As joias do judeu
VIII


Encantadora manhan! O Colima deslisava pelo mar compacto e liso, com a macieza de um patinador sobre camadas de gelo azul.

Ermo de nuvens o espaço. Os floccos do vapor quedavam indecisos, como receiosos de partir para fluctuar sósinhos, no firmamento fulguroso e vasio. Á mais tenue aragem, se dissolviam em diaphaneidades opalinas.

Passageiros e tripolantes passeiavam no tombadilho, leves e bem dispostos. Lupe balouçava-se indolente n’uma cadeira de balanço, os olhos semi-fechados, na deliciosa morbideza que insinuam calmarias no alto mar.

Mas Salomon, o viajante judeu, trouxe do seu camarote pesado involucro. Abrio-o com precauções meticulosas. Era um cofre portatil, armado de complexas fechaduras. Amontoavam-se dentro pequenos estojos multicôres de velludo e setim.

Collocou-os Salomon enfileirados n’um banco e os foi descerrando carinhosamente, como se guardassem sagradas reliquias. Continham as joias em que elle negociava. Talvez, mesmo a bordo, effectuasse feliz transacção. Quando menos, lisongear-lhe-hia o amor proprio estadear as suas riquezas. Ou movia-o simplesmente a volupia argentaria de mirar as faiscações do sol na pedraria rara. D’ahi a exhibição.

Accorreram todos, tocados da hypnotisação que exercem sobre os transeuntes vitrinas de ourivesaria. Lupe exultava, enthusiasmada. Com suspiros de prazer e exclamações de jubilosa surpreza, examinava os preciosos artefactos, finamente burilados.

— Que bonito! Que mimo! reparem n’esta cinzeladura! Calculem o valor deste brilhante!... — murmurava em extasis.

O judeu sorria ufano. Esplendido na realidade o seu sortimento!

E nos olhos da mexicana lucilavam fremitos de cubiça, saudades do tempo em que possuira primores iguaes, despeitos de já lhe não ser dado, em troca de miseraveis cedulas bancarias, adquirir n’um momento, para lhe sublinhar a belleza, os mais deslumbradores d’aquelles magnificos adornos...

Dir-se-hia que as suas pupillas e o esmalte de seus dentes trocavam com as gemmas scintillações fraternaes.

De repente, a impetuosa moça não se poude mais refreiar. Com um movimento rapidissimo, arrecadou no vestido, regaçado como uma bolsa, os escrinios expostos, e, carregando o valioso volume, desappareceu a correr.

Profunda estupefacção dos assistentes! Salomon, as feições decompostas, precipitou-se atraz d’ella.

— Nada receie, — gritei-lhe. Não ha onde fugir a bordo, nem se pódem dar extravios.

Minutos depois Lupe voltava. Puzéra, com incrivel presteza, um antigo vestido de baile, lembrança da extincta opulencia, ordenara os cabellos em festivo penteiado, e collocara em si todos os braceletes, anneis, collares, broches e diademas do judeu.

Que linda e singular estava, — princeza encantada de legendas arabicas, constellação viva, formoso ser phantastico, recamado de luz!...

Circumdava-a um halo de ouro. Da cabeça aos pés resplandecia. E os rubins, esmeraldas, diamantes, amethystas, topazios, saphiras, profusamente fixados em seu corpo, desferiam incisivos relampagos azues, crystalinos, verdes, roxos, roseos, rubros, no meio dos quaes languidas as perolas soltavam claridades pallidas de luar.

Idolo extranho; flôr de sonho, crivada de pyrilampos divinos!

Lupe deixou que a admirassemos á vontade n’aquella apotheóse. Aprumava soberba o porte, donosa e feliz. Depois debruçou-se da amurada, bradando:

— Eis-me em trajo proprio para visitar nymphas. E se me atirasse agora ao fundo d’agoa?!... Teria, ao menos, mortalha e sepulchro dignos de mim...

E inclinou-se mais no parapeito, como se tencionasse realmente effectuar a ameaça. Da sua imagem, pendida sobre as ondas, brotavam reflexos fugazes e tremeluzentes de fabulosa apparição.

Mas o judeu impacientissimo julgou que o gracejo se prolongava demasiado. Correu para ella, as mãos estendidas, exclamando, entre irritado e supplice:

— Miss Hedges... Senorita Lupe... Senorita Lupe...

A mexicana fitou-o com intraduzivel desdem. Em seguida, um a um, lentamente, restituiu-lhe os adereços, desprendendo-os de si com visivel pezar.

Salomon submettia cada joia a severo exame, para verificar se nada lhe faltava.

E no despojar de Lupe havia qualquer cousa de tragico, — a solemnidade triste dos irreparaveis sacrificios. O seu vestido de luxo appareceu, por fim, roto, manchado, lamentavel resto de outr’ora.

Ella cahio então n’uma cadeira, escondendo o rosto nas mãos.

— Envergonhada da brincadeira, — interpretou-se em roda.

Só eu percebi quanto desespero alanceava a alma da pobre moça.

Pela primeira vez — quem sabe? — acabava de ter, á rutilação d’aquellas joias, inacessiveis para ella, como estrellas, a visão nitida da sua miseria, a amarga consciencia da sua ruina.