Dias depois estava em casa de Lúcia; conversávamos tranqüilamente como dois bons amigos num momento de expansão.
Ela me contara vagamente, sem indicação de datas nem de localidades, as impressões de sua infância passada no campo entre as árvores e à borda do mar; seu espírito adejava com prazer sobre essas reminiscências embalsamadas com os agrestes perfumes da mata, e por vezes a poesia da natureza fluía no seu ingênuo entusiasmo.
Pela primeira vez também, desde o momento em que a conhecera, Lúcia se mostrara curiosa a respeito do meu passado, de minha família, e de minhas ambições de futuro. Até então só conhecia de mim o meu nome e a minha pessoa; nem mostrava desejar mais. Os meus sentimentos, a minha vida íntima era um mundo em que se julgava profana, e no qual não ousava ou não queria mesmo penetrar.
Já tinha por vezes refletido nessa abstenção, a qual aparentemente denotava que Lúcia só estimava em mim o homem exterior; o moço que encontrara num dia de desenfado, e que lhe agradara pela figura, pelos modos, ou antes por capricho seu. Pouco lhe importando saber donde vinha e para onde ia esse companheiro de viagem, unira-se a ele para amenizar, durante o tempo que seguissem o mesmo rumo, os incidentes do caminho e a solidão do pouso.
Naquele dia, pois, satisfazendo o seu desejo, falei-lhe pela primeira vez do meu verdadeiro eu; das minhas esperanças, das minhas afeições, dos meus sonhos. Ela ouvia tudo com evidente interesse: o nome de uma pessoa querida por mim, ou de parente ou de amigo; uma data de família; uma localidade que fora teatro de algum dos pequenos acontecimentos da vida; tudo se gravara tão rápida e profundamente no seu espírito, que as suas observações não pareciam de quem acabava de ouvir, mas de quem acompanhara dia por dia os fatos que eu lhe contava. Identificando-se com a minha alma, graças à admirável flexibilidade do senso íntimo da mulher, ela sentia e comovia-se, recordando as minhas afeições; e nutria-se das minhas ambições, sonhando com elas, e dourando-as aos reflexos de sua rica imaginação.
Lúcia trazia nessa manhã um traje quase severo: vestido escuro, afogado e de mangas compridas, com pouca roda, simples colarinho e punhos de linho rebatidos; cabelos negligentemente enrolados em basta madeixa, sem ornato algum. Em vez dos pantufos aveludados que costumava usar em casa, no desalinho, calçava uma botina de merinó preto, que ia-lhe admiravelmente, porque ela tinha o mais lindo pé do mundo. Quando o vento que entrava pela janela erguia indiscretamente a fímbria da saia, apesar do movimento rápido que a conchegava, descobria-se a volta bordada de uma calça estreita, cerrando o colo esbelto da perna divina.
O homem é um sistema de contrariedade.
As confidências mútuas, as expansões d'alma despegada do seu invólucro material, o recato austero do traje que ocultava belezas criadas para viver em plena luz e ao ar livre, como as flores do trópico, deviam alhear-me os sentidos. Mas bem longe disso, no fim da nossa conversação remordiam-me as recordações. Meu olhar insinuava-se perfidamente pela abertura do colarinho modesto que cingia uma garganta pura, espreguiçava-se pela seda avara que entufava a marmórea rijeza de um seio comprimido; enleava-se nas pregas fofas que quebravam a harmonia das formas.
Tomei as mãos de Lúcia sorrindo, e meus olhos foram à porta vendada de sua alcova. Ela ergueu-se rapidamente, e disse-me com um modo ríspido:
— Vou sair!
Era a primeira recusa que eu sofria.
O constrangimento de Lúcia tinha ido sempre em aumento; mas nunca, até ali, o meu desejo encontrara uma resistência; nunca uma desculpa, um pretexto, o contrariara. Ainda pronta para sair, no momento de entrar no carro, já no teatro ou no passeio, bastava uma palavra minha para fazê-la voltar, muda e fria, é verdade, mas obediente e resignada. Em qualquer ocasião, a qualquer hora do dia ou da noite, se meu lábio procurava o seu, achava-o, seco e áspero, mas dócil à carícia.
— A que horas voltas?
— Não sei; é natural que me demore.
— Até à noite, então
A noite, quando voltei, queixava-se de uma indisposição. Repeliu-me ainda; só abracei um corpo convulso e gelado que me assustou; sobretudo quando, levando as mãos à cabeça, soltou um gemido plangente e doloroso.
Estava realmente doente; respeitei-a. As nove horas, apesar de minhas instâncias para ficar velando-a na sua enfermidade, obrigou-me a sair, e disse-me adeus sem acrescentar, como tinha de costume:
— Até amanhã.
Era também a primeira vez que a minha presença parecia contrariá-la. De manhã soube que o seu incômodo se agravara durante a noite. Achei instalada em sua casa, como enfermeira, uma tal Sr.ª Jesuína, mulher de cinqüenta anos, seca e já encarquilhada, com quem embirrei solenemente desde o momento em que a vi. Essa insuportável criatura não deixava um momento a borda do leito; e quando alguma vez eu tomava as mãos de Lúcia, ou reclinava-me para ela, quando meus lábios iam roçar a flor de seu rosto, a Sr.ª Jesuína tinha sempre um remédio a dar, um travesseiro a endireitar, uma recomendação a fazer.
Um dia retirando-me, a velha acompanhou-me até a sala; aí no meio de biocos e gatimanhos, deu-me a entender que o médico proibira terminantemente a Lúcia o menor excesso, que lhe podia ser fatal.
— Mas qual é a moléstia de Lúcia?
— Não me recordo; esses nomes de medicina são tão esquisitos! A moléstia agora não vale nada; amanhã está de pé; e num mês pode ficar inteiramente boa. Somente nada de excesso!
A velha carregou na palavra, piscando os olhos pequeninos.
— Pode custar-lhe a vida' acrescentou.
— Qual é o médico que trata dela?
— Um tal... Não me lembro agora. Mas é bom doutor.
— A que horas costuma vir?
— Não tem hora certa. Quando o senhor chegou, tinha saído.
— Onde mora?
— Nem sei! Ele disse; porém já me esqueci!
Desejava falar ao médico para saber com certeza o estado de Lúcia; não o consegui porém. No dia seguinte já encontrei Lúcia na sala, ainda abatida, mas sem sofrimento algum.
Decorreu uma semana. Lúcia tinha-se restabelecido completamente; continuávamos as nossas longas conversas de outrora, mas não a sós. A Sr.ª Jesuina ficara a título de caseira ou dama de companhia; encontrava-a invariavelmente repimpada numa cadeira de balanço, a dois passos de Lúcia, lendo uma coleção de novelas em que brilhavam Zaíra, e os Azares da Fortuna. Se alguma vez Lúcia se levantava, a Sr.ª Jesuína atirava com um movimento da cabeça os óculos de tartaruga sobre a ponta do nariz, e seguia-a para lhe perguntar se queria um refresco, um banho, o jantar, a roupa para sair, ou qualquer outra coisa.
Afinal não me pude ter.
— Já estás boa, Lúcia; não precisas mais de enfermeira. Que faz aqui esta velha?
— Faz-me companhia. Vivo tão só!
— Outrora a minha companhia te bastava.
Não me respondeu.
— Manda-a embora!
— Não é possível preciso dela, mesmo para o arranjo da casa.
— Bem; como eu não a posso suportar, não voltarei enquanto ela aqui estiver.
A Sr.ª Jesuína tinha ouvido, o que me era completamente indiferente. Lúcia abaixara a cabeça e ficara pensativa; ao retirar-me, quando me apertava a mão, disse:
— Não a encontrará mais!
De fato no outro dia não encontrei a Jesuína. Lúcia estava só; todos os obstáculos e contrariedades que sofria depois de duas semanas, me tinham irritado creio Que fui até violento e grosseiro; mas debalde. A resistência era tenaz e friamente calculada. Um momento. enquanto se debatia nos meus braços, o egoísmo cruel que às vezes faz do homem uma fera, e lhe dá instintos carniceiros, levou-me a dizer-lhe com escárnio:
— É a recomendação do médico ? Tens medo de adoecer!
— Se fosse isso! Ainda quando soubesse que morreria nos seus braços... Que morte mais doce podia eu desejar. Não; não é esse o motivo. Não houve tal recomendação, nem aqui veio medico. Repugna-me enganá-lo tudo foi uma mentira daquela mulher.
— Não estiveste doente? perguntei admirado.
Tive uma ligeira indisposição. Naquele dia em que saí, andei muito e apanhei bastante sol; quando voltei. tinha dores de cabeça horríveis. O senhor chegou. .. E naquele momento cuidei que ia ter uma vertigem. Mas passou.
E a que veio a história daquela velha?
Lúcia perturbou-se e a custo balbuciou esta explicação:
— Chamei esta mulher para junto de mim porque tinha medo de estar só com o senhor.
— Ah!
— Ela inventou a mentira, de que eu não gostei; mas não tive animo de desenganá-lo!
— E por que receias estar só comigo, Lúcia?
Ela hesitou; por fim prorrompeu-lhe a voz do seio arquejante:
— Porque não posso fazer-lhe a vontade... Não! Sofro horrivelmente!
— Isto quer dizer que eu te incomodo vindo aqui
— Ao contrário, meu Deus! É a única alegria que tenho neste mundo. Dê-me esse consolo! Venha conversar comigo! Todos os dias! . . .
— Tenho agora muito que fazer; estou tratando de estabelecer-me. A tua conversa é bastante agradável, mas falta-me o tempo.
— E nos domingos ? . . .
— Ora Lúcia, sejamos francos. Melhor é confessares que eu te importuno. Já sabia disso; não me dirias nada de novo.
Quer saber o que respondeu?
— Se lhe incomoda vir aqui, eu irei vê-lo.
— Para conversar?...
Deixou pender a cabeça abatida.
— Para isso, continuei, não se incomode. li, até favor não ir; porque vendo-a não me saberei dominar, e posso causar-lhe algum horrível sofrimento.
— É justo! Servi apenas para matar um desejo! E hoje nem para isso!.. .
Ainda voltei uma vez à casa de Lúcia.
Era natural; à medida que eu sentia essa criatura desapegar-se de mim, agarrava-me a ela com a ânsia do náufrago. Suspeitava que Lúcia tinha um amante. Queria desenganar-me; o acaso favoreceu-me.
Vi entrando na sala um objeto que pela sua novidade atraiu logo a minha atenção. Era um elegante vaso de cristal cor de leite, representando uma tuberosa; a flor que lhe servia de bocal ostentava uma camélia soberba; o ciúme, que é instinto e faro da paixão, descobriu logo entre o pé do vaso e o mármore do consolo a ponta de uma carta em papel rosa.
Lúcia teve um sobressalto quando entrei. Podia ser um assomo de alegria, por me ver depois de três dias de ausência; podia ser também um movimento de contrariedade. Atribui ao segundo motivo.
— Estavas esperando alguma pessoa?
— Já ninguém me visita.
— Por que razão?
— Os meus antigos amantes se enfastiaram de mim! disse com voz amarga.
— Virão novos! Já eles se anunciam! respondi indicando a camélia. É naturalmente pela pessoa que te mandou esta flor, que esperas.
Lúcia ergueu os olhos surpresos e pareceu ver pela primeira vez o vaso e a camélia.
— É um lindo presente com efeito! disse ela chegando-se ao consolo. E uma flor tão bonita não tem perfume!...
Levantando o vaso, descobriu a carta que eu entrevira, e que ela passou-me sem ter rompido o fecho.
— Leia.
Corri os olhos pela carta; era do Cunha; insistia com Lúcia para aceitar o seu amor, oferecendo-lhe as condições mais brilhantes que poderia desejar uma mulher na sua posição. Enquanto lia, ela se aproximara da janela.
— Ah! que pena! exclamou rindo.
O vaso e a flor acabavam de despedaçar-se nas pedras da calçada. Lúcia tomou-me a carta das mãos e sem ter rasgou-a friamente.
— Não desconfie; desse menos que de qualquer outro. Já foi meu amante; uma noite vi sua mulher, que ele abandonava por minha causa, triste e pensativa. Desde esse momento deixou de existir para mim.
Lembra-se do que me dissera o Cunha no teatro? Era assim que caluniavam essa moca; porque também ela punha sobre o coração a máscara do capricho.
Tínhamos esquecido o Cunha e falávamos de outras coisas.
— Decididamente, Lúcia, não queres mais saber de mim?
— Eu!... Se é preciso, suplico-lhe de joelhos que me venha ver!
Abanei a cabeça.
— Se tens um amante e desejas guardar-lhe fidelidade, é diferente; podemos ficar amigos e ver-nos ainda de vez em quando. Mas para satisfazer um capricho pueril! Não estou disposto.
— Então se eu tivesse um amante, faria o que eu lhe peco ? Viria ver-me ?
— Nesse caso haveria um motivo justo, que eu respeitaria.
— Pois bem; eu tenho!
— Um amante?
— Sim!
— Quem é ele?
— Não sei. Ainda não tenho; mas terei amanhã; hoje, se quiser.
— Agora mesmo! Serei eu!
— Oh! não!
— Bem vês que não passa de um capricho. Já me tinham falado dessa tua excentricidade. Gostas de fechar a porta aos teus amantes, quando eles menos esperam; talvez para puni-los do prazer que lhes deste! É uma vingança! — Aqueles que lhe falaram assim tinham razão; mas nenhum, fique certo, se queixará de o ter eu enganado.