Sr. Redator.
Antes de mais nada, antes de lhe dar conta dos fatos extraordinários que se vão seguir; seja-me permitido dizer duas palavras a respeito de minha sogra, dessa megera, a quem o acaso, por desgraça, fez mãe da mulher com quem casei.
Dona Leonarda dos Prazeres é uma velhusca de quarenta e tantos anos que não parece ter mais de trinta e poucos. Forte, bem conservada e lépida, diz até muita gente que ela mete mais vista do que a filha, com quem aliás se parece muito.
Dona Leonarda é viúva e foi casada quatro vezes. (Margarida nasceu do seu primeiro matrimônio.) Teve por maridos os seguintes homens: um ferrador; um açougueiro, um jornalista e um farmacêutico.
Consta que todos eles acabaram meio idiotas, notando-se que dous deram cabo da vida, um suicidando-se a tiro e o outro a veneno.
Dona Leonarda herdou do último de seus maridos, o farmacêutico, uma casinha de porta e janela, cinco apólices da dívida pública e a farmácia. Comeu tudo isso dentro de um ano e passou a viver à minha custa. Eu que não estava disposto a aturá-la em casa, arranjei-lhe uma pensão com os parentes ricos do defunto farmacêutico e tratei de nunca mais saber notícias dela.
Isto foi, haverá cousa de quatro anos, e, depois de todo esse tempo, é que a fui encontrar pela primeira vez ali; na Casa de Correção e presa como ladra, segundo a informação do meu amigo.
Entrei na célula e, sem mais comentários, exigi de minha sogra a explicação de tudo aquilo. Ela fechou os olhos e meneou a cabeça negativamente.
— Não quer falar? perguntei eu.
Ela tornou a dizer que não, com a cabeça.
— É a sua última resposta?
Ela sacudiu a cabeça afirmativamente.
— Mas a senhora não sabe o que me trouxe aqui? Ela levantou os ombros, com indiferença.
— Não sabe que se trata de sua filha?
Ela repetiu o movimento dos ombros.
— Saberá ao menos dizer-me o que foi feito dela?
A velha esticou o beiço inferior com um jeito expressivo, que dizia — Não sei."
Cada vez mais furioso, pedi ao amigo que me levasse à presença de Castro Matta.
— Não posso — respondeu ele. — Tenho ordem para não o mostrar a ninguém.
Ao sair da Casa de Detenção, um dos outros amigos, aquele justamente que me havia afiançado que o Matta estava recolhido a Misericórdia, segredou-me já na rua:
— Vou agora à Misericórdia, a serviço; se quiseres ver o homem, vem comigo.
Aceitei o convite e, imagine-se qual foi a minha nova surpresa, quando, penetrando o meu amigo na enfermaria, tornou ao meu lado e disse-me ao ouvido:
— Já não encontras um homem, encontras um cadáver.
E, avançando alguns passos, foi ter a uma cama, onde se via um grande vulto humano coberto por um lençol velho.
O meu amigo levantou a coberta por uma das pontas e acrescentou:
— Vê!
Eu puxei do bolso a fotografia que me dera a Jeannite e confrontei-a com o cadáver.
Não podia haver dúvida.
Era o mesmo, sem tirar nem pôr.
E a graça é que a fotografia estava perfeitamente de acordo com as primeiras informações que no ponto das Barcas me dera o carregador, "magro, cabelo preto, barba a inglesa", e pela elegância é de supor que usas-se polainas e chapéu alto.
Detive-me defronte daquele cadáver, a fazer algumas considerações a respeito dele.
"Ali estava para sempre inanimado o homem que minha mulher preferiu a mim e por quem trocou a sua tranqüilidade, o seu futuro e a sua honra! E fossem lá compreender as mulheres! Por que razão aquele tipo de barbas inglesas, aquele desordeiro vulgar e de más entranhas sem dúvida, havia de merecer mais do que eu?... Por quê? Por ser bruto? Não! Por ter mais talento? Não creio... Ele não seria capaz de escrever estas cartas... Por ser mais honesto? Impossível! Por que seria então? Ainda se fosse rico, mas qual, segundo informações que me deram mais tarde, só lhe encontraram nas algibeiras dous níqueis de tostão, uma caixa de fósforos, algumas cartas de namoro, algumas contas, um pente e três cigarros. Por que pois teria minha mulher o preferido a mim?
"Ah! Quem poderá explicar esses mistérios e essas aberrações do coração feminino! Quantas vezes essas insensatas não largam de mão o ouro verdadeiro para se lançarem sobre o mais ordinário dos metais!..."
Fazia eu tais considerações, quando o meu bom amigo tocou-me no ombro.
— Então! — disse ele — queres agora ficar aí, defronte desse corpo?
— A que horas é o enterro? perguntei.
— Deve ser daqui a uma hora. Às quatro.
— Pois eu espero. Quero acompanhá-lo até ao cemitério, quero vê-lo descer à sepultura, cair-lhe sobre o peito a terra e a cal, e só depois disso respirarei com franqueza.
— Então, adeus — disse-me o amigo. — Deixo-te, que ainda tenho que fazer.
— Adeus. Obrigado.
O amigo saiu e eu fiquei ao lado do defunto. Estava disposto a não abandoná-lo um só instante.
"Depois do enterro ou talvez amanhã" — resolvi comigo — "tratarei de continuar nas minhas pesquisas. Minha sogra não quer filar, mas eu hei de descobrir onde se esconde a filha!... Em último caso vou ter com a Jeannite e peço-lhe novas informações."
Mas, apesar de ter ali, defronte dos olhos, aquele cadáver; que era a confirmação silenciosa da fotografia e das afirmações do sujeito que o vira com minha mulher, as palavras do meu outro amigo não me deixaram a cabeça!
"Está aqui na Casa de Correção escondido; temos ordem superior para não consentir que ele se comunique com pessoa nenhuma e para declarar que ele foi para a Misericórdia. Amanhã hás de ver isso mesmo nas notas policiais...
E como se poderia explicar o engano tão grosseiro em que se achara o meu outro amigo? Como explicar igualmente a prisão de minha sogra? Onde estaria a minha mulher?
Eram essas as interrogações que se erguiam dentro de meu cérebro, quando vi chegar um homem, acompanhado por dous serventes, o qual apontou para o cadáver, e disse:
— Carroça com ele!
— Perdão — intervim eu, chegando-me para o sujeito. — Saberá dizer-me, caro senhor, de quem é este cadáver?
— Do Malta.
— Tem certeza que é Malta?
— Malta ou Mattos... — respondeu o sujeito. — Também não sei com certeza. Se não me engano é Castro. Castro Malta ou Castro Matta. Pelo nome não se perca!
"Não se perca! Mal sabia o desgraçado o que havia de suceder": considerei comigo e, tornando ao sujeito, perguntei-lhe se não sabia que espécie de homem fora esse Malta ou Mattos.
— Uma espécie de vagabundo!
— Mas não tinha profissão?
— Qual! Vivia da jogatina.
"Ora essa! — considerei eu. — "O Castro Matta de que me falaram os vizinhos, quando eu saí a procurar minha mulher, era encadernador; e constou-me que empregado em uma das melhores livrarias da Corte."
Cada vez mais intrigado, fiz ainda algumas perguntas ao sujeito e, vendo que não obtinha melhores esclarecimentos, despedi-me dele e dispus-me a acompanhar o enterro.
Eram cinco horas da tarde quando saiu o corpo da Santa Casa da Misericórdia, dentro de um carro negro, onde se via uma cruz pintada de branco. Tomei um tílburi e acompanhei o sem dar a entender que o fazia.
A carroça tomou a direção do Cemitério de São Francisco Xavier; eu atrás.
Ia triste, como se acompanhasse o enterro de um parente ou de um amigo, sentia até vontade de chorar; quando o meu tílburi deslizou surdamente pela areia do Campo.
E a carrocinha negra, miserável, lá ia na frente puxada por um burro. De vez em quando, nas curvas do caminho, eu a perdia de vista, mas daí apouco divisava de novo o chapéu alto do gato pingado e, então, fechava os olhos para o não ver.
Que estranho mal-estar se apoderava de mim à proporção que me aproximava do cemitério! Afigurava-se-me um crime o que eu fazia naquele momento. Ia perseguindo um cadáver; rondando-o como se receasse vê-lo fugir no meio da viagem.
Puxei do bolso a fotografia e quase me faltou a coragem para encará-la. O retrato sorria, parecia sorrir de mim. Por instantes, afigurou-se-me que os traços de sua fisionomia se acentuaram para sorrir com mais vontade; depois parecia que se fecharam na triste expressão que eu vira na cara do defunto.
Tornei a guardar a fotografia, e só então reparei que o tílburi já estava parado há alguns minutos, defronte do portão do cemitério.
Entrei sempre atrás da carroça e fiquei meio contrariado, quando o guarda declarou que já não eram horas de enterrar.
O corpo foi depositado na capela. Era tal a insistência com que eu o acompanhava que passei por parente do morto. O meu cocheiro chegou mesmo a lançar-me um olhar de consolação.
Ia a sair, mas hesitei. Despedi o tílburi e pus-me a passear em volta da capela, onde podia por entre as grades ver o cadáver deitado ao comprido sobre uma mesa de pedra.
Não sei por que eu me demorava ali, mas sei que me sentia atraído misteriosamente para aquele corpo.
Não podia lhe tirar a vista de cima. Olhei em torno de mim, estava só, o guarda se havia afastado, quando um grito me escapou dos lábios.
Pareceu-me ter visto o cadáver virar a cabeça de um para outro lado.
"Estou sonhando!..." disse comigo, mas resolvi observar; ainda que fosse preciso esconder-me no cemitério.
Pela seguinte carta verá V. S.ª que não era um sonho.

Sou de V. S.ª

At.º cr.º e ven.or