil e sôfrega desfazia ou antes despedaçava os frágeis laços que prendiam-lhe as vestes. A mais leve resistência dobrava-se sobre si mesmo como uma cobra, e os dentes de pérola talhavam mais rápidos do que a tesoura o cadarço de seda que lhe opunha obstáculos. Até que o penteador de veludo voou pelos ares, as trancas luxuriosas dos cabelos negros rolaram pelos ombros arrufando ao contato a pele melindrosa, uma nuvem de rendas e cambraias abateu-se a seus pés, e eu vi aparecer aos meus olhos pasmos, nadando em ondas de luz, no esplendor de sua completa nudez, a mais formosa bacante que esmagara outrora com o pé lascivo as uvas de Corinto.
Saí alucinado!
Fora delírio, convulsão de prazer tão viva que, através do imenso deleite, traspassava-me uma sensação dolorosa, como se eu me revolvera no meio de um sono opiado, sobre um leito de espinhos. É que as carícias de Lúcia vinham impregnadas de uma irritabilidade que cauterizava
Há mulheres gastas, máquinas do prazer que vendem, autômatos só movidos por molas de ouro. Mas Lúcia sentia; sentia sim com tal acrimônia e desespero, que o prazer a estorcia em cãibras pungentes. Seu olhar queimava; e às vezes parecia que ela ia estrangular-me nos seus braços, ou asfixiar-me com seus beijos.
De repente surgiu lívida, e estendeu-me a mão aberta Ouvi uma palavra soluçada, voz opressa, que não entendi, mas adivinhei.
Imagine qual revolução houve em mim; e a profunda indignação com que me precipitei sobre minha carteira para atirá-la à face dessa mulher. Mas ela reteve-me com a força sobre-humana que lhe davam as contrações nervosas.
— Estava gracejando-me! Não é assim que me queria?
E soltou uma gargalhada.
Debalde pedi uma explicação. Ao delírio sucedera prostração absoluta, orgasmo da constituição violentamente abalada. Vendo então esse corpo inerte e pasmo, com os olhos vítreos e as mãos crispadas, tive dó e como um pressentimento de que a vida o abandonaria breve.
Quando lho dei a perceber, ela respondeu-me:
— Que importa? Contanto que tenha gozado de minha mocidade! De que serve a velhice às mulheres como eu?
Ao retirar-me ia pela segunda vez levar a mão à carteira, quando o olhar de Lúcia correu-me de vergonha. Entretanto ela, abatida ainda, porém calma, apertava-me a mão por despedida. Que magia tinham aqueles olhos fúlgidos, quando um sentimento forte lhes toldava a doce serenidade!
Conto-lhe estes fatos, como se escrevesse no dia em que eles sucederam, ignorando o seu futuro; entretanto, talvez que, apesar disto, compreenda as palavras equívocas e as causas ocultas que naquela ocasião resistiram à minha perspicácia.
Mas a senhora lê e eu vivia; no livro da vida não se volta, quando se quer, a página já lida, para melhor entendê-la; nem pode-se fazer a pausa necessária à reflexão. Os acontecimentos nos tomam e nos arrebatam às vezes tão rapidamente que nem deixam volver um olhar ao caminho percorrido.
Assim o meu espírito preocupou-se um momento com a singularidade daquela cortesã, que ora levava a impudência até o cinismo, ora esquecia-se do seu papel no simples e modesto recato de uma senhora; porém vieram logo outros pensamentos distrair-me.