Memória sobre a História e Administração do Município de Setúbal/I

I
Antiga e nova Cetóbriga

António Feliciano de Castilho, que bem se pode chamar o Frei Luís de Sousa moderno, escreveu a respeito de Setúbal estas imortais palavras naquela maviosa linguagem que o tornou o maior e mais doce prosador de nossos dias:

«Quem sabe quantos outros (poetas) iguais ou maiores não poderá ainda criar um torrão, pela amenidade, pelo céu, e pelas circunvizinhanças tão inspirativo: com a Arrábida religiosa a um lado, vestida dos seus rosmaninhos e alecrins; e Palmela a devanear do seu castelo proezas guerreiras doutras idades; doutro lado Troia, a romana antiga, que para ali se jaz; e o Oceano, a meditação imensa; torrão das laranjeiras noivas, como a Itália; e por baixo tesoiro de jaspes e mármores, resguardados para estátuas de seus filhos. Solo providencialmente prendado de tudo, e donde, ainda há dois dias, um insigne poeta dinamarquês, o nosso amigo Andersen, estanciando aí depois de percorrida a Europa, me escrevia que tinha encontrado ao cabo o Paraíso Terreal.»[1]

Castilho não fora realmente exagerado no formosíssimo bosquejo que a sua delicada pena traçou de Setúbal, nem também o fora o grande poeta dinamarquês Hans Christian Andersen, que, em 1866, esteve hospedado na quinta dos Bonecos, então propriedade do Sr. Carlos O'Neill, e hoje da viúva deste cavalheiro, quinta situada em local pitoresco, a menos de um quilometro da cidade de Setúbal. Torrão das laranjeiras noivas, como disse Castilho, paraíso terreal, como lhe chamara Andersen, tudo isso é Setúbal, a mais deliciosa paragem que, depois de atravessado o Tejo, havemos encontrado, a mais fresca, mais graciosa, rechnada no seu camarim de verdura, à beira do amplo e belo rio Sado, sempre noiva, oferecendo o espetáculo do mar, a meditação imensa, aos que mais profundamente gostam de meditar, e a serena alegria dos seus passeios campestres aos que mesmo pensando não prescindem dos sorrisos da natureza.

Amontoam-se as trevas da antiguidade sobre a origem e etimologia desta cidade, como se amontoam as graças dum noivado perpétuo sobre o terreno em que ela se acha edificada.

A maior parte dos escritores antigos dá como fundador de Setúbal a Tubal, neto de Noé. Entre eles frei Bernardo de Brito, o padre António Carvalho da Costa, Heitor Pinto, João Baptista de Castro, etc. E, partindo dessa origem, supõem que a etimologia de Setúbal se deriva de Sedes Tubal, residência de Tubal.

Os modernos processos de escrever a história recusam, porem, estas origens fabulosas, que só uma coisa mostram claramente, e é que o segredo da fundação e etimologia de Setúbal se perdeu inteiramente por demasiado antigo. Ficaram apenas de pé as conjeturas, mais ou menos prováveis e refletidas.

Tanta é a antiguidade em que vão afundar-se todas as investigações feitas neste sentido, que no território, compreendido nos limites do atual concelho de Setúbal, parece ter havido habitantes nas idades que hoje se denominam pré-históricas, como o deixam presumir vários instrumentos achados em diferentes legares. No sítio das Torres Altas apareceu um machado de pedra, que faz supor terem ali existido os homens rudes das idades primitivas. Tem o machado a que nos vimos referindo, e que hoje está em poder do Sr. João José Pacheco, uma superfície de 12 por 9 centímetros, com a espessura de 4 centímetros. A extremidade que devia embeber no cabo mede 6 centímetros de largura. Também no sítio da Pena, a dois quilómetros da cidade, se presume haver estacionado uma povoação bárbara. Em muitos pontos do concelho aparecem fósseis, principalmente marinhos. São muito para ver-se as petrificações de mariscos existentes nos rochedos sobre que se levanta a vila de Palmela. Na serra dos Barris, ao poente desta vila, têm-se encontrado medusas perfeitamente petrificadas.

Parece, pois, que o homem dos tempos pré-históricos povoara as vizinhanças do mar, que decerto já rudemente explorava, nos terrenos circumpostos à atual cidade de Setúbal.

Mas como não há remédio, no tocante a origens, senão vibrar golpes no ar contra a antiguidade impenetrável, prossiguemos nas conjeturas.

Presume-se que os fenícios, nas suas excursões à Lusitânia, foram atraídos às margens do Sado pela pressão e desejo de boa ganância. O Sr. Vilhena Barbosa diz que eles «encontrando na serra da Arrábida riquezas mineralógicas, objeto da sua principal pesquisa, estabeleceram uma colónia no pontal, que hoje vemos coberto d'arêas na margem esquerda do Sado, e junto à sua foz.» Por outro lado, André de Resende , falando-nos das belas cetárias fabricadas com barro signino em épocas mui remotas na antiga Cetóbriga, cetárias de que ainda hoje restam claros indícios, leva-nos a preferir a opinião de que os fenícios foram principalmente atraídos ali pelas excelentes condições piscícolas das aguas do Sado, tanto mais que o terreno do promontório barbárico não oferece à exploração senão cimento hidráulico e mármores, como, em lugar oportuno, diremos.

Fosse qual fosse o estímulo da ocupação dos fenícios, parece que a atividade peculiar a este povo, e por ventura o bom êxito da industria piscícola, concorreriam para fazer medrar e prosperar a nova colónia, cuja verdadeira situação é ainda hoje duvidosa, conquanto atualmente vejamos as suas ruínas na faixa de terreno que, na margem esquerda do Sado, se estende até à foz deste rio, na extensão de quinze quilómetros, defrontando com a moderna Setúbal.

Se fizermos obra pelo Itinerário de Antonino, colocaremos Cetóbriga na margem direita do Sado, supondo que a atual margem esquerda estava, neste ponto, ligada com a atual margem direita, e que um braço do rio se internava até grande distância pelos terrenos em que hoje assenta a cidade de Setúbal. O Itinerário descrevendo a primeira via militar que de Lisboa saía para Mérida, dá as seguintes estações:

Equabona (Coina) 12 000 passos
Catobriga 12 000 passos
Caeciliana 8000 passos
Etc.

Ora nós acreditamos, com João Baptista de Castro , e pelas mesmas razões que ele aponta, que Ciciliana era onde hoje está Agualva, duas léguas ou dez quilómetros de Setúbal, que fazem os oito mil passos que lhe dá o Itinerário, e não no sitio das Alcáçovas, povoação que está muito mais afastada.

Sendo assim, como supomos, e ficando Agualva na margem direita do Sado, não haviam as legiões romanas de seguir de Equabona (Coina) para Cetóbriga, tendo o trabalho de atravessarem o Sado, para depois o tornarem a atravessar com direcção a Ciciliana. Parece, pois, que entre Coina e Cetóbriga não havia solução de continuidade, apesar de Emilio Hubner dizer que é muito temerário colocar Cetóbriga na margem do norte do Sado, admitindo para isso uma alteração na corrente do rio. Salvo o respeito devido a Hubner, o qual em apêndice cita o Itinerário de Antonino, parece-nos que o ilustre professor está neste ponto em contradição com o próprio Itinerário como a nosso ver se mostra pelo argumento da dupla passagem do Sado, que as legiões romanas seriam obrigadas a fazer como já deixámos indicado, e até à vista de uma frase do mesmo dr. Hubner, quando, acerca da segunda estação do Itinerário, escreve: « O número das milhas é também neste caso de pequeno auxílio; porquanto a foz do Sado é, neste lugar, quasi tão larga como a do Tejo, podendo por isso a estação correspondente a Cetóbriga ter sido situada na margem do norte.»

Vamos citar um facto que nos parece altamente significativo para a hipótese de estar antigamente Catóbriga ou Cetóbriga na margem norte do Sado. Tal é o haver apparecido junto da Torre do Outão, no reinado de D. João IV, — facto que em outro lugar desenvolveremos — um templo dedicado a Neptuno, não sendo natural que os habitantes de Cetóbriga houvessem de atravessar o rio sempre que quizessem sacrificar neste templo.

A prevalecer a nossa hipótese, que aliás de nenhum modo tentamos impor, o Sado, metendo um braço para o interior de Cetóbriga, como ainda hoje mete outros, durante o seu curso, para o interior dos terrenos convertidos em salinas, iria desaguar pela Comporta, e neste caso o templo de Neptuno ficaria à orla ocidental do mar, como era próprio, segundo a crença pagã, ao deus poderoso que regia este elemento.

Ainda hoje, se bem atentarmos na configuração do terreno em que se acham as ruínas de Cetóbriga, veremos que ele termina sobre o mar por modo, que parece que estava ligado à margem dii'eita no sitio em que se alonga para as àguas o cabo do Outão, e que a solução de continuidade se operara por engrossamento do braço do Sado que, pouco mais acima, se intrometia pela terra, e pelo quebrar contínuo das vagas pelo lado de fora.

Mas agora se nos oferece outra dúvida. As ruínas que hoje reputamos de Cetóbriga selo-ão efetivamente de Cetóbriga ou de Salacia?

Mannert colloca esta cidade junto a Setúbal, por isso que Ptolomeu a menciona entre a foz do Kallipus (denominação pela qual se toma o Sado) e Kaitobrix: e Plínio a nomeia entre as cidades propriamente costeiras até Myrtilis.

O dr. Emílio Hubner desfaz até certo ponto esta dúvida com as seguintes palavras: «Salacia significa certamente salinas; mas os árabes podiam com propriedade chamar Alcácer do Sal a uma serie de lugares da costa.»

Além do que, a denominação de Alcácer do Sal é moderna, porque os árabes chamavam-lhe simplesmente Cacer, Alcácer.

Finalmente, o Sr. Alexandre Herculano , cuja profundidade de estudos neste género ainda ninguém igualou entre nós, dá-nos Alcácer do Sal no mesmo sítio em que se acha hoje, diz-nos que as ruínas que lá vemos são as dessa outrora importante cidade comercial, a despeito da opinião de Edrisi, que o sr. Herculano tantas vezes cita, de que Salacia ficava na margem esquerda do Chetawir (Sado.)

Quanto à hipótese, por nós apresentada, do braço do Sado que banhava, golpeando-o, o terreno onde está a actual cidade de Setúbal, são muitas as indicações que nos levam a aceitá-la, e vamos numerar essas indicações para maior clareza do texto:

1.ª A confraria da Misericórdia de Setúbal, parece haver estado, em tempos remotos, estabelecida na igreja de Santa Maria dos Anjos, no sitio denominado Sapal de Troino; Junto a esta igreja havia uma praia inculta, que foi dada a Álvaro Dias por el-rei D. Afonso V em 1444 ; nessa praia havia marinhas que estavam perdidas; Álvaro Dias plantou vinhas e fez hortas, e umas e outras legou por sua morte à confraria de Nossa Senhora Anunciada, da qual houve depois o senhorio delas D. Justa Rodrigues Pereira, para ali edificar o convento de Jesus.
2.ª Como em outro lugar dizemos, o vale em que se acha edificada a atual cidade de Setúbal julgamo-lo formado pelas argilas e gredas que as correntes trouxeram das alturas do ocidente, e pelas arenatas que vieram de oriente.
3.ª Tão claros são ainda neste vale os vestígios do mar, com que o braço do Sado comunicava por algum modo, que, após não profundas excavações, é frequente encontrar porção considerável de cascas de amêijoas e outros detritos marinhos; bem como se encontram nos outeiros da Saúde e do Lindo Retiro, próximos da cidade, numerosas petrificaçoes de mariscos.
4.ª O terreno hoje denominado Praça de Bocage teve até 1871 o nome de Sapal, palavra que em a nossa lingua significa paúl, terra alagadiça, o que mostra claramente que houve tempos em que as aguas o invadiram.
5.ª Este paúl alongava-se tanto, que chegava ao sítio em que se edificou o mosteiro de S. João, pois que falando da fundação deste mosteiro diz Frei Luís de Sousa:
«Não se advertiu ao tempo, que se começou o edifício, que era o lugar baixo e apaúlado: Como entrava o outono, ferviam e apodreciam com a força do sol aqueles charcos, que a cercam (à casa), e lançavam de si pestilenciais vapores. E como o ar é o alimento mais contínuo do corpo humano, causaram fortes doenças. As primeiras, em que fizeram mais impressão, foram as fundadoras; creadas em outro céu desde meninas, sentiram logo a diferença, adoeceram todas umas trás outras.»
6.ª Todas estas indicações são ainda aceitáveis se nos lembrarmos de Lisboa, que um braço do Tejo invadia até o convento de S. Domingos, como nos conta Frei Luís de Sousa na crónica da sua ordem, sendo portanto toda a moderna cidade baixa edificada em sapal.

Depois destas indicações, não deixaremos de mencionar uma vaga tradição oral, aliás sem o minimo carater de segurança histórica, a qual refere que ao sopé dos fraguedos sobre que se ergue o castelo de Palmela havia outrora grandes argolas de bronze para ancoradouro de embarcações.

As notas desta edição no Wikisource estão assinaladas como (NEd).

  1. Cartas do Exmo. Senhor António Feliciano de Castilho e da Câmara Municipal de Setúbal a respeito do monumento a Bocage. Setúbal, 1867.