IV
BOIÚNA LUNA
No outro dia bem cedo o herói padecendo saudades de Ci, a companheira pra sempre inesquecível, furou o beiço inferior e fez da muiraquitã um tembetá. Sentiu que ia chorar. Chamou depressa os manos, se despediu das icamiabas e partiu.
Gauderiaram gauderiaram por todos aqueles matos sobre os quais Macunaíma imperava agora. Por toda a parte ele recebia homenagens e era sempre acompanhado pelo séquito de araras-vermelhas e jandaias. Nas noites de amargura ele trepava num açaizeiro de frutas roxas como a alma dele e contemplava no céu a figura faceira de Ci. “Marvada!” que ele gemia... Então ficava muito sofrendo, muito! e invocava os deuses bons cantando cânticos de longa duração...
Rudá, Rudá!...
Tu que secas as chuvas,
Faz com que os ventos do oceano
Desembestem por minha terra
Pra que as nuvens vão-se embora
E a minha marvada brilhe
Limpinha e firme no céu!...
Faz com que amansem
Todas as águas dos rios
Pra que eu me banhando neles
Possa brincar com a marvada
Refletida no espelho das águas!...
Assim. Então descia e chorava encostado no ombro de Maanape. Jiguê soluçando de pena animava o fogo da caieira pra que o herói não sentisse frio. Maanape engolia as lágrimas, invocando o Acutipuru o Murucututu o Ducucu, todos esses donos do sono em acalantos assim:
Acutipuru,
Empresta vosso sono
Pra Macunaíma
Que é muito manhoso!...
Catava os carrapatos do herói e o acalmava balanceando o corpo. O herói acalmava acalmava e adormecia bem.
No outro dia os três estradeiros recomeçavam a caminhada através dos matos misteriosos. E Macunaíma era sempre seguido pelo séquito de araras-vermelhas e jandaias.
Caminhando caminhando, uma feita em que a arraiada principiava enxotando a escureza da noite, escutaram longe um lamento de moça. Foram ver. Andaram légua e meia e enco ntraram uma cascata chorando sem parada. Macunaíma perguntou pra cascata:
— Que é isso!
— Chouriço!
— Conta o que é.
E a cascata contou o que tinha sucedido pra ela.
— Não vê que chamo Naipi e sou filha do tuxaua Mexô-Mexoitiqui nome que na minha fala quer dizer Engatinha-Engatinha. Eu era uma boniteza de cunhatã e todos os tuxauas vizinhos desejavam dormir na minha rede e provar meu corpo mais molengo que embiroçu. Porém quando algum vinha eu dava dentadas e contapés por amor de experimentar a força dele. E todos não aguentavam e partiam sorumbáticos.
Minha tribo era escrava da boiuna Capei que morava num covão em companhia das saúvas. Sempre no tempo em que os ipês de beira-rio se amarelavam de flores a boiuna vinha na taba escolher a cunhã virgem que ia dormir com ela na socava cheia de esqueletos.
Quando meu corpo chorou sangue pedindo força de homem pra servir, a suinara cantou manhãzinha nas jarinas de meu tejupá, veio Capei e me escolheu. Os ipês de beira-rio relampeavam de amarelo e todas as flores caíram nos ombros soluçando do moço Titçatê guerreiro de meu pai. A tristura talqualmente correição de sacassaia viera na taba e devorara até o silêncio.
Quando o pajé velho tirou a noite do buraco outra vez, Titçatê ajuntou as florzinhas perto dele e veio com elas pra rede da minha última noite livre. Então mordi Titçatê.
O sangue espirrou na munheca mordida porém o moço não fez caso não, gemeu de raiva amando, me encheu a boca de flores que não pude mais morder. Titçatê pulou na rede e Naipi serviu Titçatê.
Depois que brincamos feito doidos entre sangue escorrendo e as florzinhas de ipê, meu vencedor me carregou no ombro me jogou na ipeigara abicada num esconderijo de aturiás e flechou pro largo rio Zangado, fugindo da boiuna.
No outro dia quando o pajé velho guardou a noite no buraco outra vez, Capei foi me buscar e encontrou a rede sangrando vazia. Deu um urro e deitou correndo em busca nossa. Vinha vindo vinha vindo, a gente escutava o urro dela perto, mais perto pertinho e afinal as águas do rio Zangado empinaram com o corpo da boiuna ali.
Titçatê não podia mais remar desfalecido, sangrando sempre com a mordida na munheca. Por isso que não pudemos fugir. Capei me prendeu, me revirou, fez a sorte do ovo em mim, deu certo e a boiuna viu que eu já servira Titçatê.
Quis acabar com o mundo de raiva tamanha, não sei... me virou nesta pedra e atirou Titçatê na praia do rio, transformado numa planta. É aquela uma que está lá, lá embaixo, lá! É aquele mururê tão lindo que se enxerga, bracejando n’água pra mim. As flores roxas dele são os pingos de sangue da mordida, que meu frio de cascata regelou.
Capei mora embaixo de mim, examinando sempre si fui mesmo brincada pelo moço. Fui sim e passarei chorando nesta pedra até o fim do que não tem fim, mágoas de não servir mais o meu guerreiro T’çatê...
Parou. O choro pingava nos joelhos de Macunaíma e ele soluçou tremido.
— Si... si... si a boboiuna aparecesse eu... eu matava ela!
Então se escutou um urro guaçu e Capei veio saindo d’água. E Capei era a boiuna. Macunaíma ergueu o busto relumeando de heroísmo e avançou pro monstro. Capei escancarou a goela e soltou uma nuvem de apiacás. Macunaíma bateu que mais bateu vencendo os marimbondos. O monstro atirou uma guascada tirlintando com os guizos do rabo, porém nesse momento uma formiga tracuá mordeu o calcanhar do herói. Ele agachou distraído com a dor e o rabo passou por cima dele indo bater na cara de Capei. Então ela urrou mais e deu um bote na coxa de Macunaíma. Ele só fez um afastadinho com o corpo, agarrou num rochedo e juque! decepou a cabeça da bicha.
O corpo dela se estorceu na corrente enquanto a cabeça com aqueles olhões docinhos vinha beijar vencida os pés do vingador. O herói teve medo e jogou no viado mato dentro acompanhado pelos manos.
— Vem cá, siriri, vem cá! que a cabeça gritava.
Eles chispavam mais. Correram légua e meia e olharam pra trás. A cabeça de Capei vinha rolando sempre em busca deles. Correram mais e quando não podiam de fadiga treparam num bacuparizeiro ribeirinho pra ver si a cabeça continuava pra diante. Mas cabeça parou por debaixo do pau e pediu bacuparis. Macunaíma sacudiu a árvore. A cabeça catou as frutas do chão, comeu e pediu mais. Jiguê sacudiu bacuparis dentro d’água porém a cabeça falou que lá não ia não. Então Maanape atirou com toda a força uma fruta longe e enquanto a cabeça ia buscá-la os manos desceram do pau e se rasparam. Correndo correndo, légua e meia adiante deram com a casa onde morava o bacharel de Cananeia. O coroca estava na porta sentado e lia manuscritos profundos. Macunaíma falou pra ele:
— Como vai, bacharel?
— Menos mal, ignoto viajor.
— Tomando a fresca, não?
— C’est vrai, como dizem os franceses.
— Bem, té-logo bacharel, estou meio afobado...
E chisparam outra vez. Atravessaram os sambaquis do Caputera e do Morrete num respiro. Logo adiante havia um rancho teatino. Entraram e fecharam a porta bem. Então Macunaíma pôs reparo que perdera o tembetá. Ficou desesperado porque era a única lembrança que guardava de Ci. Ia saindo pra campear a pedra porém os manos não deixaram. Não durou muito a cabeça chegou. Juque! bateu.
— Que que há?
— Abra a porta pra mim entrar!
Porém jacaré abriu? nem eles! e a cabeça não pôde entrar. Macunaíma não sabia que a cabeça ficara escrava dele e não vinha pra fazer mal não. A cabeça esperou muito porém vendo que não abriam mesmo matutou no que ia ser. Si fosse ser água os outros bebiam, si fosse ser formiga esmagavam, si fosse mosquito flitavam, si fosse trem de ferro descarrilava, si fosse rio punham no mapa... Resolveu: “Vou ser Lua”. Gritou:
— Abram a porta, gente, que quero umas coisas!
Macunaíma espiou pela fresta e avisou Jiguê já abrindo:
— Está solta!
Jiguê tornou a fechar a porta. Por isso que existe a expressão “Tá solto!” indicando que a gente não faz mesmo o que nos pedem.
Quando Capei viu que não abriam a porta principou se lamentando muito e perguntou pra iandu caranguejeira si ajudava a subida pro céu.
— Meu fio Sol derrete, secundou a aranha tatamanha.
Então a cabeça pediu pros xexéus se ajuntarem e ficou noite escura.
— Meu fio ninguém não enxerga de noite, disse a aranha tatamanha.
A cabeça foi buscar um cuitê de friagem nos Andes e falou:
— Despeja uma gota cada légua e meia, fio branqueia de geada. Podemos ir.
— Pois então vamos.
A iandu principiou fazendo fio no chão. Com o primeiro ventinho que brisou por ali o fio leviano se ergueu no céu. Então a aranha tatamanha subiu por ele e da ponta lá em riba derramou um bocado de geada. E enquanto a iandu caranguejeira fazia mais fio de lá pra riba, o de baixo branqueava todo. A cabeça gritou:
— Adeus, meu povo, que vou pro céu!
E lá foi comendo fio sobessubindo pro campo vasto do céu. Os manos abriram a porta e espiaram. Capei sempre subindo.
— Você vai mesmo pro céu, cabeça?
— Uum, ela fez não podendo mais abrir a boca.
Quando foi ali pela hora antes da madrugada a boiuna Capei chegou no céu. Estava gorducha de tanto fio comido e muito pálida do esforço. Todo o suor dela caía sobre a Terra em gotinhas de orvalho novo. Por causa do fio geado é que Capei é tão fria. Dantes Capei foi a boiuna mas agora é a cabeça da Lua lá no campo vasto do céu. Desde essa feita as caranguejeiras preferem fazer fio de-noite.
No outro dia os manos deram um campo até a beira do rio mas campearam campearam em vão, nada de muiraquitã. Perguntaram pra todos os seres, aperemas saguis tatus-mulitas tejus muçuãs da terra e das árvores, tapiucabas chabós matintapereras pinica-paus e aracuãs do ar, pra ave japiim e seu compadre marimbondo, pra baratinha casadeira, pro pássaro que grita “Taám!” e sua companheira que responde “Taím!”, pra lagartixa que anda de pique com o ratão, pros tambaquis tucunarés pirarucus curimatás do rio, os pecaís tapicurus e iererês da praia, todos esses entes vivos mas ninguém não vira nada, ninguém não sabia de nada. E os manos bateram pé na estrada outra vez, varando os domínios imperiais. O silêncio era feio e o desespero também. De vez em quando Macunaíma parava pensando na marvada... Que desejo batia nele! Parava tempo. Chorava muito tempo. As lágrimas escorregando pelas faces infantis do herói iam lhe batizar a peitaria cabeluda. Então ele suspirava sacudindo a cabecinha:
— Qual, manos! Amor primeiro não tem companheiro, não!...
Continuava a caminhar. E por toda a parte recebia homenagens e era sempre seguido pelo séquito sarapintado de jandaias e araras-vermelhas.
Uma feita em que deitara numa sombra enquanto esperava os manos pescando, o Negrinho do Pastoreio pra quem Macunaíma rezava diariamente se apiedou do panema e resolveu ajudá-lo. Mandou o passarinho uirapuru. Quando sinão quando o herói escutou um tatalar inquieto e o passarinho uirapuru pousou no joelho dele. Macunaíma fez um gesto de caceteação e enxotou o passarinho uirapuru. Nem bem minuto passado escutou de novo a bulha e o passarinho pousou na barriga dele. Macunaíma nem se amolou mais. Então o passarinho uirapuru agarrou cantando com doçura e o herói entendeu tudo o que ele cantava. E era que Macunaíma estava desinfeliz porque perdera a muiraquitã na praia do rio quando subia no bacupari. Porém agora, cantava o lamento do uirapuru, nunca mais que Macunaíma havia de ser marupiara não, porque uma tracajá engolira a muiraquitã e o mariscador que apanhara a tartaruga tinha vendido a pedra verde pra um regatão peruano se chamando Venceslau Pietro Pietra. O dono do talismã enriquecera e parava fazendeiro e baludo lá em São Paulo, a cidade macota lambida pelo igarapé Tietê.
Dito isto o passarinho uirapuru executou uma letra no ar e desapareceu. Quando os manos chegaram da pesca Macunaíma falou pra eles:
— Ia andando por um caminho negaceando um catingueiro e vai, presenciei um friúme no costado. Botei a mão e saiu uma lacraia mansa que me falou toda a verdade.
Então Macunaíma contou o paradeiro da muiraquitã e disse pros manos que estava disposto a ir em São Paulo procurar esse tal Venceslau Pietro Pietra e retomar o tembetá roubado.
— ... e cascavel faça ninho si eu não topo com a muiraquitã! Si vocês venham comigo muito que bem, si não, homem, antes só do que mal acompanhado! Mas eu tenho opinião de sapo e quando encasqueto uma coisa aguento firme no toco. Hei de ir só pra tirar a prosa do passarinho uirapuru, minto! da lacraia.
Depois que discursou Macunaíma deu uma grande gargalhada imaginando na peça que pregava no passarinho. Maanape e Jiguê resolveram ir com ele, mesmo porque o herói carecia de proteção.