Maria Clementina Barros Lapenda: marcas do que ficou

Ele, o artesão,
faz dentro dela
a sua oficina.
Ela, a tecelã,
vai fiar,
nas malhas do seu ventre,
o homem de amanhã![1]



Dizem que só teremos a possibilidade de ser íntimo de alguém, fazer parte de alguém, após algum tempo de convivência.
Não é de todo verdade, pois com mãe é diferente.
Antes mesmo de ela nos conhecer, ou mesmo saber que simplesmente existimos, já estamos lá, partilhando seu íntimo, conectados um ao outro.
Essa ligação é tão forte, um pacto tão sublime, que quando de entende necessário o momento da separação, o nosso nascer, é como uma ruptura, a quebra do elo de união, representado pelo corte do cordão umbilical.
E é tão forte tal afastamento que nos pomos a chorar.
A mãe, até que de felicidade, por finalmente conhecer aquela criatura que, devagarzinho, durante toda a gestação, pode contemplá-la pelo seu melhor: o seu interior.
Mas o filho, o choro é o lamento pela separação, por não possuir ele possiblidade de ser íntimo da sua mão, ser o seu íntimo.
Há compensações, é certo, como poder ainda desfrutar do aconchego, do alimento materno, dos cuidados... mas, é uma proteção menor, que não guarda mas aquele contato com a alma.
Durante a vida, a cumplicidade continua, dedicando-se a mãe a levar o conhecimento àquele ser, a luz... os primeiros passos, a primeira queda, cujo consolo rápido faz com que as lágrimas se acalmem, secando.
Dia a dia, a cada instante, tudo se renova, sempre uma mão amiga, o colo meigo, um afago, um acalanto, um guia.
Ao acordar de um novo dia, vemos que o dia anterior não mais existe, não o temos mais, mas ainda temos muito tempo; porém, todo dia nasce novo em cada amanhecer.
Uma nova intimidade, um novo pacto, uma nova relação se forma nesse trajeto, no novo caminho que surge a cada amanhecer.
Por fim, ao nos despedirmos, derradeiramente da matéria, podemos não ter mais a mão que guia, a proteção para os passos distraídos, ao menos no sentido físico, mas certamente haverá, no nosso íntimo, a lembrança daquela malha tecida ainda no ventre, que nos ajudará na travessia, a alcançar a luz que ela fez brilhar quando nascemos, mostrando-nos o norte a seguir.

Na noite sem fim,
és minha estrela guia,
à qual me coloco sob eterna proteção.
Guarda zelosa,
sob tua égide,
deixo o meu ser,
para vislumbrar o mundo
em um novo amanhecer.



Nossa vida é como uma longa caminhada
até o topo de uma montanha.
No início, como aos pés da montanha,
vemos a caminhada
como nossa etena luta diária
pela sobrevivência.
No meio, desta árdua caminhada,
ao olharmos para trás,
vemos que com todas as tristezas, alegrias e rotinas,
tudo o que deixamos,
nada se compara com o que há de vir
na eterna caminhada.
E ao atingirmos, finalmente,
o alto da montanha,
ao final da jornada da vida,
ao início da eternidade,
olhamos e vemos, então,
a grandeza da criação divina.

Sua caminhada nada teve de árida. Ao contrário, grandes frutos brotaram, pois fértil foi o terreno em que foi construída sua morada.
Não que tenha ele sido oferecido pronto e cultivado, mas você sob prepará-lo, escolher as sementes e assim semeá-lo, para ao final colher.
Em nenhum momento esperou que outros se entregassem ao trabalho árduo, pois não seria de seu feitio ser mera figuração, ainda que se possa entender, pois soube compartilhar, dividir, viver com aquele que escolheu para, conjuntamente, escrever a história da sua vida.
Afinal, como alcançar o alto da montanha sem dispor da ajuda de um companheiro para a viagem traçada? Um sempre a base, a fortaleza, a motivação do outro. Juntos, puderam persistir e chegar lá... separados, poderiam até chegar lá, mas não estariam lá, pois seria, quanto muito, uma estória, e nunca a história de uma vida.
Um sempre completando o outro, o conjunto sendo maior que o todo, para que suas vidas fossem, como ainda o é, uma história sem fim.
E quis o destino, como você sempre falava, que ficasse guardada, à espera daquele com quem dividiria seu futuro.
Após o término de um longo namoro, na realidade mais à distância do que fisicamente, eis que em seu coração surge aquela pontada digna das matérias que viriam a ensinar — afinal Cupido/Eros vem da mitologia clássica, apropriado para os professores de grego/latim e suas literaturas — por seu professor de italiano no curso de Letras (como ti voglio bene, amore mio...).
Ambos abraçaram o magistério, sendo ele voltado para as línguas e ela, além da língua portuguesa, às literaturas; assim, compartilhavam um perfeito casamento, juntos no seu dia a dia, muitas vezes nos mesmos colégios e faculdades.
Também uma dedicação, um para com o outro, quando dos concursos que vieram a se submeter para o magistério, com o apoio necessário para obter o destaque conseguido por cada qual.
Igualmente, quando instado a posto administrativo universitário, sabia papai que teria incondicionamente o mesmo apoio e dedicação de sua parte, sendo cúmplices nas alegrias, solidários nos momentos de tormento, os quais seriam simplesmente suplantados pela forte conexão entre ambos, possibilitando, assim, contabilizar as grandes alegrias, pois mesmo os percalços ocorridos representariam a alegria de havê-los vencido, diante da união que os fazia fortes.
Sua vida podia até não ser um palco iluminado, mas a luz sempre estaria lá, dentro de você, não apenas a orientá-la, mas, certamente, para dar o rumo àqueles que a cercaram durante sua passagem entre nós, seus familiares, seus amigos, seus alunos (mais amigos, até...), enfim, todos os que tiveram a sorte de conhecê-la e, mais sorte ainda — a dádiva —, de conviver com você.
Aliás, alunos não foram poucos, ao contrário, muitos e marcantes até, sendo ainda hoje lembrada por uma legião de~fãs, nas apenas aqueles que se encontravam diuturna ou esporadicamente com você, mas, e principalmente, por aqueles que religiosamente faziam questão de demonstrar a lembrança, como alguns faziam, por exemplo, ao enviarem, não um cartão, mas uma longa carta no Natal de cada ano; telefonavam; enfim, sempre se faziam presentes, em uma demonstração de que muito a estimavam, mesmo após tantos anos longe das salas de aula.
Não seria, então, de espantar, a alegria de cada um deles quando, ao ingressarem no curso superior, a terem, novamente, como professora; ao se tornarem professores, tê-la como colega.


No livro de presença do seu velório, prestando suas últimas homenagens, assim se manifestaram seus filhos, noras, netos, amigos e parentes:

Mamãe
A cada dia que se passa estamos a perder um pouco de nós mesmos em cada pessoa querida que se vai. Você e papai levaram muito de mim, mas também deixaram muito de você.
Obrigada por tudo, pela forma como você me ensinaram a ser.
Um beijo muito carinhoso da sua filha, que está triste pela sua ausência, mas feliz por saber que você está ao lado de papai.
Ana Lúcia
Clementina,
Muita saudade! Ótimas lembranças! Muitos ensinamentos e um enorme legado!
Um beijo grande.
Sophia
Você e papai foram meu guia e exemplo de vida. Obrigado por tudo que sou. Saudades.
Marcos
Agora não teremos os papos de mais de 50 anos dos bancos da Faculdade. Lembranças a Geraldo.
Palhares
Você sempre esteve comigo me guiando e espero que mesmo agora você esteja ao meu lado fazendo o que você sempre soube fazer. Te amo vovó!
Nathália
Obrigada pela mãe-sogra que você foi. Jamais esquecerei de todo carinho e ensinamentos, que você sempre soube, sabiamente me dar. Saudades!
Anízia
Se há alguns (vários) anos, nestes dias (5 e 6 de janeiro) você sentia a dor do parto, hoje você parte e nos deixa a dor da saudade.
Contudo, não será uma dor doída ou dolorida, pois beijo de mãe cura tudo e você nunca se furtou de distribuí-los.
Você não partiu, apenas juntou-se na constelação onde já se encontra a estrela da sua vida: papai!
do seu filho Marcelo
Querida tia Maninha, guardaremos com carinho, as boas lembranças que temos do nosso convívio.
Quinca e Kátia
Vovozinha linda, obrigada por estar sempre ao meu lado quando precisei, por todas as nossas conversas e bons conselhos, por todos os nossos momentos.
Vou sentir falta de você, dos seus abraços e seus carinhos.
Vai com Deus e descanse em paz ao lado de vovô e olhando por todos nós.
Te amo muito.
da sua moreninha Marcella
Tia Maninha, ficamos com as boas lembranças que o tempo não apaga. A bênção!
Ricardo José e Carmem
Saudades!...
Todos os amigos e parentes



Perguntou a flor: o aroma acaso me sobreviverá?
Perguntou a lua: alguma luz guardo depois de morrer?
Mas o homem disse: por que acabo e fica entre nós o meu canto?[2]



Tô triste! Mamãe partiu. Foi morar no infinito e virar constelação!

A dor do parto, sentiu ela por três momentos, sendo que o primeiro coincidente, se bem que afastado no tempo por alguns (não poucos) anos, com o quarto e definitivo, quando, utilizando-se da sua docência, fez aplicar a forma verbal: "Agora, eu parto!".
A dor sobrou para´nós, que aqui ficamos, contudo, mas uma vez ouso dizer que não se trata de uma dor doída ou dolorida, pois beijo de mãe cuja tudo!
Sempre renovo em mim nada ser em nossas vidas por acaso, fruto de meras coincidências, que não existem.
Quando Papai faleceu (encantou-se disse eu, à época, por fora ao infinito na busca da sua constelação), no dia 19 de dezembro, há seis anos atrás (2004), seu corpo baixou em sepultura no dia 20 de dezembro, quando ambos comemorariam 52 anos de casados, compartilhando, ali, aquele festivo momento com parentes e amigos.
Mamãe, falecida no dia 5 de janeiro, juntou-se a Papai, fisicamente pode-se dizer, no dia 6 de janeiro, que além de ser o dia de aniversário de sua filha, "por acaso" é também o Dia de Reis, quando se comemora a chegada desses à presença do Menino Jesus e, assim, encerrando-se os festejos natalinos.
Aqui um parêntesis, para melhor entenderem, já que em nossa família, em vista do aniversário de casamento ser no dia 20 de dezembro, era nessa data que nos reuníamos para a ceia de Natal, ou seja, o início daqueles festejos do Advento.

Outro fato. Ainda quando se encontrava Papai fisicamente entre nós, as noites de quintas-feiras eram sagradas, reunindo-se toda a família à mesa.
Bem, em uma quinta-feira, no dia 6 de janeiro, não apenas seu núcleo familiar, mas toda a família e amigos se reuniram no sepultamento do corpo de Mamãe, indo ali ela ao encontro — a dois —, naquela nova morada, com os restos mortais de Papai, lado a lado, desfrutando um reencontro onde poderiam até ter dito, após a cerimônia: "enfim sós nunca; mas juntos outra vez no mesmo leito!"

Retornando ao acaso, rememoro uma, digamos, profecia de Lourenço, índio fulni-ô que muito ajudou Papai quando dos seus estudos sobre a língua iatê, já que em diversos momentos intermediaria, segundo ele, os espíritos sagrados indígenas quanto ao futuro: para as grávidas que moravam nas redondezas, qual o sexo da criança; para outros, digamos, como seria a morte dos indagantes.
Para Papai e Mamãe, disse ele que, de tão unidos, poucos dias separariam o falecimento de cada um, até mesmo sendo a hipótese de ser no dia seguinte ao do outro.
Tudo bem que cronologicamente falando, até mesmo utilizando-se do calendário oficial, mais de seis anos separaram seus falecimentos, mas como desconsiderar que um foi no início, para nós, dos festejos natalinos e o outro no seu encerramento, quando da queima da lapinha?
Ainda, Papai, na comemoração de seu aniversário de casamento, ou seja, naquele que é considerado o primeiro dia de uma vida a dois, enquanto que Mamãe, na comemoração de aniversário do primeiro filho — sua filha —, cujo nascimento representaria o passo seguinte, o segundo dia, na vida de um casal?
E mais, um dileto aluno deles, Padre Caetano, impossibilitado de celebrar, pela separação geográfica, a cerimônia de bodas de ouro, desejo daqueles jovens nubentes, cultuou a esperança de uma nova vida para Papai, quando do seu sepultamento (1º dia) e, hoje, a esperança de uma nova vida para Mamãe, neste seu 7º dia de falecimento (2º dia).
Assim, simbolicamente foram juntos formar uma nova constelação, ainda que tenhamos podido usufruir da presença de Mamãe por mais algum tempo, até aquele dia seguinte.

Por fim: um epitáfio?

"Ao nosso lado, viu o sol nascer e se pôr!"

Aliás, não se aplica, a nenhum deles, a letra da conhecida canção, até mesmo porque não foi o acaso que me protegeu quando andei distraído, mas sua mão atenta e amiga.

Siga em paz, Mamãe, ciente de haver cumprido, sem qualquer ausência, todos os papéis que lhe foram reservados na sua passagem terrena, como filha, esposa, mãe, avó, amiga...
Coisa para se guardar no lado esquerdo do peito, dentro do coração, mesmo na distância.[3]


  1. autor desconhecido, rabiscado em uma banca de aula
  2. Pablo Antonio Cuadra. Meditação ante um poema antigo (trad. Manoel Bandeira, in Estrela da vida inteira)
  3. Oração proferida em 11 de janeiro de 2011, na Celebração da Esperança (Missa de 7º Dia), realizada na Igreja de Nossa Senhora da Piedade