Os passageiros do Colima
IV


Graças á recommendação de Mister Randolph, o commandante do Colima me reservara á sua direita o primeiro logar na meza das refeições.

Em frente a mim, sentava-se a minha interlocutora de momentos antes.

Seguia-se-lhe uma senhora de certa idade, severa e secca, trajos de viuva, cabellos negros e duros de cabocla, — a mãi da precedente.

Raros os mais passageiros, que mal occupavam as poltronas fixas do refeitorio.

Facto curioso a rapidez com que se estabelecem intimidades a bordo. Bastam poucas horas de convivio para que se tratem como se de muitos annos mantivessem relações todos quantos a sorte congrega n’uma excursão maritima.

Sabem-se logo e insensivelmente nomes, posições sociaes, projectos, cabedaes, particularidades de cada um. Trocam-se confidencias: ligações se produzem, derivadas talvez da solidariedade inconsciente dos riscos communs.

Não terminára o lunch e eu já possuia informações precisas sobre os meus companheiros.

Era effectivamente Lupe a gentil mexicana de fronte de mim.

Senorita Lupe chamavam-lhe em castelhano. O commandante dizia reverente — Miss Hedges.

Do sexo feminino havia apenas, além desta: a sua progenitora, a supra-dita viuva; Miss Jackson, velha americana, de oculos e bandos, socia do club exoterico de Nova York; e D. Maria Augusta Gordó de Zorraquinos, hespanhola, mulher de um commerciante de Guatemala. Quarentona a ultima, gorducha, o cabello complicadamente penteiado, illuminada pelos reflexos posthumos de fenecida boniteza.

Ao pé das tres matronas, avultavam intensamente a graça e a mocidade de Lupe.

Representantes masculinos enumeravam-se: um judeu allemão, negociante de joias; um engenheiro hollandez, por nome Pfeiffer, empregado nas obras do canal de Panamá; dois inglezes feios e insignificantes; e o insulso annotador d’estas linhas. Em terceira classe, amontoavam-se á prôa trabalhadores para as mencionadas obras, entre os quaes muitos chinezes.

Instruiram-me tambem desde cedo sobre a origem da exquisita designação — Lupe. Simples abreviatura de Guadalupe, localidade mexicana famosa por varios motivos. Encerra ella um sanctuario, que ha quatro seculos attrahe sem cessar fanaticos peregrinos. Milagrosa imagem effectuou ali, á semelhança de Lourdes, repetidas apparições, sendo a primeira, pouco depois da conquista hespanhola, a um indio recemconvertido. É Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira do Mexico. Foi no mesmo sanctuario que se tramou o movimento de independencia contra a dominação castelhana, capitaneado pelo cura Hydalgo.

O estandarte da revolta arvorava a imagem da santa. Guadalupe — Hidalgo denomina-se hoje a cidade.

Ao ser acclamado imperador, instituio o general Agostinho Iturbide, em 1822, a ordem nacional de Guadalupe, supprimida com o seu ephemero imperio e restabelecida, em 1864, por Maximiliano. Muito commum em mulheres mexicanas o nome baptismal Guadalupe, tal como Laffayette (pronuncia-se Lafahitte) nas dos Estados Unidos.

A graciosa alcunha Lupe evocava, portanto, idéas de revolução, liberdade e fé.

A sua sonoridade incisiva, de sabor a um tempo avelludado e acre, quadrava maravilhosamente com a estranha creatura que a usava. Parecia antes rebuscado adjectivo adrede escolhido para a qualificar e determinar. Nos labios della propria as duas syllabas de Lupe adquiriam encanto ineffavel. Proferindo-as, ella estendia a bocca em fórma de bico, como se fosse dar um beijo; e o som se exhalava voluptuoso, acariciando o ouvido, electrisando deliciosamente os nervos dos presentes, qual offego supplice de amor.

Durante a collação, ora em hespanhol, ora em inglez, Lupe dirigio a palavra a todos os circumstantes, menos a mim. Scintillante e escarninha affigurou-se-me a disposição de seu espirito. Ligeiramente aggressivas as phrases que articulava.

Mais de uma vez senti que me fitava de soslaio. E o seu olhar produzia a sensação de uma alfinetada subtil.

Encarquilhada e macambuzia, guardava a mãi obstinada reserva. Mas, de quando em quando, a alguma mordacidade da filha, sorria silenciosamente, exhibindo eburnea dentadura.

No correr do dia, não mais me encontrei com as mexicanas, recolhidas ao camarote. Á hora do jantar Lupe demorou-se. Appareceu, já iniciado o serviço, penteiada de festa, o vestido negro quasi decotado, ar cerimonioso, flores na abertura do seio.

Permaneceu, como no lunch, calada para commigo, emquanto entabolava vivaz conversa com os mais, sem excepção. Extraordinaria, decididamente, a sua maliciosa verve esfusiante.

Ao nos levantarmos, disse-me bruscamente:

Dom brazileiro, queira ter a galanteria de me offerecer o seu braço.

Obedeci surprehendido. Subimos ao convez. Suavissima a noite; juncado o céu de constellações. O Colima arfava languido sobre ondas placidas. O Pacifico justificava o seu titulo. Singrava o navio entre alas de phosphorescencias; dir-se-hia arrastar longa cauda de flóccos argenteos; e tremeluziam-lhe lanternas nas vergas altas, — avançadas atalaias de luz.

Lupe embuçou a cabeça e os hombros n’uma mantilha, cujas franjas escuras lhe sublinhavam o resplendor do olhar. Reclinou-se, quasi deitada, n’uma chaise-long, conchegando aos pés espessa manta escosseza. Indicou-me depois, com imperativo gesto, cadeira igual ao lado d’ella.

Houve pequeno silencio.

— Falle-me do seu paiz, dom brazileiro, — murmurou por fim. Falle-me longamente. Veja se consegue effeitos de eloquencia. Acalente-me ao som de mavioso hymno á sua terra, que parece amar tanto.