Em casa de JORGE, a mesma sala.
CENA PRIMEIRA
editarJORGE e ELISA
ELISA - Sr. Jorge!...
JORGE - Ah! bom dia, Elisa!... Seu pai?
ELISA - Está inteiramente calmo. Saiu... Disse-me que daqui a pouco lhe viria agradecer.
JORGE - Ele já sabe?
ELISA - Contei-lhe tudo!... Não devia?
JORGE - Fez bem. Que respondeu ele?
ELISA - Sorriu, Jorge!
JORGE - Aprovou portanto...
ELISA - Parece...
JORGE - Só nos falta para sermos felizes...
ELISA - O quê?... Não me responde?
JORGE - Não posso agora! Depois saberá, Elisa.
ELISA - Deve ser alguma coisa que lhe pesa! Está inquieto!
JORGE - É engano!... Não tenho motivo de inquietação.
ELISA - Quer ocultar de mim, que lhe contei todos os meus pesares?
JORGE - Nada oculto... São recordações... O espírito humano é assim... Inquieta-se, possui-se de um vago temor, quando maior razão tem de alegrar-se.
ELISA - Pois eu o deixo... Já que não posso desvanecer, não quero perturbar essas recordações.
JORGE - É uma queixa injusta. Fique!
ELISA - Oh! Não... Não posso demorar-me... Não devo! Quis unicamente agradecer-lhe... Na presença de meu pai não teria ânimo.
JORGE - Por que, Elisa?
ELISA - Não sei!... Há certas coisas que... Não posso explicar... Mas só ao senhor as diria!
JORGE - Tem razão, Elisa! Se há poder sublime é o da alma.
ELISA - Será talvez por isso... Eu conheço que é impróprio vir aqui! Porém ontem a desgraça me arrastou sem consciência do que fazia! Hoje foi a gratidão que me trouxe.
JORGE - Uma vez por todas, Elisa. Não tem que me agradecer.
ELISA - Oh! Sr. Jorge!
JORGE - Não, Elisa. O que fiz foi por egoísmo. Não defendia a minha felicidade? E se alguém deve ser grato, não sou eu?
ELISA - O que o senhor chama a sua felicidade, não é também a minha? Fui eu que a dei ou que recebi?...
JORGE - Deu-a.
ELISA - Recebi-a com a honra e a vida de meu pai. Bem vê que a gratidão me pertence e a mim só!
JORGE - De modo algum!
ELISA - Não ma roube!... É a minha única riqueza.
JORGE - E o amor, Elisa?
ELISA - Esse não me pertence! É seu!... Bem o sabe! Adeus.
JORGE - Até logo, então?
ELISA - Até logo, sim... Onde está Joana?
JORGE - Joana? Lá dentro... saiu... creio.
ELISA - Ainda hoje não a vi!... Desde ontem à tarde!...
JORGE - Esteve ocupada talvez.
ELISA - Ralhe com ela para não ser ingrata!... É verdade!. O que ficou de me dizer ontem?...
JORGE - Depois, Elisa!
ELISA - Também o senhor hoje vai deixando tudo para depois. Quando se realizarão todas as suas promessas?...
JORGE - No dia em que se realizarem as minhas esperanças.
ELISA - Ah!... Tem bem que esperar!
JORGE - Não há de ser tão má.
CENA II
editarOs mesmos e JOANA
ELISA - Aqui está ela!
JORGE - Joana!
JOANA - Meu nhonhô!... Como está?... Dormiu bem?... Não teve nenhum incômodo, não?... Ai, que já não podia!... Passar tanto tempo sem ver meu nhonhô! Adeus, iaiá.
ELISA - Estou muito agastada contigo!... Onde é que andaste?
JOANA - Eu! Aí mesmo, iaiá.
ELISA - Mas chegaste de fora... Ainda não tinhas visto Sr. Jorge hoje?
JORGE - Ainda não.
ELISA - O senhor ainda não saiu!...
JOANA - Não vê, iaiá... Sim! eu fui ontem de tarde... Aproveitei, como o tempo estava bom... Fui lavar uma trouxa de roupa numa chácara em Santa Teresa.
ELISA - Por isso é que não te vi mais ontem?
JOANA - Foi, iaiá... Foi por isso mesmo!... Mas nhonhô está triste! não fala com sua mulata.
JORGE - Já te falei, Joana. Estou esperando pelo doutor!
JOANA - Não tarda, nhonhô... Vem sem falta. Não se agonie.
ELISA - E eu não quero que me encontre aqui!
JOANA - Iaiá já vai?... Então quando é o dia!
ELISA - Que dia?... Começas com as tuas graças!
JOANA - Ora, isso é uma coisa tratada. Não é, nhonhô?
JORGE - Só falta o que tu sabes, Joana!
ELISA - O quê?... Não me dizem?
JORGE - É um segredo!
JOANA - Iaiá quer saber?
ELISA - Quero, sim!... É a meu respeito?
JOANA - Escute, iaiá... No ouvido. É o vestido que está se fazendo.
ELISA - Mentirosa!... Cuidas que eu acredito?
JOANA - Se eu é que hei de cosê-lo com estas mãos!
ELISA - Antes disso tens muito que coser.
JOANA - O enxoval! Não é, iaiá?
ELISA - Joana! Por tua causa não hei de vir mais aqui. (Sai.)
CENA III
editarJOANA e JORGE
JORGE - Como te tratou aquele homem, Joana? Não imaginas quanto me arrependi... Entretanto se não o fizesse, quem sabe o que aconteceria!
JOANA - Não tenha cuidado, nhonhô! Joana vive em toda a parte... O que tem é que sente um aperto de coração quando não pode ver seu nhonhô!
JÓRGE - Também eu! Toda a noite não pude sossegar... Faltava-me alguma coisa.
JOANA - Deveras!... Nhonhô sentiu que sua Joana se fosse embora!... Como nhonhô é bom! Como quer bem à sua Joana!
JORGE - Pois duvidavas?
JOANA - Então eu não sei que nhonhô me estima!
JORGE - Muito!... E o doutor que não chega!
JOANA - Não pode tardar. Enquanto nhonhô espera, eu vou endireitar isto... Como há de estar tudo numa desordem!
JORGE - Decerto!... não estando tu aqui...
JOANA Por isso eu hoje, logo que acordei, pedi a Nosso Senhor Jesus Cristo, primeiro pela vida e saúde de meu nhonhô, de iaiá D. Elisa, do Sr. Gomes, do Sr. doutor; depois prometi à Nossa Senhora uma camisinha bordada para seu menino Jesus dela, o que está na igreja do Sacramento, se não deixasse dar nove horas em S. Francisco de Paula sem que eu viesse ver meu nhonhô, tomar a benção a ele e fazer seu serviço para que não sentisse a falta de sua Joana.
JORGE - E sou eu que hei de cumprir a tua promessa.
JOANA - Não é nhonhô que me dá tudo?... Depois, das mãos de nhonhô a Virgem Santa há de receber com mais gosto.
JORGE - Ela a receberá do teu coração, Joana.
JOANA - Mas eu é que hei de bordar a camisinha!
JORGE - Faz-te mal aos olhos o bordar.
JOANA - Para Nossa Senhora... Para seu Menino Jesus dela! Qual!
JORGE - Só consinto com a condição de não trabalhares à noite.
JOANA - Pois sim, nhonhô. Mas eu não disse como Nossa Senhora se lembrou de mim!
JORGE - Como foi?
JOANA - Olhe, nhonhô!... Vê-se mesmo que foi coisa do Céu! E há gente que zomba e não quer acreditar!... Pois eu estava pensando no meu canto, que volta havia de dar para ver nhonhô, quando o homem me chamou e disse: "Se alguém bater fala pela janela e manda esperar. Eu costumo fechar a porta da rua e levar a chave."
JORGE - Deixou-te presa?
JOANA Não, nhonhô! Aí é que está o milagre de Nossa Senhora! Eu fiquei fria quando ele disse aquilo!... De repente chega uma carta! O homem lê, ataranta-se todo, e lá se vai, sem chave, sem nada!
JORGE - E saíste?
JOANA - Fechei tudo direitinho, cerrei a porta da rua e corri até aqui.
JORGE - Não se zangue ele quando voltar!
JOANA - Antes disso eu hei de estar lá... Deixe-me endireitar tudo... Espanar a mobília.
JORGE - Talvez não voltes mais! Chegando o doutor...
JOANA - Quem dera, nhonhô!
JORGE - Não te há de alegrar mais do que a mim.
JOANA - Ora, nhonhô quer se privar de sua mobília tão bonita!... Simples, mas bem feitinha!... Estas cadeiras tão direitinhas... e leves!... Estes aparadores... Parece que se tomou a medida pela casa.
JORGE - Preferia perder tudo isto a ver-te sair de minha casa... E como?
JOANA - O melhor é a gente não se lembrar mais disto! Oh! nhonhô! Que vidro é este que está aqui?
JORGE - Qual, Joana?
JOANA Este, nhonhô. Não vê?
JORGE - Cuidado, Joana. É veneno!
JOANA - Veneno!... Nhonhô!... Que quer fazer?... Mau...
JORGE - Ouve!...
JOANA - Mau, sim!... Nhonhô é um ingrato!... Meu Senhor Deus!... E eu não tive uma pancada no coração que me dissesse!
JORGE - Que estás aí a inventar, Joana? Quem te disse que este veneno era para mim?
JOANA - Ah! não era... Mas como veio parar aqui?
JORGE - Eu te explico. Ninguém mais do que tu deve saber. É a prova da tua generosidade!... O pai de Elisa.
JOANA - Sr. Gomes?
JORGE - Queria matar-se!
JOANA - Por causa daquela letra?
JORGE - Justamente. Elisa tirou-lhe o veneno e me confessou tudo ontem!
JOANA - Que menina! ....... Não me disse nada! Foi dela que nhonhô tomou o vidro?... Mas não devia deixar por aqui.
JORGE - Esqueci-me. Tenho tido tantas preocupações. Dá cá.
JOANA - Eu guardo, nhonhô, para deitar fora.
JORGE - Vê se te descuidas!...
JOANA - Está no seio. Vou atirar ao mar... Pode algum malfazejo...
JORGE - Não o abras!
JOANA - Eu!... Nosso Senhor me defenda.
JORGE - Aí está o doutor!
JOANA - Ah!... Que ia fazendo?
JORGE - Hein?... Que foi?...
JOANA - Naquela aflição de ontem me esqueci!... Nhonhô não diga nada a ele do que se passou!... Olhe lá!
JORGE - Por quê? Não queres que ele te admire?
JOANA - Nhonhô! Fora de graça!... Não diga nada! Por tudo quanto há!
JORGE - Tens razão!...
CENA IV
editarOs mesmos e DR. LIMA
DR. LIMA - Então como se arranjou?
JORGE - Achei quem me emprestasse, mas com a condição de pagar hoje sem falta.
DR. LIMA - Muito bem! Eu fiz o que pude. Ontem nada consegui.
JORGE - E hoje?...
DR. LIMA - Adeus, Joana.
JOANA - Meu senhor passou bem?
JORGE - Mas então, doutor?
DR. LIMA - O que lhe disse eu ontem?
JORGE - Que hoje às nove horas, se não pudesse antes.
DR. LIMA - Que horas são?
JORGE - Não sei! Empenhei o meu relógio!...
JOANA - Hão de ser nove, meu senhor.
DR. LIMA - Menos cinco minutos. Eu aqui estou e o dinheiro comigo.
JORGE - Ah!
JOANA - Eu sempre disse! Homem de palavra, como meu senhor!...
DR. LIMA - Espera! que temos uma conta a ajustar...
JOANA - Comigo?... Eu não fiz nada!
DR. LIMA - Já te falo. (A JORGE) Aqui tem. Está nesta carteira um conto de réis. Tire o que precisar.
JORGE - Preciso de seiscentos mil-réis. Tenho oitenta, bastam-me quinhentos e vinte.
DR. LIMA - Não se acanhe!... Esses oitenta mil-réis são naturalmente o produto do seu relógio empenhado!... Vá desfazer essa transação. Gaste o que for preciso para pôr em ordem os seus negócios. Depois falaremos.
JORGE - Não lhe sei agradecer, doutor!... Se este dinheiro fosse para matar-me a fome, eu não o receberia com tanta avidez.
DR. LIMA - Agora a nossa conta, Joana. Jorge não te deu ou tem um papel?
JOANA - Meu senhor!...
JORGE - Como soube, doutor?
DR. LIMA - Eu não estava aqui?... Já se esqueceram?...
JORGE - Estava... mas...
DR. LIMA - Quando te deu esse papel, que te disse Jorge?
JOANA - A que vem isto agora, meu senhor?
DR. LIMA - Ainda!... Disse-te: "Joana, nesta casa não há mais nem senhor nem escrava." (A JORGE) Não foi isto?
JORGE - Foi, doutor, e repito.
DR. LIMA - Ora bem! Se eu te ouvir daqui em diante alguma destas palavras, meu senhor, sua escrava, saio por aquela porta e não ponho mais os pés aqui!
JOANA - Meu... Sr. doutor!
JORGE - Ralhe! Ralhe com ela, doutor, para ver se emenda-se.
DR. LIMA - Não venho mais cá e escrevo uma carta a Jorge... explicando-lhe o motivo?
JOANA - Ah! Vm. não há de fazer isto! Eu juro o que quiser.
DR. LIMA - Estamos entendidos.
JORGE - Dê-me licença, doutor. Vou sair um instante para saldar essa dívida que me pesa.
DR. LIMA - Sem cerimônia! Vá. Enquanto espero, Joana, prepara alguma coisa, que ainda não almocei.
JORGE - Ouves, Joana?!
JOANA - Já. Num momento!
DR. LIMA - Chá e pão, basta!... Quem toca por aqui?
JOANA - É Iaiá.
JORGE - É a minha vizinha do primeiro andar.
DR. LIMA - Que não tarda subir ao segundo?
JÓRGE - Talvez, doutor.
CENA V
editarDR. LIMA e JOANA
DR. LIMA - Dá-me o jornal!... Aquilo que eu te disse é sério, ouviste, Joana?
JOANA - Ouvi, Sr. doutor. Quer que eu jure outra vez?
DR. LIMA - Não é necessário.
JOANA - Ai!... Iaiá D. Elisa vai cantar! Como ela está contente hoje! Coitadinha! É uma pombinha sem fel!... E como canta bem!... Ora, discípula de nhonhô!... Que bonita voz!... Não é, Sr. doutor?
DR. LIMA - Muito; há outra que eu acharia mais bonita.
JOANA - Qual?... Não é capaz.
DR. LIMA - A tua, Joana...
JOANA - Gentes!... Que partes do Sr. doutor.
DR. LIMA - Se ouvisses o resto... É a tua quando me disseres que o almoço está pronto.
JOANA - Santo Deus!... E eu a dar à taramela!... Perdão, Sr. doutor.
DR. LIMA - Perdôo-te o julgares que com sessenta anos tinha tenções de namorar-te.
CENA VI
editarDR. LIMA
(Cena muda. O doutor lê o jornal, interrompendo as vezes a leitura para ouvir o romance francês - Aiguille - que ELISA canta; afinal adormece. Pouco depois de acabar o romance, entra JORGE.)
CENA VII
editarDR. LIMA e JORGE
JORGE - Que maçada!
DR. LIMA - Hein!... Que é?... Que temos?
JORGE - Estou contrariado, doutor. Não achei o homem.
DR. LIMA - Não é culpa sua. Ele que o procure.
JORGE - Fiquei de ir levar-lhe o dinheiro, eu mesmo.
DR. LIMA - Voltará depois.
JORGE - Devo pagar-lhe hoje sem falta.
DR. LIMA - O dia apenas começou. Há tempo de sobra.
JORGE - Só o encontrarei de manhã.
DR. LIMA - Ora, se lhe parece!... Faça disso uma questão de honra! Já o procurou; cumpriu o seu dever. Ele que apareça.
JORGE - Aqui?
DR. LIMA - Então!... Onde há de ser?
JORGE - Eu é que devo ir à sua casa.
DR. LIMA - Há de poupar-lhe esse incômodo. Não digo!
CENA VIII
editarOs mesmos, ELISA e GOMES
GOMES - Não é uma visita, Sr. Jorge, que viemos fazer-lhe, minha filha e eu.
JORGE - Sente-se, D. Elisa... Sr. Gomes, doutor!... GOMES - Não é uma visita, não. É uma romaria, como dizem que outrora faziam aos lugares santos.
JORGE - Ora, Sr. Gomes.
GOMES - O Sr. doutor, a quem peço desculpa de minha distração de ontem...
DR. LIMA - Não tem de quê. Vi que estava indisposto.
GOMES - Estava, como pode estar o homem a quem a honra ordena que morra e sua filha órfã pede que viva.
ELISA - Meu pai!... Esqueça-se!.
GOMES - Ao contrário devo lembrar! Devo confessá-lo! Não temos outro meio de reconhecer a dedicação daquele a quem tu deves a vida do teu pai; e eu mais do que a vida.
JORGE - Para que voltar a um passado que nos aflige a todos?
GOMES - Eu não conheço egoísmo mais cruel do que o do benfeitor que recusa o reconhecimento daqueles a quem recorreu. A gratidão, Sr. Jorge, não é só um dever; é também um direito.
DR. LIMA - E um direito sagrado!
JORGE - Porém, doutor, o Sr. Gomes nada me tem a agradecer. Ele o sabe; e vou dar-lhe a prova. Estamos entre amigos, Elisa... seu pai e o meu...
DR. LIMA - Pela afeição unicamente! Nunca lhe fiz serviços...
JORGE - Doutor!... Não há meia hora!
GOMES - Vê, Sr. Jorge! O senhor mesmo me dá razão. JORGE - Não, senhor! Ouça... Eu concebi, há meses, uma esperança de cuja realização depende a ventura de minha vida. Amava... Amo sua filha!
GOMES - Ela me confessou, Sr. Jorge.
JORGE - Confessou-lhe unicamente que eu a amava?
GOMES - E que era...
ELISA - Meu pai!...
GOMES - Não cores, minha filha. O amor puro, como o teu, é a coroa de virgem de uma moça. Elisa também o ama, Sr. Jorge.
JORGE - Que fiz eu pois, Sr. Gomes, senão velar sobre a minha felicidade?... Fui apenas egoísta!... Não tenho razão, doutor?...
DR. LIMA - Todos têm razão; mas é preciso que se entendam. Definamos a situação, como dizem os estadistas quando a querem embrulhar. Jorge pede-lhe a mão de sua filha, Sr. Gomes.
GOMES - Responde, Elisa.
ELISA - Não... Logo... meu pai!
GOMES - É de ti unicamente que ele deve receber a tua mão!
ELISA - Ele já não sabe?
JORGE - É verdade! Só esperamos pelo seu consentimento.
GOMES - Não tenho consentimento a dar... Faço um voto pela felicidade de ambos.
DR. LIMA - Isto é mais claro. Marquemos o dia.
GOMES - O Sr. Jorge dirá.
ELISA - Já!... Que pressa!
JORGE - Elisa é quem deve marcar.
ELISA - Eu não!
DR. LIMA - Pois marco eu. E aposto que vão todos ficar satisfeitos. Que dia é hoje?
JORGE - Terça-feira.
DR. LIMA - Em três dias faz-se um vestido... Sábado!
GOMES - Muito bem.
JORGE - Concordo.
ELISA - Tão cedo!...
DR. LIMA - Quanto à casa, esta tem as acomodações necessárias.
JORGE - Ainda não a viu, Sr. Gomes? Venha. Quero mostrar-lhe o gabinete que lhe destino.
GOMES - A mim!...
JORGE - Desejo que Elisa tenha seu pai junto de si. Entremos. casa de estudante... Não repare.
CENA IX
editarDR. LIMA e ELISA
DR. LIMA - Há pouco, sem o suspeitar, deu-me grande prazer, minha senhora. Ouvi-a cantar.
ELISA - Ah! Estava aqui?
DR. LIMA - Era um romance francês!...
ELISA - Aprendi-o a cantar sentindo-o. Por isso gosto muito dele.
DR. LIMA - Tem uma linda voz!
ELISA - Qual!... Há muitos dias que não cantava! Hoje tive umas saudades!
DR. LIMA - Da música ou do mestre?...
CENA X
editarOs mesmos e PEIXOTO
PEIXOTO - Viva, senhor!
DR. LIMA - Tire o chapéu!... Não vê que está diante de uma senhora?
PEIXOTO - Não reparo nestas coisas... A minha escrava?...
DR. LIMA - Que escrava? O senhor sabe a quem fala?
PEIXOTO - A escrava que o tal Sr. Jorge me vendeu!... Fugiu-me esta manhã!... Está acoitada aqui!
ELISA - Joana!
DR. LIMA - Tranqüilize-se, D. Elisa. Joana está forra. Jorge deu-lhe ontem a carta à minha vista!
ELISA - Ela o merecia!
PEIXOTO - Que história está aí o senhor a contar?
DR. LIMA - Digo-lhe a verdade.
PEIXOTO - Pois enganou-se!... Quero já para aqui a minha escrava!... Senão vou à polícia!... É uma velhacada!
DR. LIMA - Lembro-lhe que não está em sua casa! De que escrava fala o senhor!
PEIXOTO - Quantas vezes quer que lhe diga?... Da mulata Joana, que comprei ontem!
ELISA - Ah!
DR. LIMA - O senhor mente!
PEIXOTO - Veremos!... Eu lhe mostrarei para que serve este papel. (O doutor lê o papel na mão de PEIXOTO. JOANA aparece no fundo.)
CENA XI
editarOs mesmos, JORGE e GOMES
JORGE - Cale-se.
GOMES - Este miserável aqui!
PEIXOTO - A minha escrava!
DR. LIMA - Desgraçado!...
JORGE - Doutor...
DR. LIMA - Tu vendeste tua mãe! (JOANA foge.)
JORGE - Minha mãe!... Ah!...
DR. LIMA - Tua mãe, sim!... Digo-o alto! porque te sei bastante nobre para não renegares aquela que te deu o ser. (Pequena pausa.)
PEIXOTO - Em todo o caso... Eu não perco o meu dinheiro.
DR. LIMA - Quanto se lhe deve?
PEIXOTO - Seiscentos mil-réis! (JORGE tira o dinheiro.)
DR. LIMA - Dê-me este papel.
JORGE - Não o rasgue, doutor!
DR. LIMA - Para que conservar esse testemunho?
JORGE - Para exprobrar-lhe o que me obrigou a fazer!... Porque foi ela... que tratou com esse homem.
PEIXOTO - Lá isso é a pura verdade.
JORGE - A carta rasgou-a!
DR. LIMA - Amor de mãe!...
JORGE - Ah! Meu pai!... Como deves sofrer neste momento!
DR. LIMA - Ele não teve tempo de declarar... A morte foi repentina.
JORGE - E ter vivido vinte anos com ela, recebendo todos os dias, a todo o instante as efusões desse amor sublime!... E não adivinhar!... Não pressentir!... Perdão, minha mãe!... Onde está ela? (Sai.)
CENA XII
editarDR. LIMA, GOMES, ELISA, PEIXOTO e VICENTE
VICENTE (a PEIXOTO) - Alto lá, camarada! (Segura-o pela gola.)
PEIXOTO - Isto são modos!
VICENTE - Bom dia, Sr. doutor e companhia.
DR. LIMA - Adeus.
PEIXOTO - Largue-me, senhor!
VICENTE - Está seguro! Deixe-se de partes.
PEIXOTO - Com que direito me priva de sair?
VICENTE - Já lhe digo. (Lê) "Mandado de prisão passado a requerimento do Dr. Promotor!..."
PEIXOTO - Eu preso!... Por quê?
VICENTE - Por causa de certas letras...
PEIXOTO - É falso!
VICENTE - São falsas mesmo as tais letras...
PEIXOTO - Sr. Vicente...
VICENTE - Romão, meu caro senhor, Romão... Tenha a bondade de seguir-me.
GOMES - Deus é justo! (ELISA entra rapidamente na alcova.)
CENA XIII
editarDR. LIMA, GOMES e JORGE
JORGE - Viu-a, doutor?... Não a encontrei!... Procurei tudo!
DR. LIMA - Sossegue, Jorge! Deve ter saído... Ela nada sabe ainda! Seja prudente... Não lhe anuncie de repente!... O choque pode ser terrível!.
JORGE - Não me sei conter!... Quero abraçá-la!... Minha mãe!... Que prazer supremo que eu sinto em pronunciar este nome!... Parece-me que aprendi-o há pouco!...
GOMES - Sr. Jorge.
JORGE - Ah! Desculpe... Esqueci-me que estava aqui... O que acabo de SABER!...
GOMES - Penaliza-me bastante, creia.
JORGE - Como, Sr. Gomes?
GOMES - Sinto muito, porém. O senhor compreende a minha posição... As considerações sociais...
JORGE - Acabe, senhor!...
GOMES - Esse casamento não é mais possível!
JORGE - Ah!
DR. LIMA - Por que razão, Sr. Gomes?
JORGE - Porque não reneguei minha mãe!
GOMES - Sr. Jorge, eu o estimo... porém...
JORGE - Tem razão, Sr. Gomes!... O senhor me julga indigno de pertencer à sua família porque eu sou filho daquela que se vendeu para salvar essa mesma honra em nome da qual me repele!
GOMES - Que diz, senhor?...
ELISA (fora) - Jorge!... Sua mãe!...
JORGE - Elisa!... Aonde?... (Entra na alcova.)
GOMES - Nas minhas circunstâncias que faria, Sr. doutor?
DR. LIMA - Não há considerações nem prejuízos, senhor, que me obriguem a cometer uma ingratidão.
CENA XIV
editarDR. LIMA, GOMES, JORGE e JOANA
JORGE - Doutor, acuda!... Depressa!...
DR. LIMA - O quê?
ELISA - Este vidro!...
GOMES - Envenenada!...
JOANA - Um ataque!...
JORGE - E o mesmo veneno que ela arrancou-lhe dos lábios... Sr. Gomes!
DR. LIMA - Que fizeste, Joana?
JOANA - Nada, meu... Sr. doutor.
JORGE - Salve-a, meu amigo!...
DR. LIMA - Só Deus!... A ciência nada pode!
JORGE - Minha mãe!...
JOANA - Não!... Eu não sou sua mãe, nhonhô... O que ele disse, Sr. doutor, não é verdade... Ele não sabe...
DR. LIMA - Joana!...
JOANA - Não é verdade, não!... Pois já se viu isso?... Eu ser mãe de um moço como nhonhô!... Eu uma escrava!... Não vê, nhonhô, que ele se engana?
JORGE - Me perdoa, minha mãe, não te haver conhecido!
JOANA - Sr. doutor quer dizer que eu fui ama de nhonhô!... Que nhonhô era meu... meu... de leite... só... só de leite!...
JORGE - Chama-me teu filho!... Eu te suplico!...
JOANA - Mas não e... não!... Eu juro...
DR. LIMA - Joana!... Deus nos ouve!
JOANA - Por Deus mesmo... Ele sabe por que digo isto!... Por Deus mesmo... Juro... que... Ah!...
JORGE - Morta!...
ELISA - Minha boa Joana!...
JOANA - Escute, iaiá Elisa... É a última coisa que lhe peço... Iaiá há de fazer meu nhonhô muito feliz!... Me promete?... Queira a ele tanto bem, como Joana queria... Mas, nem iaiá nem ninguém pode... não!...
JORGE - Minha mãe!... Por que foges de teu filho, apenas ele te reconhece?
JOANA - Adeus, meu nhonhô... Lembre-se às vezes de Joana... Sim?... Ela vai rezar no céu por seu nhonhô... Mas antes eu queria pedir..
JORGE - O que, mãe? Pede-me!...
JOANA - Nhonhô não se zanga?
JORGE - Eu sou teu filho!... Dize!... Uma vez ao menos... este nome.
JOANA - Ah!... Não!... Não posso!
JORGE - Fala! Fala!
JOANA - É um atrevimento!... Mas eu queria antes de morrer... beijar sua... sua testa, meu nhonhô!...
JORGE - Mãe!...
JOANA - Ah!... Joana morre feliz!
JORGE - Abandonando seu filho.
JOANA - Nhonhô!... Ele se enganou!... Eu não... Eu não sou tua mãe, não... meu filho! (Morre.)
JORGE (de joelhos) - Minha mãe!...
ELISA - E minha, Jorge!...
GOMES - Ela abençoe tão santa união!...
DR. LIMA - E me perdoe o mal que lhe fiz!