- Vá perguntar pra mana Maria.
Era assim desde que a mãe morrera. Era assim a propósito de tudo. Mana Maria é que resolvia, mandava, punha e dispunha, fazia, desfazia. E Ana Teresa obedecia.
Quando Dona Purezinha morreu, deixou Ana Teresa com dez anos. Tinha duas tranças compridas e com uma delas quis enxugar as lágrimas diante do cadáver da mãe. E foi ai que sentiu pela primeira vez a nova autoridade. Mana Maria deu um puxão na trança e lhe pôs um lenço na mão:
- Enxugue com o lenço.
Lenço seco.
De fato a coragem de mana Maria foi uma coisa que admirou toda a gente. Não derramou uma lágrima. Não teve um gesto, uma expressão de sofrimento. Ninguém esperava tanta fortaleza de ânimo num corpo tão franzino.
Dona Purezinha agonizou seis meses com um cancro no piloro. Era gorda, foi ficando magrinha. Também era boa, paciente, e foi ficando má, impertinente. Parecia que tudo nela morria, menos os olhos que enxergavam uma sombra de poeira na cômoda e os ouvidos que percebiam lá longe, na cozinha, o bater de um prato na pia.
Em torno dela foi se fazendo um silêncio que já era de túmulo. Primeiro se suprimiu o piano de Ana Teresa. Para ela foi uma alegria. Mesmo a aula de Português, Aritmética, Geografia, História do Brasil, Religião, Desenho e Caligrafia, tudo ensinado por Dona Mercedes, passou para o porão.
No porão vivia. Subia para almoçar, lanchar. jantar, dormir. Fora disso, mal punha os pés na escada que conduzia â copa, uma criada, a irmã, o pai, alguém falava:
- Não venha que mamãe está doente.
Era o estribilho. Pegava no voador, rodava dez metros no cimento do jardim, uma janela se abria:
- Não faça barulho! Mamãe está doente!
Na mesa, não queria sopa ou queria pão com manteiga e açúcar:
- Seja boazinha. Olhe que mamãe está doente.
Aos poucos se habituou. Ficava no quarto grande do porão horas e horas vendo a arrumadeira passar roupa. Também ia visitar o galinho garnisé. Corria atrás dele, ele não se deixava pegar, ela dizia:
- Não faça barulho que mamãe está doente.
Até que chegou também o dia do garnisé. O canto dele incomodava Dona Purezinha. Foi para a faca. E Ana Teresa nem direito de chorar teve porque mamãe estava doente.
Já era sossegada de natureza, ficou uma santinha na opinião da cozinheira. Parecia gente grande. Amorteceram com algodão a campainha da entrada, a campainha do telefone. Todos se entendiam por gestos. Joaquim Pereira pensou até em imitar o vizinho senador que quando a mulher esteve para morrer arranjou uns grilos que não deixavam os choferes tocarem cláxon nas imediações. Mas desprovido de qualquer influência política desistiu da idéia. Ana Teresa passou a fazer parte do silêncio: se perturbava quando falavam perto dela. Quase no ouvido da professora segredava as capitais dos Estados do Brasil. E ficou com o hábito de responder movendo a cabeça, sacudindo os ombros, movendo as mãos. A boniteza dela não entristeceu: ficou indiferente, perdeu a vivacidade, ficou distante.
Uma madrugada mana Maria acordou Ana Teresa. Como estava, de camisola e descalça, foi levada até o quarto de Dona Purezinha. O pai a ergueu nos braços, molhou de lágrimas o rosto dela, abraçou forte, beijou muito a filha. Depois falou:
- Venha beijar sua mãezinha que foi pro céu. No quarto estavam um padre, o médico, a enfermeira, tio Laerte e a mulher dele, tia Carlota. Ana Teresa sacudida pelo choro agarrou na mão da morta, deu um beijo. Porém silencioso. Alguém falou: - "Pobrezinha". Com certeza tia Carlota que a tirou do quarto. Ana Teresa viu no fundo do corredor uma vela acesa nas mãos de mana Maria. Teve medo, dobrou o braço no rosto. Voltou carregada pro seu quarto. Ainda ouviu mana Maria falar:
- É bom que tio Laerte vá encomendar o caixão.
Na hora do enterro é que mana Maria não a deixou enxugar os olhos com a trança. Foi o primeiro gesto de mando. E por isso Ana Teresa nunca mais esqueceu dele. Era um quadro que ela via sempre. Sobretudo de noite, no escuro, de olhos fechados, na cama: a sala repleta, o caixão muito alto e florido, a cara barbuda do pai, o jeito duro com que mana Maria lhe puxou a trança, lhe deu o lenço. Lenço seco.
E três dias depois, logo de manhã cedo, Ana Teresa teve a revelação física de mana Maria. Até então nunca reparara direito na irmã. Quer dizer: reparara sim, mas sem compreender. Nessa manhã ela principiou a compreender. Pela primeira vez a viu de óculos. E isso já foi uma surpresa. Nunca suspeitara da existência daqueles óculos de aros de tartaruga. Nunca, nunca mana Maria pusera os óculos na presença dela. Pois mana Maria a recebeu assim, de óculos. Estava com a costureira e mandara chamar Ana Teresa para tomar as medidas. Ana Teresa ficou em pé, no meio do quarto, imóvel, com os olhos nos óculos. A arrumadeira entrou, Ana Teresa olhou para ela e viu também nos olhos dela a mesma surpresa dos óculos. Nunca, nunca mana Maria aparecera de óculos para ninguém. Ana Teresa se deixou dominar por aqueles vidros redondos, aqueles aros de tartaruga manchada. Sentiu a autoridade daqueles óculos.
Aumentou nela o respeito que já tinha pela irmã mais velha e que a levava instintivamente a chamá-la mana Maria. Não Maria simplesmente. A irmã, quinze anos mais velha, impôs-se desde logo ao respeito de Ana Teresa. E esse respeito se exprimiu como de regra por um título: mana Maria valia por Doutora Maria, Excelentíssima Senhora Baronesa Maria, Sua Majestade a Rainha Maria. Sempre a chamou assim.
Ana Teresa olhava os óculos. Depois disfarçou, olhou as mãos. Mãos magras, unhas bem tratadas, mãos esquisitas. Magras demais. Depois bruscas. Faziam tudo depressa. Ajeitavam o cabelo com um repelão. Ana Teresa olhou os cabelos. Eram ondeados. Eram pretos. Pretos demais. E não eram cortados. Todas as moças usavam os cabelos cortados. Todas. Mana Maria não usava. Mana Maria enrolava os cabelos na nuca. E o penteado quase cobria as orelhas. Só se viam os lóbulos.
As sobrancelhas eram grossas. Grossas demais. E o nariz também era ossudo demais. E os dentes? Os dentes não se viam. Mana Maria falava sem mostrar os dentes. Ana Teresa não achava mana Maria bonita.
Mas aqueles óculos, passada a surpresa, eram bonitos. Iam bem para mana Maria. Ana Teresa não sabia direito o que era mas já agora lhe parecia que mana Maria sempre usara aqueles óculos. E ficava melhor assim. Ficava completa.
Mana Maria olhou num papelzinho, falou pra costureira:
- O uniforme pra sair tem gola branca.
Uniforme? Ana Teresa não compreendeu. Nem mana Maria lhe explicou nada. Só dias depois é que o pai com ela no colo contou tudo:
- É muito bom. É o melhor colégio de São Paulo. As internas são tratadas como filhas.
Falou outras coisas, reparou nas lágrimas da filha, enxugou, parecia triste. E disse:
- Eu por mim não punha você interna. Mas sua irmã quer. Ela é que é a mãezinha de meu bem agora. Precisa fazer como ela quer, obedecer em tudo, ser bem boazinha pra ela. Como pra mamãe antes de ir pro céu. Igualzinho.
Foi para o colégio. Mana Maria a deixou entre a madre superiora e a madre prefeita no dia seguinte ao da missa de sétimo dia. Passaram antes pelo cemitério. Colocaram umas flores entre as coroas murchas do enterro, rezaram, tocaram para o colégio. Mana Maria corajosa como sempre. Conversou com a superiora, pagou o primeiro semestre adiantado, virou-se pra irmã:
- Então até domingo.
Ana Teresa com os olhos chorosos deixou-se beijar na testa, beijou mana Maria no rosto, abraçaram-se. Mana Maria se desprendeu com uma recomendação:
- Tenha juízo.
No domingo voltou com o pai. Ana Teresa recebeu-os com uma reverência:
- Bonjour; mon cher papa. Bonjour, ma soeur.
- Já fala francês?
Joaquim Pereira ficou radiante. Mana Maria falou quase todo o tempo com a superiora. Na saída disse para a irmã:
- Você precisa caprichar melhor no desenho.
Ana Teresa prometeu caprichar. E na despedida repetiu a reverência:
- Au revoir, mon cher Papa. Au revoir, ma soeur.
Voltando para casa mana Maria repetiu as informações da superiora: ótimo comportamento e ótima aplicação, havendo o que dizer somente quanto ao desenho. Joaquim Pereira se admirou:
- Por que que você não disse pra menina os elogios?
Mana Maria respondeu:
- Eu sei o que faço.
Joaquim Pereira reprovou em silêncio aquela dureza. E para dizer alguma coisa:
- Que é que você acha de eu comprar um Ford?
Mana Maria perguntou:
- Pra quê?
- Que pergunta. Pra quê? Pra usar.
Mana Maria como que esboçou um sorriso. Joaquim Pereira não disse mais nada.