CAPÍTULO III Morte do Infante D. Henrique, desaparecimento de Jácome de Bruges e divisão da ilha Terceira em duas capitanias Tendo-se condensado a população na metade oriental da ilha Terceira, e tornando-se necessário, para beneficio de todos, o alargamento do terreno e dos povoados que, dia a dia, se levantavam, tentou Jácome e Bruges o arroteamento e cultura da parte ocidental, que apresentava ainda o seu aspeto primitivo. Baldados foram os esforços empregados, porque havia carência de braços robustos que pudessem arcar com um trabalho tão árduo, ao mesmo tempo que Jácome de Bruges perdia uma parte do seu prestígio, pelas intrigas que lhe moviam os seus companheiros, e com especialidade Diogo de Teive, o primeiro a maquinar a sua morte, para mais livremente se assenhorarem do terreno, que tanto lhe convinha para o seu engrandecimento. Foram graves os desgostos que Jácome de Bruges sofreu; e vendo os grandes males que daqui provinham para a ilha Terceira, que ele tanto amava e tão grande trabalho lhe tinha dado, resolveu pedir auxílio ao Infante D. Henrique, expondo-lhe o calamitoso estado em que se encontravam os negócios da Terceira. Infelizmente, para ele, este pedido tão justo foi encontrar já quase moribundo o imortal Infante D. Henrique; e a 13 de novembro de 1460, em Sagres, escondia-se para sempre esse astro radiante que tanta luz espalhou por sobre a terra e que tanto engrandeceu Portugal! Nos últimos meses da sua vida, vendo o Infante que, dia a dia, lhe faltava a saúde, e não se esquecendo da sua ilha de Jesus Cristo, fez dela doação a D. Fernando, seu sobrinho e afilhado, a quem adotara por filho,


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em Alvará feito e assinado por ele em Estremoz aos 7 de março de 1436. A carta de doação, que em seguida transcrevemos, foi confirmada por El-Rei D. Afonso V aos 2 de setembro de 1460: «Don Afonso, etc. A quantos esta carta virem fazemos saber que o infante Don Fernando meu muito prezado e amado irmão, nos enviou mostrar uma carta do infante Don Henrique meu muito prezado e amado tio, da qual o teor tal é: — Eu o Infante Don Henrique regedor e governador da ordem da Cavallaria de nosso senhor Jesus Christo, duque de Vizeu, e Senhor da Covilhan. — Faço saber a quantos esta minha carta virem que o Senhor Infante Don Fernando meu muito prezado e amado filho me disse que seu desejo era com esperança do serviço que a Deos com sua graça e a el-rei meu senhor intendia poder fazer, e a si mesmo proveito, de mandar povoar algumas ilhas; e que a mim prouvesse das minhas que tenho, que ora estão por povoar lhe dar algumas delas. E esguardando eu quanto com grande razão sou theudo a tudo o que em mim seja e bem possa fazer-lhe cumprir seu bom prazer e honesto requerimento, por bem, honra, e acrescentamento seu, e de seus filhos, meus muito amados netos: de meu moto proprio, livre vontade, certa sciencia, poder absoluto, lhe faço livre, pura, irrevogavel doação entre vivos, valedoira deste dia para todo sempre, e aos ditos filhos, netos, e a todolos outros seus descendentes que naturalmente por linha ladina direita masculina por graça de Deus dele descenderem, de duas das ditas minhas ilhas; convem a saber da ilha de Jesus Cristo, e da ilha Graciosa, com todas suas rendas e pertenças e com todolos outros direitos e jurisdição dellas, civil e crime, méro, mixto, imperio, assim e tão compridamente com as eu tenho e possuo, resalvando para mim como administrador e governador que assim sou da dita Ordem, e mestres ou governadores que depois de mim della forem, a espiritualidade d’ambas as ditas ilhas por a qual a dita Ordem por sempre haverá de todo o que Deus em as ditas ilhas der de vinte, um, que é a razão de meio dizimo; e eu e a dita Ordem e mestres e governadores que della forem somente termos cargo por em cada uma das ditas ilhas vigario, que cada um tenha por mim e a dita Ordem cargo de as reger e administrar no espiritual; os quaes vigarios por o dito meu filho e seus descendentes serão presentados a as ditas vigararias e confirmados em ellas por mim e aquelles que depois de mim forem governadores ou mestres da dita Ordem com habito dela que receberão; aos quaes vigarios por mim e a dita Ordem será ordenado, por aquello que a espiritualidade de vinte, um, assim for dado, cousa em que se mantenha. E outro meio dizimo que fica assim a respeito de vinte, um, me apraz que haja o dito meu filho, e seus descendentes, para si e supportamento d’alguns clerigos que lhe prouver e estar nas ditas ilhas alem dois ditos dois vigarios. E porem me praz e por a presente lhe dou logar que por si ou quem lhe prouver possa tomar e haver para si a posse corporal possição das ditas duas ilhas de Jesus Christo, e da Graciosa, havendo-as, e possuindo, fazendo dellas e em ellas como lhe mais prouver e por seu serviço e proveito intender, como de sua cousa propria sem outro nenhum embargo que lhe sobre ello seja posto, porquanto eu lhe faço assim dellas doação o mais firmemente que ser possa, resalvando assim para mim e à dita Ordem a espiritualidade dellas, e demito de mim a posse e senhorio que até ora das ditas duas ilhas tive, e de direito devia ter e haver, e a ponho em o dito meu filho, e seus descendentes e herdeiros. E quero e me apraz que por bem desta doação que assim lhe faço haja todo o mais firmemente que ser possa; e peço por mercê a el-rei meu senhor que assim lhas queira confirmar com quaes quer liberdades, e franquezas que por bem tiver. — E por certidão d’esto mandei dar esta minha carta ao dito meu filho assinada por mim, e assellada do sello das minhas armas. — Feita em a minha Vila de Vilar do Infante 22 dias d’agosto. — João de Moraes a fez, ano do nascimento de nosso senhor Jesus Cristo de 1460 anos» — «Pedindo-nos por mercê que lhe confirmassemos a dita carta e houvessemos por bem que elle houvesse as ditas ilhas com todalas graças, privilegios, franquezas, liberdades, que as o dito Infante Don Henrique possuia, e nós lhas tinhamos outorgadas; do que a nós muito praz. E queremos que o dito infante meu irmão haja as ditas ilhas, assim e tão compridamente como as havia o dito infante Don Henrique, e por nós lhe eram outorgados. — E, por firmeza e segurança deste, lhe mandamos dar esta, assinada por nossa mão, e asselada com o nosso sello. — Dada em a nossa cidade de Lisboa 2 dias de septembro. — Jorge Machado a fez, ano do nascimento de nosso senhor Jesus Cristo de 1460 anos». O Infante D. Henrique adotou por filho, seu sobrinho e afilhado, o infante D. Fernando, em Alvará feito e assinado por ele, era Estremoz, aos 7 de março de 1436. Tendo sucedido no mestrado da Ordem de Cristo o Infante D. Fernando, que era conhecedor do apreço em que seu pai adotivo tinha a ilha Terceira, resolveu, em presença do pedido de Jácome de Bruges, escolher um dos fidalgos de sua casa que, pela sua fortuna e génio empreendedor, pudesse auxiliar o donatário da Terceira no rápido desenvolvimento da agricultura e colonização da ilha. Recaiu essa escolha em Álvaro Martins Homem, que para aqui partiu em 1461, recebendo de Jácome de Bruges, e por ordem do Infante, algumas dadas de terreno. Divergem as opiniões dos escritores açorianos sobre o aparecimento deste fidalgo na ilha Terceira, querendo alguns, com o Padre Maldonado, na sua Fenix Angrence, que fosse posterior ao desaparecimento de Jácome de


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Bruges, e outros, como o Padre Cordeiro, na sua História Insulana, fazem-o companheiro de João Vaz Corte-Real, na volta da Terra dos Bacalhaus, e que, dirigindo-se ambos a Portugal, solicitaram a capitania da Praia, que se encontrava vaga pelo desaparecimento de Bruges. Comparando as cartas de doação passadas pela Infanta D. Beatriz nota-se, como bem diz Ernesto do Canto, no seu Arquivo dos Açores, o erro destes escritores. Assim, na de Álvaro Martins Homem, lê-se: «Eu a infanta D. Beatriz [...] Considerando encomo entre Jácome de Bruges e Álvaro Martins Homem, capitão da sua ilha Terceira de Jesus Christo, sempre houve alguns debates por a terra da dita ilha não se ter de todo partida [...]», enquanto que na de João Vaz Corte-Real, diz: «Eu a Infanta D. Beatriz [...] determinei prover a ello por descargo da minha consciencia […]. E considerando eu doutra parte os serviços que João Vaz Corte Real, fidalgo da casa do dito senhor meu filho, tem feito ao Infante meu senhor seu padre que Deos haja, depois a mim e a ele, confiando na sua bondade e lealdade [...] em galardão dos ditos serviços [...] E porquanto a dita ilha não era partida entre o dito Jácome de Bruges e Álvaro Martins Homem [...]». Da primeira carta deduz-se claramente que Álvaro Martins Homem viera para a ilha Terceira, como acima dissemos, no tempo de Jácome de Bruges; e da segunda, que João Vaz Corte-Real viera depois. Depois de reconhecido o terreno que lhe era destinado, tratou Álvaro Martins Homem de lançar os alicerces da sua casa, e voltou a Portugal, de onde regressou, pouco depois, com sua mulher D. Inês Martins Cardoso, e o pessoal necessário para os seus trabalhos, trazendo também por companheiro o seu íntimo amigo Afonso Gonçalves Antona Baldaia. Concluída a sua casa, na margem da ribeira de Angra, e que é hoje conhecida pela casa do Marquês, na rua do mesmo nome, a qual foi depois comprada por João Vaz Corte-Real, tratou Álvaro Martins Homem de canalizar a ribeira que, vindo de São João de Deus, corria pelas Ruas da Miragaia e do Marquês até à Praça, onde formava um grande lago, e dali seguia para o mar pela atual Rua Direita. Com esta canalização obteve Álvaro Martins um excelente motor para vários moinhos, que mandou construir, e com o seu pessoal numeroso foi mais além, lançando os alicerces da nova Angra e atual cidade. O engrandecimento rápido do terreno que lhe fora cedido, e ao mesmo tempo o seu carácter altivo, tornou Álvaro Martins Homem, um insubordinado para com Jácome de Bruges, apoderando-se das terras que mais lho agradavam, e originando com isto graves contendas e dissabores para o capitão do donatário que, no fim de pouco tempo, se achou rodeado de falsos amigos. Diogo de Teive, pela sua parte, concorria poderosamente para aumentar a ruína do seu benfeitor, maquinando na sombra a sua morte; e Jácome de Bruges, vendo que lhe faltava o auxílio de D. Afonso V, que então


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governava Portugal, e de D. Fernando, que mandara retirar a flotilha dos mares açorianos, teve de contemporizar, em parte, com os ambiciosos, fazendo-lhes ver pela persuasão, o mal que de dali advinha para o engrandecimento da sua pátria adotiva. No entretanto, fundeava na baía da Praia uma caravela vinda de Portugal, e logo Diogo de Teive se apresenta a Jácome de Bruges, entregando-lhe uma carta que recebera juntamente com as suas, e na qual se ordenava que o capitão do donatário partisse imediatamente para Lisboa, para de lá seguir para Flandres, onde entraria de posse de um rico morgado, que um seu tio lhe legara. Querem todos os cronistas que esta carta fosse mera invenção de Diogo de Teive, com o fim de se libertar daquele que lhe fazia sombra; e com verdade ou não, o facto é que nunca mais apareceu Jácome de Bruges. Seria assassinado antes do embarque ou em viagem? Nada consta de positivo sobre este ponto e o procedimento ulterior de Diogo de Teive mostra-nos claramente que fora ele o traidor, fazendo desaparecer o seu capitão. Ignora-se a data precisa da sua morte: Maldonado diz que o desaparecimento de Bruges teve lugar em 1466, e outros em 1463. Por uma sentença por D. Diogo, Duque de Viseu, em 17 de março de 1483, a favor de Antão Martins Homem, e contra Pero Gonçalves, que pretendia a capitania da Praia, fazendo-se passar por filho legítimo do primeiro donatário, vê-se que a morte de Jácome de Bruges teve logo em 1475, e que Angra fora povoada em 1471. Finalmente, a Carta de divisão da ilha Terceira em duas capitanias, e assinada por D. Beatriz, parece indicar, que o desaparecimento de Bruges teve lugar antes de 1474. Como se poderá conciliar esta divergência? Sem termos a autoridade competente para a resolução deste problema, parece-nos que a morte de Jácome de Bruges devia ter lugar antes de 1474, pois que, sendo verdadeira a carta de doação da capitania da Praia a Álvaro Martins Homem, assinada pela Infanta D. Beatriz em 17 de fevereiro daquele ano, como poderia ser feita esta concessão antes da morte de Jácome de Bruges?! Ao partir para Lisboa, deixou Bruges uma procuração particular a Duarte Paim, seu futuro genro, e a direção geral da ilha Terceira ao seu imediato Diogo de Teive, que, vendo-se senhor absoluto e confiado na dificuldade de recursos que tinham os seus subordinados, se tornou um déspota, retirando as terras a uns, para as dar a outros, seus amigos, e não recuando perante Álvaro Martins Homem, que, pela sua parte, o igualava em procedimento. Com esta anarquia se não conformou Duarte Paim, procurador de Jácome de Bruges, e resolvendo partir para Lisboa a pedir providências a quem tinha direito e competia dá-las, sub-estabeleceu a procuração no honrado juiz ordinário Gonçalo Eanes da Fonseca.


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D. Sancha Rodrigues de Toar, companheira dedicada de Jácome de Bruges, vendo que não chegavam notícias de seu marido, e receando, com justos motivos, que alguma desgraça lhe sucedera, resolveu também partir para Lisboa com sua filha D. Antónia Dias de Arce, indo saber àquela cidade que seu marido ali não chegara na caravela que meses antes partira da Praia. Tratava-se pois de um assassinato; e a pobre viúva, vendo que nada mais tinha a esperar casou a sua filha mais velha, D. Antónia, com Duarte Paim, a quem entregou a carta de doação feita a seu marido, e recolheu-se ao convento onde estava sua filha mais nova. Na carta de doação, que acima transcrevemos, era D. Antónia Dias de Arce, filha primogénita de Jácome de Bruges, quem devia suceder a seu par na donataria; e julgando Duarte Paim, que todos se submeteriam à vontade do Infante, que já não existia, ou porque realmente fosse mal aconselhado em Lisboa, não se encartou logo, como era do seu dever, na donataria, e só no fim de um ano é que resolveu partir para a Terceira, vindo encontrá-la num perfeito caos, tendo de sustentar novos pleitos com Diogo de Teive, sem resultado algum satisfatório. A ilha Terceira, que tanto custara a ser povoada, atravessou pela primeira vez uma crise terrível na sua administração, pelas grandes contendas entre os fidalgos, que, à força armada, disputavam o seu quinhão, ao mesmo tempo que sentia o desprezo da sua mãe pátria, onde D. Afonso V e D. Fernando, mais se importavam com as conquistas de África, do que com os seus súbditos fiéis. Álvaro Martins Homem que, dia a dia, se tornava mais altivo e ambicioso, e receando que Diogo de Teive viesse invadir os seus terrenos, resolveu mandar a Lisboa um emissário da sua confiança, que expusesse a D. Fernando o estado tumultuoso em que se encontrava a ilha Terceira, e pedindo-lhe, ao mesmo tempo, providências imediatas. Quando chegava a Lisboa o pedido de Álvaro Martins, já D. Fernando tinha falecido, e o governo dos Açores passara para D. Beatriz, como tutora de seu filho D. Diogo, Duque de Viseu, pelo que teve Álvaro Martins Homem de continuar a defender-se de Diogo de Teive, à força armada, único recurso de que podia dispor. Continuava de pé a questão interposta por Duarte Paim; e como Diogo de Teive não cedesse, antes pelo contrário, arrogava a si a donataria da Praia, resolveu partir para Lisboa novamente, onde, mais de perto, poderia advogar a causa de sua mulher, perante a viúva infanta D. Beatriz. Esta, já conhecedora da crise em que se encontrava a ilha Terceira, tratou imediatamente de enviar João Vaz Corte-Real, fidalgo da sua casa, a inspecionar o estado em que se encontrava a administração desta ilha, ao mesmo tempo que intimava a viúva de Jácome de Bruges a dar conta de seu marido caso contrário proveria a capitania em pessoa que lhe parecesse.


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Terminado que foi o prazo marcado por D. Beatriz, a desolada viúva apenas conseguiu alegar que nunca mais vira seu marido nem dele tivera notícias, em vista do que, a Infanta resolveu dividir a ilha Terceira em duas capitanias: uma, para Álvaro Martins Homem, e outra, para João Vaz Corte-Real, que chegara da Terceira, onde tinha acabado a missão de que fora encarregado. A 17 de fevereiro de 1474 nomeava D. Beatriz a Álvaro Martins Homem, para a capitania da Praia; e a dois de abril do mesmo ano a João Vaz Corte-Real para a de Angra, com a obrigação deste pagar ao seu antecessor as benfeitorias já feitas na parte que ia ocupar. Álvaro Martins, não contente com as determinações de D. Beatriz, passou à Praia com o seu amigo Afonso Gonçalves Antona Baldaia, a quem deu o terreno colocado entre a Cruz do Marco e a Ribeira de Santo Antão, pelo Belo Jardim até ao Alto da Serra, bem como a seu filho primogénito, Pedro Afonso Baldaia da Areia, a parte compreendida, desde a ermida de São Brás, entre o corte das ribeiras dos Pães e da Areia, de que tomou por apelido a denominação desta última.


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