Em casa de GOMES. Sala de visitas.
CENA PRIMEIRA
editarELISA e GOMES
GOMES - Já estás cosendo, minha filha?
ELISA - Acordei tão cedo... Não tinha que fazer.
GOMES - Por que me ocultas o teu generoso sacrifício? Cuidas que não adivinhei?
ELISA - O que, meu pai?... Que fiz eu?...
GOMES - São as tuas costuras que têm suprido esta semana as nossas despesas. Conheceste que eu não tinha dinheiro para os gastos da casa e não me pediste... trabalhaste!
ELISA - Não era a minha obrigação, meu pai?
GOMES - Oh! E preciso que isto tenha um termo!
ELISA - Também hoje é 3 do mês... Vm. receberá o seu ordenado.
GOMES - Meu ordenado?... Já o recebi.
ELISA - Ah! Precisou dele para pagar a casa?
GOMES - Depois que morreu tua mãe, Elisa, tenho sofrido muito. Além dessa perda irreparável, as despesas da moléstia me atrasaram de modo, que não sei quando poderei pagar as dívidas que pesam sobre mim.
ELISA - E são muitas?
GOMES - Nem eu sei... Já perdi a cabeça! Mas isto vai acabar... Não é possível viver assim.
ELISA - Que diz, meu pai!
GOMES - Perdoa, Elisa. Foi um grito de desespero... Às vezes, confesso-te, tenho medo de enlouquecer! Até logo.
CENA II
editarELISA e JOANA
JOANA - Bom dia, iaiá.
ELISA - Adeus, Joana.
JOANA - Iaiá está boa?
ELISA - Boa, obrigada.
JOANA - Sr. Gomes já foi para a repartição...
ELISA - Saiu agora mesmo.
JOANA - Encontrei ele na escada. Hoje não é dia de lição de nhonhô Jorge?
ELISA - Segunda-feira.... É, e ainda nem tive tempo de passar os olhos por ela.
JOANA - Então como há de ser?
ELISA - Estou acabando esta costura. Já vou estudar.
JOANA - Pois enquanto iaiá cose, eu vou arrumando a sala: pode vir gente.
ELISA - Mas, Joana... Teu senhor não há de gostar disto!
JOANA - De que, iaiá?
ELISA - Tu nos serves, como se fosses nossa escrava. Todas as manhãs vens arranjar-nos a casa. Varres tudo, espanas os trastes, lavas a louça e até cozinhas o nosso jantar.
JOANA - Ora, iaiá! que me custa a fazer isso?... Nhonhô sai muito cedinho, logo às 7 horas; eu endireito tudo lá por cima, num momento, porque também tem pouco que fazer; e depois venho ajudar a iaiá que se mata com tanto trabalho.
ELISA - E o Sr. Jorge sabe disto?
JOANA - Que tem que saiba?... Não é nada de mal!
ELISA - Muitos senhores não gostam que seus escravos sirvam a pessoas estranhas.
JOANA - Iaiá não é nenhuma pessoa estranha... Depois, Vm. não conhece meu nhonhô? Não sabe como ele é bom?...
ELISA - Oh! sei!... Há um ano que é nosso vizinho, e nesse pouco tempo quanto lhe devemos!
JOANA - Mas iaiá é uma moça bonita!... E eu que sou sua mulata velha... desde que nhonhô Jorge nasceu que o sirvo, e nunca brigou comigo! Se ele não sabe ralhar... Olhe, iaiá! Todas as festas me dá um vestido bonito... E não dá mais porque é pobre!
ELISA - Foste tu que o criaste?
JOANA - Foi, iaiá. Nunca mamou outro leite senão o meu...
ELISA - E por que ele não te chama - mamãe Joana?
JOANA - Mamãe!... Não diga isto, iaiá!
ELISA - De que te espantas? Uma coisa tão natural!
JOANA - Nhonhô não deve me chamar assim!... Eu sou escrava, e ele é meu senhor.
ELISA - Mas é teu filho de leite.
JOANA - Meu filho morreu!
ELISA - Ah! Agora compreendo!... Esse nome de mãe te lembra a perda que sofreste!... Perdoa, Joana.
JOANA - Não tem de que, iaiá. Mas Joana lhe pede... Se não quer ver ela triste, não fale mais nisto.
ELISA - Eu te prometo.
JOANA - Obrigada, iaiá. (Pausa.)
ELISA - Devem ser perto de nove horas... O Sr. Jorge não tarda.
JOANA - É mesmo!... Ele que vem sempre à hora certa.
ELISA - Nem tenho vontade de estudar.
JOANA - Estão batendo.
CENA III
editarELISA, JOANA e PFIXOTO
PEIXOTO - Viva, minha senhora! O Sr. Gomes?
ELISA - Há pouco saiu.
PEIXOTO - Já saiu! Tão cedo!... Ainda não são nove horas.
JOANA - Meu senhor, ele teve que fazer.
PEIXOTO - Nem de propósito! Sempre que o procuro, o Sr. Gomes não está em casa.
ELISA - O senhor não quer sentar-se?
PEIXOTO - Obrigado; tenho pressa.
ELISA - Por que não o procura na repartição?
PEIXOTO - Não estou para isso. Queria dizer-lhe que o Peixoto aqui veio e voltará dentro de meia hora.
ELISA - Sim, senhor.
PEIXOTO - Sem mais!
CENA IV
editarJOANA e ELISA
JOANA - Cruzes!... Que homem grosseiro, minha Virgem Santíssima!... Um senhor assim era um purgatório.
ELISA - Coitado! A culpa não é dele!
JOANA - De quem é então?
ELISA - Dos pais, que não lhe souberam dar educação.
JOANA - Que bom coração tem iaiá!... Desculpa tudo.
ELISA - Para que me desculpem também os meus defeitos, Joana.
JOANA - É o que iaiá não tem. Oh! Joana sabe conhecer gente! E então iaiá que está mesmo mostrando o que é, nesse rostinho de prata!
ELISA - Deixa-te disso, Joana.
JOANA - Ah! se iaiá soubesse como eu lhe quero bem!...
ELISA - Assim te pudesse eu agradecer como desejava!
JOANA - Inda mais, iaiá?
ELISA - Estás brincando!... Nunca te dei nada.
JOANA - Então iaiá!... Cuida que é pouco ver meu nhonhô feliz?
ELISA - Joana!...
JOANA - Não se zangue, não, iaiá, com sua mulata velha.
ELISA - Para que falas dessas coisas? Não gosto.
JOANA - Está bom! Eu calo a boca. Então ele não merece?
ELISA - Merece muito mais; porém...
JOANA - Ora, iaiá!... Não disfarce!...
ELISA - Outra vez?
JOANA - Eu só peço uma coisa. Nosso Senhor não me mate sem que eu veja isso. Há de ser uma festa!..
ELISA - Queres que eu me agaste deveras, hein?
JOANA - Não, iaiá, não! Mas que noivo bonito, e a noiva, hi!... Feitinhos um para o outro!
ELISA - Eu te peço, Joana...
JOANA - Nesse dia... Olhe, iaiá! Hei de pôr meu cabeção novo, como as mulatinhas da Bahia... Que pensa! Não faça pouco na sua escrava, iaiá! Joana também já foi moça... sabia riçar o pixaim e bater com o tacão da chinelinha na calçada; só - taco, taco, tataco! Oh! hei de me lembrar do meu tempo... Se eu já estou chorando de contente!... E meu nhonhô como não há de ficar alegre!
ELISA - Não gosto destas graças, já te disse.
JOANA - Que mal faz? É uma coisa que há de acontecer.
ELISA - Estás bem livre!
JOANA - Se iaiá não pagasse a meu nhonhô todo o bem que lhe quer...
ELISA - Que farias?
JOANA - Eu, iaiá?... Nada! Que pode fazer uma escrava?... Mas iaiá era ingrata!
ELISA Pois serei.
JOANA - Iaiá jura?... Não é capaz!... Nem que esse coração não estivesse aí saltando!
ELISA - Se continuas... Vou-me embora! (Batem.)
JOANA - Querem ver que é nhonhô!
ELISA - Bico!... Ouviste?
JOANA - Joana sabe guardar um segredo, iaiá.
CENA V
editarAs mesmas e JORGE
JORGE - Como passou, D. Elisa?... Ah! Joana está lhe fazendo companhia!
ELISA - Veio conversar comigo.
JORGE - Quando precise de mandar por ela fazer alguma coisa, não tenha acanhamento, D. Elisa.
ELISA - Já lhe sou tão obrigada, Sr. Jorge!
JOANA - Eu não lhe disse, iaiá?
JORGE - O quê?
JOANA - Não vê, nhonhô, que estes dias, desde que o escravo do Sr. Gomes foi doente para a Misericórdia, eu venho fazer algum serviço, pouco...
JORGE - Tu és sempre boa, Joana!
JOANA - Não digas isso, nhonhô!
JORGE - Digo, sim! - D. Elisa, creio que minha mãe, a quem não conheci, não me teria mais amor do que esta segunda mãe, que me criou.
JOANA - Hô gente, nhonhô! Isso são modos de tratar sua escrava.
ELISA - O Sr. tem razão, Sr. Jorge.
JOANA - Não tem! Não tem!
ELISA - Basta ouvi-la falar do senhor.
JORGE - Ah! Ela falou-lhe de mim?... Que disse?...
JOANA - Nada, nhonhô.
ELISA - Em outras palavras, o que o senhor acaba de repetir.
JOANA - Iaiá... Eu disse que queria bem a meu senhor, como uma escrava pode querer... só!
JORGE - Como uma escrava!... Sentes ser cativa, não é? JOANA - Eu!... Não, nhonhô! Joana é mais feliz em servir seu senhor, do que se estivesse forra.
JORGE - Bem sabes! Hoje é o dia de meus anos. Tenho um presente para ti.
JOANA - Nhonhô já me deu um este mês.
JORGE - Não faz mal. Pudesse eu dar-te quantos desejo. - Vamos à nossa lição, D. Elisa?
ELISA - Quando o senhor quiser.
JOANA - E eu vou cuidar da minha cozinha.
CENA VI
editarJORGE e ELISA
JORGE - Acho-a triste hoje.
ELISA - É engano seu. Nunca fui alegre.
JORGE - Perdão! Quando a conheci, a senhora tinha mais vivacidade do que tem hoje. Também não se diverte, não passeia.
ELISA - Sou pouco amiga de passear.
JORGE - Mas é necessário ter uma distração.
ELISA - Tinha uma de que muito gostava.
JORGE - Qual?
ELISA - A música, mas...
JORGE - Mas também enfastia. Não é?
ELISA - A mim, nunca.
JORGE - Pois está em suas mãos cultivá-la.
ELISA - Se estivesse!...
JORGE - Não a compreendo.
ELISA - Escute, Sr. Jorge. Há dias que tenciono dizer-lhe... porém falta-me o ânimo.
JORGE - O quê?... Diga, D. Elisa.
ELISA - Não posso continuar com as lições.
JORGE - Ah!... Tem outro mestre?
ELISA - Não seja injusto! Que melhor mestre podia achar do que O senhor? Eu é que não quero mais estudar.
JORGE - Por que, minha senhora?
ELISA - Não lhe posso dizer.
JORGE - Desculpe, se cometi uma indiscrição.
ELISA - Nenhuma... E demais, é preciso que o senhor saiba... Meu pai não pode... pagar-lhe...
JORGE - A senhora me ofende, D. Elisa!... Exigi alguma coisa?
ELISA - Oh! não!... E é por isso que lho disse... Já lhe devemos seis meses.
JORGE - Não fale nisto! Nunca foi minha intenção receber paga de tão pequeno serviço. Ao contrário, tinha-me por feliz em poder prestá-lo.
ELISA - Mas eu é que não devo.
JORGE - Por que me recusaria isto? Assim, fique tranqüila. Continuaremos com as nossas lições.
ELISA - Como?... Não tenho piano.
JORGE - E este?
ELISA - Meu pai quer vendê-lo... Precisa...
JORGE - É só esse o motivo?... Eu lhe emprestarei o meu. Nunca toco.
ELISA - Ainda quando aceitasse, o que não devia, o seu delicado oferecimento, Sr. Jorge, era impossível continuar.
JORGE - Entendo D. Elisa. A senhora procura um pretexto para despedir-me; e eu estou torturando-a com a minha insistência.
ELISA - Sr. Jorge!...
JORGE - Desculpe. Se tivesse percebido, há muito que me teria retirado.
ELISA - Meu Deus! Não me obrigue a confessar-lhe tudo!
JORGE - Adeus, minha senhora!
ELISA - Mas, Sr. Jorge...
JORGE - Tenho a consciência de que nunca lhe faltei ao respeito que devia...
ELISA - Pois bem... O senhor quer. Eu preciso trabalhar!... Preciso ganhar para viver!
JORGE - A senhora, D. Elisa?
ELISA - Bem vê que não tenho nem tempo, nem vontade para estudar!
JORGE - Perdoe-me! Estava tão longe de suspeitar!
ELISA - Ainda supõe que seja um pretexto?
JORGE - Esqueça o que lhe disse.
ELISA - Só me lembro do que lhe devemos. (Pausa.)
JORGE - Ouça-me, D. Elisa, e sirvam-me as suas lágrimas de testemunhas perante Deus. Há muito tempo que trabalho para conseguir um posição digna de lhe ser oferecida. Quer dar-me o direito de partilhar a sua sorte?... Responda-me! Eu lhe suplico!
ELISA - Não!... Não posso responder-lhe!... Nem aceitar. JORGE - Porque é pobre?... Também eu o sou! Seremos dois a lutar.
ELISA - Meu pai... lhe dirá... Eu não!
JORGE - Era minha intenção falar-lhe; mas antes quero o seu consentimento. Recusa-me?
ELISA - Não sei!
JORGE - Elisa!...
ELISA - Fale!...
JORGE - Obrigado, minha mulher!...
ELISA - Não me chame assim!
JORGE - Esse título me impõe o dever de fazer a sua felicidade, e me dá o direito de velar sobre a sua existência.
ELISA - Se meu pai não se opuser.
JORGE - Ainda quando ele se oponha, Elisa. Não contrariaremos a sua vontade, não esqueceremos os nossos deveres; mas a aliança pura de duas almas que se compreendem tem a sua religião.
ELISA - É meu pai!
JORGE - Vem a propósito.
ELISA - Mas não lhe fale agora, não.
CENA VII
editarOs mesmos e GOMES
JORGE - Bom dia, Sr. Gomes!...
GOMES - Ah!... Como passou, Sr. Jorge?... Desculpe!... Não tinha visto. (Senta-se distante.)
JORGE - Permite que continuemos?
GOMES - Pois não!
JORGE - (a ELISA) - Não quer dar a sua lição?
ELISA - (a meia voz) - Não posso cantar agora!... Não vê como estou toda trêmula!
JORGE - Pois toque um pouco.
GOMES (sentindo a falta do relógio) - Ah!... Que horas são?... Deixei o meu relógio a consertar.
JORGE - Nove e vinte.
GOMES - Já?... Não chega!... Que martírio!...
ELISA - Que tem, meu pai?
GOMES - Nada! Deixa-me! Estou aflito!... Espero uma resposta.
ELISA - Vm. está tão descorado!
GOMES - É o calor... O cansaço, talvez! Não te inquietes.
JORGE (a Elisa) - Seu pai está incomodado. Naturalmente deseja ficar só. Até logo.
ELISA - Sim! Até logo.
JORGE - Não se esqueça que me deu o direito de viver para a sua felicidade.
ELISA É coisa que se esqueça nunca?
JORGE - Se houver alguma novidade, mande-me chamar.
ELISA - Imediatamente.
JORGE - Sr. Gomes!...
GOMES - Já vai?
JORGE - Quando poderei falar-lhe hoje, que menos o incomode?
GOMES - À tarde... ou à noite.
JORGE - Eu passarei à noite. (Volta) Uma carta que acabam de entregar.
GOMES - Ah!...
CENA VIII
editarGOMES e ELISA
GOMES (lendo) - "Sinto muito... porém... as minhas circunstâncias..." É o que todos respondem!... Infames! Não se lembram que se hoje lhes peço as migalhas, já lhes dei a abastança.
ELISA - Que diz essa carta que o agonia tanto, meu pai? GOMES - O que há de ser, minha filha?!... Mais um ingrato a quem estendo a mão e que me repele com o pé.
ELISA - Não lhes peça nada!... Olhe: o nosso trabalho bastará para vivermos! Guarde o seu ordenado para pagar casa e vestirmos. Eu não preciso de nada. Das minhas costuras tirarei o necessário para os gastos diários.
GOMES - Não te iludas, Elisa! Podes te matar, mas não farás impossíveis.
ELISA - Há de ver.
CENA IX
editarOs mesmos e VICENTE
VICENTE - O Sr. Gomes, empregado público...
GOMES - Que deseja?
VICENTE - É V. Sa.?
GOMES - Um seu criado.
VICENTE - Então permita... Cito-o pela petição supra e seu despacho, do teor seguinte: - "Ilmo. Sr. Dr. Juiz Municipal da 3a Vara. Diz..."
GOMES - Peço-lhe que me dispense dessa formalidade.
VICENTE - Prescinde da leitura, neste caso?
GOMES - Sei de que se trata. É do meu senhorio?
VICENTE - Justamente! Mandado de despejo, dentro de 24 horas, por não pagamento de aluguéis.
ELISA - Meu Deus!
GOMES - Estou ciente, senhor.
ELISA - Mas então, meu pai?
GOMES - Tudo nos persegue, minha filha.
VICENTE - V. Sa. tem à mão papel e tinta para passar a contra-fé... senão dou um pulo à venda defronte.
ELISA - Aqui tem, senhor.
VICENTE - Qualquer pena serve.
ELISA - O senhor não poderá fazer alguma coisa a favor de meu pai?
VICENTE - Sou suspeito, Sra. Dona... Oficial do juízo!
ELISÁ - Então amanhã vêm deitar-nos fora de casa?
VICENTE - Qual!... O senhor seu pai não tem advogado? É pedir vista... embargos... agravo... Lá o doutor sabe bem disso! Tem chicana para um ano!
ELISA - Ouve, meu pai? - Ainda há remédio.
GOMES - Se eu tivesse dinheiro para pagar a advogados... Mas nesse caso pagaria antes ao meu credor, cuja dívida é justa.
VICENTE - É V. Sa. o primeiro réu que o confessa!
CENA X
editarOs mesmos e PEIXOTO
PEIXOTO - Com licença!
GOMES - Quem é?
ELISA - Ah! É o senhor que há pouco o procurou, meu pai.
PEIXOTO - Finalmente achei-o em casa.
GOMES - Sr. Peixoto, não me nego a pessoa alguma.
PEIXOTO - Não digo o contrário mas é difícil de o encontrar.
VICENTE - V. Sa. paga a contra-fé?
ELISA - Quanto é?
GOMES - Não tenho com que pagar, senhor.
VICENTE - Bem. É só para declarar.
PEIXOTO - Hum!... Já lhe anda esta gente por casa... Mau sinal!
VICENTE - Viva, Sr. Peixoto! (A GOMES) Aqui tem!
GOMES - Não preciso deste papel.
VICENTE - Em todo o caso aí fica. As ordens! Queira desculpar!
PEIXOTO (a meia voz) - Que foi isso?
VICENTE (idem) - Despejo!
PEIXOTO - Mau!
GOMES - Elisa, vai para dentro. Deixa-me conversar com o senhor.
CENA XI
editarGOMES e PEIXOTO
PEIXOTO - Sabe o que me traz aqui?
GOMES - Sim, senhor. Não lhe posso pagar.
PEIXOTO - Essa é boa! Por quê?
GOMES - Porque não tenho dinheiro.
PEIXOTO - Veremos.
GOMES - Enquanto conservei uma esperança, pedi-lhe que tivesse paciência. Hoje nada espero; nada peço.
PEIXOTO - Que fez do ordenado?
GOMES - Descontei-o seis meses adiantados para viver.
PEIXOTO - A sua mobília?
GOMES - Já não é minha. A pessoa que a comprou deixou-me alugada; e como não lhe tenho pago os aluguéis, vem buscá-la amanhã.
PEIXOTO - E os escravos que possuía?
GOMES - O último saiu desta casa sob o pretexto de ir para a Misericórdia, a fim de que minha filha ignorasse... Foi penhorado!
PEIXOTO - Mas há pouco, vi aqui uma mulata.
GOMES - Era talvez a escrava do meu vizinho do segundo andar.
PEIXOTO - Ah! É verdade. Conheço-a! Do Sr. Jorge?
GOMES - Sim, senhor.
PEIXOTO - Assim, nada lhe resta?
GOMES - Nada absolutamente! Estou na miséria!
PEIXOTO Pois não sei como há de ser. Não estou disposto a perder o meu dinheiro.
GOMES - Se eu pudesse vender-me para pagar-lhe, creia que não hesitaria. Não posso. Que hei de fazer?
PEIXOTO - O senhor não sabe?
GOMES - Sei!...
PEIXOTO - É arranjar dinheiro, se não quer ir parar à cadeia.
GOMES - O senhor insulta-me!
PEIXOTO - Se acha que isto é um insulto, nesse caso é a lei, não sou eu quem o insulta.
GOMES - Cometi algum crime?... É culpa minha se não tenho com que pagar-lhe?
PEIXOTO - Se fosse só isso!
GOMES - Explique-se!
PEIXOTO - É muito simples. O senhor negociou comigo uma letra de quinhentos mil-réis. Tinha o seu aceite; mas estava sacada e endossada pelo Sr. Francisco de Faria, negociante desta praça.
GOMES - O senhor deu-me por ela quatrocentos mil-réis, dos quais ainda tive de pagar cinqüenta ao Sr. Faria.
PEIXOTO - Esta não é a questão. O saque e o endosso são falsos.
GOMES - Falsos!...
PEIXOTO - Faria nunca sacou letras.
GOMES - Mas então quem era a pessoa com quem tratei?
PEIXOTO - É coisa que não me interessa. O senhor responderá à polícia.
GOMES - A policia?... Eu!
PEIXOTO - Está bem visto!... A letra foi negociada com o senhor. Tenho testemunhas. Que me importa essa pessoa?
GOMES - Mas, senhor, não é possível!... Não se condena assim um homem que não tem notas na sua vida.
PEIXOTO - Sr. Gomes, acabemos com isto!... Não lhe quero fazer mal; porém, se às cinco horas da tarde o senhor não tiver o dinheiro para pagar-me, às seis apresento a letra na polícia.
GOMES - Dê-me tempo ao menos para procurar o homem com quem tratei.
PEIXOTO - E o senhor tratou com alguém?
GOMES - Infame!... Duvida de minha palavra!
PEIXOTO - Ah! Quer brigar? Não estou disposto. Até às cinco horas.
GOMES - Meu Deus! Condenado como um falsário!... Não! Já resisti por muito tempo!
CENA XII
editarGOMES e ELISA
ELISA - Meu pai!...
GOMES - Tu ouviste, minha filha?
ELISA - Ouvi tudo.
GOMES - Pois então ouve o resto.
ELISA - Sossegue primeiro.
GOMES - Não há sossego nestes transes. Acabas de saber que estamos na miséria; nada temos, nada devemos esperar. Mas isto não era bastante; aí vem a desonra coroar a miséria.
ELISA -- Mas o que disse aquele homem é uma mentira, não é?
GOMES - Tu duvidaste um momento da probidade de teu pai?
ELISA - Oh! Não, não!
GOMES - Se eu quisesse, já não digo roubar, mas transigir com a minha consciência, os que agora nos desprezam, aí estariam ainda nos importunando com a sua amizade fingida e hipócrita.
ELISA - Não se defenda, meu pai. Eu creio na sua honra, como creio em Deus. Se lho perguntei é porque desejava ouvir de sua boca o desmentido de semelhante calúnia. (Pausa.)
GOMES - Elisa, minha filha!.. Este último golpe é mais forte que minha razão. Muitas vezes já a minha coragem vacilou encarando a miséria: um projeto louco me passou pelo espírito, e esteve bem prestes a realizar-se. Resisti, lembrando-me de ti. À vergonha, à infâmia, minha filha, não posso... não sei resistir!
ELISA - Não pense nisto, meu pai.
GOMES - Quando não se pode viver honrado, morre-se.
ELISA - Quer-se matar!
GOMES - Isto é vida?
ELISA - Meu Deus!... Por piedade!
GOMES - É necessário!
ELISA - E eu, e sua filha? Deixa-a ao desamparo?
GOMES - Preferes que a arraste à vergonha?... Não sentes que vais perder teu pai?... Escolhe! Vê-lo infame nas galés, ou chorá-lo morto, porém honrado.
ELISA - Mas ainda pode salvar-se!... Não há de ser condenado, não!
GOM ES - Refleti, Elisa. Que defesa tenho eu?... A minha palavra. E isto basta? Sem dinheiro, sem amigos?... Só me resta uma esperança; e é que esse homem não cumpra o que disse. Mas essa... não acredito nela.
ELISA - Por quê?... Esse homem deve ter um coração! Eu lhe suplicarei de joelhos.
GOMES - Tu sabes se te quero, Elisa, e com que extremos te amo. A única dor que levo desta vida é deixar-te!... Uma menina de 18 anos, sem pai, sem mãe, ao desamparo, é um anjo perdido neste mundo torpe. Toda a sua virtude não basta às vezes para defendê-la. Sucumbe à necessidade implacável..
ELISA - E quer me abandonar!
GOMES - Sou eu que te abandono, Elisa, ou é a fatalidade que me arranca de teus braços?
ELISA - Deus se há de condoer de nós!
GOMES - Se te sentes com força de lutar, minha filha, talvez a felicidade te depare um homem que te ame, e proteja a tua orfandade.
ELISA - E por que não nos protegerá a ambos?
GOMES - Eu já não preciso senão do perdão do Senhor e do teu. - Se, porém, te sentes fraca... Não te aconselho... Não digo que o faças... Segue o impulso de tua alma...
ELISA - Acabe, meu pai!
GOMES - O que ficar deste vidro...
ELISA - Ah!
GOMES - É a única herança de teu pai, Elisa.
ELISA - Oh! Sim! Morremos juntos!
GOMES - Não! Foi uma loucura!... Esquece o que te disse! Tu ainda podes ser feliz, minha filha!...