Setembro de 1878 ia em meados, e não apareciam no céu límpido, de azul polido e luminoso, indícios de auspiciosa mudança de tempo. Não se encastelavam no horizonte, os colossais flocos a estufarem como iriada espuma; nem, pela madrugada, cirros, penachos inflamados, ou, em pleno dia, nuvens pardacentas, esmagadas em torrões. À noite, constelações de rutilante esplendor tauxiavam o firmamento, e a lua percorria, melancólica, a silenciosa senda.

Como que se percebia no abismo do espaço infindo, a eterna gestação do cosmos, operoso e fecundo, em flagrante criação de mundos novos. E, na gloriosa harmonia dos astros, na expansão soberba da vida universal, a terra cearense era a nota de contraste, um lamento de desespero, de esgotamento das derradeiras energias, porque o sol sedento lhe sorvera, em haustos de fogo, toda a seiva.

Olhares ansiosos procuravam, em vão, o fuzilar de relâmpagos longínquos a pestanejarem no rumo do Piauí, desvelando o perfil negro da Ibiapaba. Nada; nem o mais ligeiro prenúncio das chuvas de caju.

O sertão ressequido estava quase deserto: campos sem gados, povoações abandonadas. E a constante, a implacável ventania, varrendo o céu e a terra, entrava, silvando e rugindo, as casas vazias, como fera raivosa, faminta, buscando e rebuscando a presa, e fazendo, com pavoroso ruído, baterem as portas de encontro aos portais, num lamentoso tom de abandono.

As pastagens de reserva, nos pés de serras, protegidas por espessa facha de catingas impenetráveis, onde se criavam famosos barbatões bravios, haviam sido devoradas ou estruídas e pesteadas pela acumulação de rebanhos em retiradas numerosas. E, à grande distância, sentia-se o fedor dos campos inficionados por milhares de corpos de reses em decomposição.

Não havia mais esperança. Os horóscopos populares aceitos pela crendice, como infalíveis: a experiência de Santa Luzia, as indicações do Lunário Perpétuo e a tradição conservada pelos velhos mais atilados, eram negativas, e afirmavam uma seca pior que a de 1825, de sinistra impressão na memória dos sertanejos, pois olhos-d'água, mananciais que nunca haviam estancado, já não merejavam.

Os socorros, distribuídos pelo Governo, não podiam chegar aos centros afastados, por falta de condução, ou eram os comboios de víveres assaltados por bandos de famintos, malfeitores e bandidos, organizados em legiões de famosos cangaceiros.

Em tão aflitiva conjunção, era natural que os retirantes, por instinto de conservação, procurassem o litoral, e abandonassem o sertão querido, onde nada mais tinham que perder; onde já não podiam ganhar a vida, porque à miséria precedera o fatal cortejo de moléstias infecciosas, competindo com a fome e a sede na terrível faina de destruição.

Luzia encontrara em Sobral, abrigo e fáceis meios de subsistência; mas pressentia iminente perigo do capricho ou paixão brutal de Crapiúna. Era forçoso procurar outro refúgio, e por isso espreitava, ansiosa, os mais ligeiros sintomas da moléstia da mãe, sinais de melhora, para empreenderem a anelada viagem aonde a distância a preservasse dos contínuos sustos e vexames afrontosos. Não confiava no projeto de mudança para a ladeira da Mata-Fresca, dependente de condição, que não resolvera ainda aceitar, além de que ficaria a duas léguas, apenas, da cidade.

Já não ia, diariamente, ao trabalho. Ficava em casa, tratando com desvelado carinho, a pobre mãe, cada vez mais trôpega. Felizmente, o capitão João Braga lhe abonava as rações, e Alexandre não se descuidava de repartir com elas, quanto ganhava, apesar da relutante recusa, oposta à sua espontânea generosidade. Ele vivia folgadamente, porque passara de apontador a fiel do armazém, onde havia grande depósito de mantimentos e todos os valores do almoxarifado. Tinha de mais para si, e doía-lhe no coração não poder aliviar as necessidades dos pobres, seus companheiros de infortúnio.

Um dia, pela manhã, encontrou Luzia desanimada: a mãe passara mal a noite, inquieta, afrontada, como se lhe apertassem o peito ou não houvesse bastante ar respirável no estreito quarto.

— Deus não quer, filha – dizia a velha com o seio ofegante e mal articulando as palavras – Deus não quer... Seja feita a sua... santa... vontade...

— Mãezinha tem tido isto tantas vezes – ponderava Luzia, afetando serenidade – Isto é puxado... Cheire este frasco...

— Parece que tenho ar encausado... aqui... Olha, sinto uma bola... qualquer coisa que me tapa o fôlego. Abre bem a porta... Abana-me... Se eu tomasse o vomitório de papaconha...

— Corno está, tia Zefinha? – inquiriu Alexandre, chegando à porta do quarto.

— Como quem está se acabando... Ai Jesus!... Que aflição!...

— Por que não toma aquela garrafa que o doutor receitou?...

— Tenho medo...Disse-me a Chica Seridó que tem veneno... doreto...

— Então ela sabe mais que o doutor?!... Tome, experimente...

— Ah, Alexandre; já pedi, roguei, não sei mais que fazer para Mãezinha tomar a receita – observou Luzia, quase em lágrimas.

— Há de ser o que Deus for servido...

— Mas tome sempre, tia Zefinha. Faça-me esta vontade. É para seu bem...

— Enfim – concluiu a velha condescendendo – vá lá... No meu estado, só um milagre... Não quero que você diga que não o atendi antes de morrer...

E tomou uma colher da poção, administrada pela filha.

— Aqui está, na garrafa – disse Alexandre repetindo o que estava escrito no rótulo – uma colher das de sopa antes de cada refeição. Quando voltar do serviço, quero encontrar vosmecê aliviada. Adeus, Luzia! O sol já está alto. Vou andando... E eu que devia estar no armazém às seis em ponto...

Desde o dia em que foram alvo das chufas da malta de vadias, capitaneadas pela Romana, Alexandre apenas uma vez pedira a Luzia, com muitos rodeios e acanhamento, resposta à proposta de casamento. Ela, porém, nada lhe respondera, limitando-se a, com um gesto de desânimo, indicar-lhe a mãe, como se a doença dela fosse invencível obstáculo.

Ocultava ao moço, resignado, nutrido de esperanças, o haver recebido cartas de Crapiúna, qual mais apaixonada, qual mais recheada de expansões de amor, acrisolado pela resistência; todas salpicadas de alusões iradas ao outro mais afortunado, e ameaças de não poder sofrear os estos de ciúme que o devoravam, ou de acabar com a própria vida, porque para ele só havia Deus no céu e ela na terra.

Ao menino, que lhe levava as cartas, Luzia respondia invariavelmente: - Diga esse homem que me deixe sossegada, que não se meta com a minha vida! Mas, por um impulso de curiosidade, muito humano e sobretudo muito feminino, tivera a fraqueza de lê-las, o que ela considerava uma vergonha, senão crime injustificável. Também não ousara contar a Alexandre que o soldado havia aparecido várias vezes na residência. Uma noite passava ele com o Belota e tivera o atrevimento de fazer-lhe uma serenata cantando à viola, quase no terreiro da casa, modinhas e canções eróticas, que terminavam nesta saudosa endecha:

"Vou me embora, vou me embora,
Como fez a saracura;
Bateu asas, foi cantando:
Mal de amores não se cura!...

Ouvindo-o, Luzia tremia de indignação e terror, suspirando de alívio, quando se sumiu ao longe, o pesqueiro batido, acompanhando a voz fanhosa de Belota, a cantar:

"Quem quiser ser bem-querido,
Não se mostre afeiçoado,
Que o afeto conhecido,
É sempre o mais desprezado."

— Não sei como essa gente ainda tem coragem de cantar – gemia a velha Zefa – É uma falta de coração...

Pouco depois da partida de Alexandre, prometendo voltar cedo com o doutor Helvécio Monte, surdiu o pequeno mensageiro com uma, carta, que deixou sobre o pilão, por ter Luzia recusado recebê-la. Entretanto não pôde ainda resistir à curiosidade, e reincidiu na culpa nefanda de abri-la. E leu:

"Minha Santa Luzia – Esta tem por fim unicamente, dizer-lhe que se há de arrepender da sua ingratidão e quem lhe diz isto é o seu amante fiel até a morte – Crapiúna."

— É preciso acabar com isto, custe o que custar, – murmurou a moça inflamada de cólera – Este malvado me há de desgraçar...

Passou o dia preocupada, e procurando espairecer com desvelos à mãe, mais acalmada com a poção de iodureto de potássio, o venenoso remédio, que, na opinião da Seridó, fazia apodrecerem os ossos, caírem os dentes e pôr o estômago em carne viva, quando seria mais eficaz a purga de mel de abelha e um emplastro de sabão da terra com um pinto pisado vivo; ou com o vomitório de cardo-santo, chá de erva-doce para desempachar o ventre, e raiz de pega-pinto por causa da retenção de ourinas.

— Com esses remédios sarara a defunta Desidéria – afirmava a feiticeira – que padecia de um puxado com apertos do coração e uma dor que lhe tomava o fôlego, respondia – lá nela – nas cruzes e alastrava pelo braço esquerdo, que às vezes ficava esquecido. Vivera a enferma muito tempo, trabalhando como uma negra, apanhando sol e chuva; e, se não fora um ataque violento que não deu tempo para nada ainda estaria vivendo, com a graça de Deus. Remédio de botica havia levado muita gente desta para melhor vida.

Luzia inquietava-se com a demora de Alexandre, que era pontual à hora do jantar, servido sobre uma tosca mesa improvisada com uma tampa de caixão de pinho, apoiada em quatro forquilhas.

O sol descambava, deixando as cumeadas áridas da serra do Rosário, quando apareceu Teresinha quase a correr e de semblante apavorado.

— Que foi? – perguntou Luzia sobressaltada – Que aconteceu? Que é do Alexandre?...

Teresinha tomou-lhe do braço, levou-a para fora do alpendre e disse-lhe, com voz sacudida de tristeza:

— Uma desgraça!...

— Brigaram? – inquiriu Luzia ansiosa, encarando no semblante da moça ruiva para lhe aprender a misteriosa notícia.

— Imagina que eu voltava da obra e, quando dei por mim, foi com a gralhada de Romana, aplaudindo com as parceiras. Aquelas não-sei-que-diga riam como doidas varridas. Uma dizia: Foi bem feito! A outra resmungava: Bulir com o de-comer dos pobres!... Que miséria!... Se fosse só feijão – grazinava a deslambida da Romana – meu Deus, perdoai-me... Passou as unhas no dinheiro. Quem haverá de dizer – rosnava a Joana Cangati, aquela sirigaita, que tem o bucho caído – que aquele sonso...

— Mas... que aconteceu, mulher de Deus?

— Cheguei-me a elas e sube então... Imagina como fiquei estatelada, e caí das nuvens quando me disseram que Alexandre estava preso...

— Preso!... – exclamou Luzia aterrada – Preso?!... Preso por quê?...

— Foi o que perguntei. Então a avoada da começou a caçoar: Ora o moço precisava preparar-se para o casório; não teve dúvidas; passou a mão...

— Mas... é mentira!...

— Eu também tenho Alexandre em conta de pessoa incapaz de se sujar com o alheio; mas a verdade é que foi preso e lá está, na casa da Comissão, com o Delegado...

— É impossível, Teresinha. Você não acha que Alexandre é incapaz de tamanha miséria?...

— É o que lhe estou dizendo, minha camarada. Está preso e não tem quem puna por ele: todos o acusam, porque tinha a chave do armazém; apareceu hoje fora de horas...

— Oh! Meu Deus! Era só o que faltava! Juro que é falso! Caia eu morta, se não tenho certeza do que digo.

E, dirigindo-se, firme e resoluta, ao quarto, abrigou-se no amplo lençol branco, dizendo à mãe, surpreendida pelos modos agitados.

— Volto já, mãezinha... É um instantinho... Teresinha fica...

Sem atender às observações da velha, passou rápida ao alpendre, e suplicou:

— Você faz companhia àquela pobre... minha amiga. Faça-me esta esmola pelo amor de Deus...

— Que vai fazer?

— Não sei... Deixe-me...

Com um movimento violento desvencilhou-se de Teresinha, que tentara detê-la, e partiu em desvairada corrida.