Não foi justo nem generoso ontem o nosso ilustrado colega d’O País no editorial em que comentava as homenagens prestadas ao Sr. Andrade Figueira e sublinhava entre elas os cumprimentos do Sr. Dr. Coelho Rodrigues, moeda representativa de uma amizade que vem de longe e se radica às recordações mais íntimas e carinhosas da mocidade.
Não falaremos, é claro, da forma literária, terna e burilada, do artigo, torrão de açúcar destinado a disfarçar o travo do alcalóide, pois todos conhecemos e admiramos as qualidades de estilo e a maleabilidade do talento do nosso antagonista.
Cumpre, porém, em respeito à verdade e à justiça, não deixar passar sem reparo afirmações menos exatas, insinuações sofrivelmente pérfidas e os fios sutis de uma teia incipiente onde cairia o prefeito se o posto que atualmente exerce não fosse para um homem de lei, de caráter e de fortuna uma destas realezas que andam a suspirar pela abdicação.
Entre os cidadãos que compõem esta pátria brasileira, se uns comungam nos ideais republicanos, outros há, e em número não pequeno, a quem ainda as crenças do passado seduzem. Em ambos os partidos há homens de valor, convicções fortes, energias preciosas, inteligências e caracteres de escolha. Ambos contam admiradores, prosélitos e fanáticos. A base do tratamento entre os dois agrupamentos deve, pois, cimentar-se na consideração mútua, de modo a que vencedores e vencidos, finda a luta, possam apertar-se as mãos, enterrar os mortos e cuidar dos vivos. Tudo quanto não seja isto, não é sério nem digno de lidadores que se prezam.
Bem sabe O País, porque a história largamente o ensina, que não há temeridade maior que a de julgar revolucionários e conspiradores pelo critério exclusivo do sucesso. Craveira mais falível não existe na apreciação destes abalos violentos. Arrastados na lama, os vencidos de hoje ressurgem amanhã para a apoteose, e pela rampa contrária, pedregosa e agreste, descem contritos, humilhados e até apedrejados e cuspidos, os famosos triunfadores da véspera. É que aos alucinados do poder falta quase sempre a toada fúnebre mais salutar do escravo romano junto ao carro do que os padres conscritos tinham julgado digno da maior das recompensas cívicas.
Conspiração não houve. Assim o dissemos e continuamos a sustentar; mas, conspiradores ou não, os indigitados como tais pelo poder não merecem a adjetivação carregada do iracundo colega. Basta ler os nomes dos sacrificados à nevrose da força para logo se convencer a opinião pública, independente e sensata, que não é o caso de “meia dúzia de aventureiros, sequiosos de dinheiro para pagar, não às tropas, mas aos alfaiates e aos armazéns”.
E se dos colocados em plano modesto passarmos ao Dr. Andrade Figueira, torna-se clamorosa a acrimônia do contemporâneo. Monarquista ou republicano, persona grata ou não, esse brasileiro, carregado de serviços, é e será sempre um vulto respeitável ao abrigo das tentativas demolidoras, apaixonadas e injustas. Esse direito à “exibição camaradesca de endeusadores”, ele, “o conspirador de ópera-bufa”, o adquiriu à custa de um longo passado de trabalho e honradez e desse direito não há violência, arbitrariedade ou solércia que possa privá-lo. Nem outro galardão cabe à velhice além deste preito afetivo e espontâneo das consciências.
Espírito desprevenido e sagaz, habituado a ler nas entrelinhas, logo porém vislumbra no editorial do nosso colega os verdadeiros intuitos que o inspiravam. Quis-se evidentemente comprometer o Sr. Coelho Rodrigues com o governo da República, só porque S. Ex.ª, tão fiel à lei da amizade quanto à constituição republicana, não entendeu a primeira revogada pela segunda e ousou cumprimentar um velho camarada por vê-lo restituído ao lar que tanto enobrece.
Não compreendemos, por mais que sobre o caso reflitamos, a incompatibilidade tão acerbamente frisada pelo O País. A coexistência dos afetos de ordem privada com a intransigência em matéria de princípios é uma das características da vida contemporânea, feita de humanidade e tolerância, mormente num regímen novo que para subsistir carece de cercar-se de simpatias.
Administrador do Distrito Federal, havendo o seu cargo de um poder sujeito a sanção, colocado em condições de independência adstritas ao alto cargo que exerce e às modalidades do seu próprio caráter, extremamente altivo e inteligente, homem de lei, pouco propenso a zombarias e censuras, afeito a deliberar por si mesmo, solicitado, re-solicitado, para aceitar a Prefeitura, o Dr. Coelho Rodrigues decerto repeliria tal mercê se esta envolvesse a destruição das fibras mais íntimas da sua vida moral.