Tia Carlota vivia sorrindo e mostrava dentes bonitos. Mana Maria tinha um fraco por ela. Só a presença de tia Carlota faz bem pra gente, disse um dia. A mãe falou:

- Você também acha? Quando ela era moça toda gente dizia isso. Os moços, então!

Purezinha não sabia que ainda depois de casada a irmã com sua presença fazia bem aos homens. A ela, dava uma impressão de desordem. E às outras mulheres, de perigo. Mana Maria, severa com as mulheres (sobretudo do temperamento da tia), abria uma exceção para aquela criatura alegre que a divertia, até a enternecia que nem uma criança. E era mesmo uma criança.

- Deus não me deu filho (dizia tio Laerte) mas me deu uma mulher que é uma menina perfeita: esposa e filha ao mesmo tempo.

Era quinze anos mais velho do que ela, sofria de asma e nunca soube o que era trabalho.

Mana Maria (antes que a criada lhe anunciasse a visita) ouviu da copa o som do piano: tia Carlota na certa. Tocava um tango à maneira dela: velozmente, trepidamente. Assim executava tudo, fosse o que fosse. E nunca ia até o fim. Mal percebeu a entrada de mana Maria, deu um soco no teclado (- É uma lata este piano!), meia volta no tamborete e um pulo:

- Bom dia!

Sentaram-se no sofá.

- Tire o chapéu - disse mana Maria.

- Não, prefiro ficar com ele por causa da ondulação - respondeu tia Carlota.

- Como queira.

- Não; é melhor tirar.

Tirou, abriu a bolsa, olhando o espelhinho ajeitou as ondas.

- Você não tem um espelho decente nesta sala? Então vou no seu quarto.

Penteava, passava a escova, acariciava o cabelo com a mão, não acabava mais.

- Para fazer a boca prefiro o da bolsa.

Perto da janela, com a bolsa aberta bem erguida na mão esquerda, o lápis na direita, fez, desfez, fez, desfez, fez a boca.

- Agora um pouco de pó-de-arroz. Este nariz é a minha diferença. Tenho horror de nariz vermelho! E você?

Mana Maria nem respondeu. Agora as pestanas. Molhava a escovinha na boca, passava nas pestanas. Agora as sobrancelhas, dois fios. Agora de novo a boca. E de novo o penteado. E mais um pouco de pó-de-arroz.

- Não se toma chá nesta casa?

- Toma-se!

- Então vá providenciar enquanto eu dou inspeção nas unhas.

Um minuto depois mana Maria voltou encontrando tia Carlota bastante contrariada.

- Eu acabo não tocando mais piano por causa destas malditas unhas! Não há dia que não lasque uma! Que horror! Que é que tem para o chá? Uma porção de coisas gostosas? Ótimo. Estou com uma fome! Você não pode imaginar como a Etelvina está cozinhando mal! Quase não almocei. Também eu para dona de casa não tenho jeito mesmo, é inútil! Você, sim, puxou por sua mãe! Como vai Ana Teresa?

- Vai bem.

Tia Carlota tomou dois goles de chá, engoliu um pedacinho de bolo, suspirou:

- Pronto! Já estou farta! Que será, hem, Maria? Em tudo eu sou assim! Estou com fome, sento na mesa, perco a fome! Vejo um vestido bonito, compro o vestido, me enjôo logo! Que será?

- Fartura.

- Fartura? É o que você pensa, minha filha!

Acendeu um cigarro, cruzou as pernas, estalou as unhas, demorou o olhar em mana Maria:

- Vamos pra outra sala?

Tinha alguns livros sobre a mesinha redonda.

- Você está lendo livros comunistas, Maria?

- Estou.

- Que horror! Ali! é verdade! Seu pai me falou que você tem um romance estupendo que um tal Dr. Pinto lhe deu! Você quer me emprestar?

- Já devolvi. Foi emprestado, não foi dado. E não tem nada de estupendo.

- Seu pai que disse!

- Quando é que esteve com ele?

- Ontem. Achei ele preocupado!

Tia Carlota de repente pegou nas mãos de mana Maria:

- Vamos! Responda! Por que é que você não quer casar com o Dr. Ismael Pinto?

- Não é Ismael: é Samuel.

- Isso mesmo: Samuel.

- Por quê? Papai é que lhe encomendou essa pergunta, está visto!

- Foi ele sim. Mas isso não tem importância. Responda pra mim. Por quê?

- Por que é que você casou com tio Laerte?

- Ora essa. Porque... porque gostava dele, porque queria casar.

- Pois é isso.

- Como isso?

- Não caso porque não gosto do médico e não quero casar.

Tia Carlota esmagou o cigarro no cinzeiro (Abdulla tem esse defeito, queima sozinho) tornou a pegar nas mãos da sobrinha, arranjou um ar grave:

- Sabe de uma coisa? Você faz muito bem! Não gosta dele, não case! Depois, você tem dinheiro, não precisa de amparo de ninguém.

- Nem que precisasse.

- Ora essa. Ah! não! Isso não!

O protesto foi tão pronto, tão vivo, que mana Maria estranhou. Tia Carlota percebeu a estranheza:

- Para que essa cara.

- Nada. Pensava que você não dava importância a dinheiro.

- Não dou mesmo. Gasto tudo quanto tenho. Desprezo dinheiro. Dinheiro para um é lixo. Jogo fora logo. Mas não vale a pena falar em coisas tristes.

Ergueu-se, foi até o porta-chapéus (- Você precisa reformar estes móveis, não se usa mais porta-chapéus de gancho!) olhou de perto a boca, olhou mais de longe os cabelos, suspirou.

- Bom. Vou dar o fora. Minha missão está cumprida.

Mas era evidente o desejo de ficar. Mana Maria sentia isso, percebia na tia a vontade, talvez a necessidade de um desabafo.

- Fique mais um pouco falou.

- Está bem. Fico se você me deixar fumar um cigarro. Quem fuma seus males espanta. Não sabia?

- Fico sabendo.

Aquela figura sentada no bordo do sofá, de pernas trançadas, o busto inclinado para a frente, cotovelos fincados no regaço, a mão que segurava o cigarro à altura da boca, mana Maria via sempre, igualzinha, nos desenhos de capa de revista, nos retratos de estrelas cinematográficas. Todos os gestos e atitudes de tia Carlota eram convencionalmente elegantes, de tela.

- Que olhar é esse? Nunca me viu? Não gosto que olhem para mim!

Mana Maria sempre pensou o contrário.

- Você se engana! Detesto que me olhem! Toda a gente me acha bonita. Me dá uma raiva! Eu não me acho feia. Mas também essa maravilha que dizem!...

Então se queixou da vida. Estava farta da vida, estava farta de ouvir elogios. Só isso é que ouvia em toda a parte, a toda a hora. E de repente:

- Você não sente às vezes vontade de fazer uma loucura? Não sei bem dizer, uma coisa assim como se jogar pela janela, quebrar tudo, apunhalar gente na rua? Eu sinto. Hoje estou nos meus dias. Briguei com Laerte, gritei com os criados, pintei o sete! Este maldito cigarro, se a gente não toma cuidado, queima os dedos. Também é a última caixa...

- Por quê?

Fez um sorriso amargo.

- Por quê? Você quer saber por quê? Porque não há mais dinheiro! Ah! Senhor! É melhor não ligar pra esta miséria de vida!

Foi para o piano.

- Sabe que é isso?

- Viúva Alegre?

- Ainda não, infelizmente!

E riu. Mana Maria não achou graça.

- Você precisa arranjar uma ocupação qualquer, tia Carlota. Uma coisa que lhe encha o tempo. Uma coisa séria. Um filho, por exemplo.

- Está doida! Basta o marido! Você ainda quer me dar um filho! Deus me livre!

Largou o piano, acendeu mais um cigarro:

- Isso que eu disse é brincadeira minha. Você precisa se casar.

Então chegou a vez de mana Maria rir.

- Não ria não. É isso mesmo. Mulher foi feita para casar.

- E ter filhos.

- Isso não. Quer dizer: você por exemplo é o tipo da mãe. Mas eu não. Não tenho saúde, não tenho jeito e agora também já não tenho dinheiro.

Esse assunto de dinheiro não agradava mana Maria. Ia dirigir a conversa para outro lado. Mas tia Carlota continuou:

- Se você soubesse a apertura em que nós estamos...

Não houve outro jeito senão falar:

- Não é possível.

- É sim.

E os olhos umedeceram logo porque em tia Carlota as lágrimas eram fáceis como a alegria. Foi preciso ir para o quarto de mana Maria onde havia deixado a bolsa com o lenço. De pé, virando a cabeça de forma a concentrar as lágrimas no canto do olho para chupá-las com a pontinha do lenço torcida, tia Carlota ia falando:

- Já há tempos eu via Laerte preocupado. Até que ontem ele me contou a verdade. De forma que este inverno não podemos sair de São Paulo. Veja você que situação!

Mana Maria sem dizer palavra esperava o momento da facada. Recusaria? Recusaria.

- E de vestidos, então, nem se fala! Aí mana Maria falou:

- Que criancice, tia Carlota! Para que mandar fazer mais vestidos? Você já tem uma coleção enorme. E toda ela moderna. Esse de hoje por exemplo é novo.

Tia Carlota guardou o lenço na bolsa, estava mesmo em frente do espelho grande do guarda-roupa, aproximou-se, passou as mãos pelas cadeiras, arqueou os braços, colocou-se de viés e sem tirar os olhos do espelho:

- Você não acha que ele me engorda um pouco?

- Não. Vai muito bem para você.

Tia Carlota começou a pôr o chapéu.

- Se eu pudesse diminuir um pouquinho estes seios! Operação eu não faço, tenho medo. Mas não são muito exagerados, você não acha?

- Que idéia!

No jardim tia Carlota perguntou:

- Então, nada feito?

- Como, nada feito?

- Casamento? Seu pai na certa aparece hoje a noite para saber o resultado. Não fale nada com ele, bem?

- Fique descansada.

- Nada feito?

- Nada.

Mana Maria acompanhou-a até o automóvel. Já o chofer batera a porta quando tia Carlota se lembrou:

- É verdade! Vocês vão jantar comigo quinta-feira?

- Vamos!

- Não se esqueçam! Às oito horas!

Mana Maria fechando o portão pensava no presente de aniversário para tia Carlota. Um vidro de perfume? É. Tabac Blond.