CAPÍTULO IX A ilha Terceira nos primeiros anos do reinado de D. João VI até 1821 No dia 14 de maio de 1817 tomou posse do governo geral dos Açores, o novo capitão-general Francisco António de Araújo, sendo-lhe dada a posse pelo Bispo da diocese D. Fr. Alexandre da Sacra Família. Homem distinto e valente no campo da batalha, onde ganhou o posto de brigadeiro, adquiriu ao princípio a estima geral do povo terceirense, pelo seu génio afável para com todos, sem distinção de classes. Foi ele que inaugurou a Junta de Melhoramento da Agricultura, abrindo a sua primeira sessão no dia 8 de junho de 1817, tendo como primeiro inspetor Tomás José da Silva. Reconhecendo o estado decadente da agricultura terceirense, e que para isso concorria a falta de estradas e os limitados conhecimentos dos lavradores, resolveu, para dar impulso aos melhoramentos que eram necessários, e de acordo com a Junta, publicar o seguinte edital: «O desembargador Alexandre de Gamboa Loureiro juiz de fora com predicamento do primeiro banco, presidente do senado da Câmara nesta cidade de Angra, etc. — Faço saber que da real Junta do Melhoramento da Agricultura e fábricas me foi despedida a provisão do teor e forma seguinte: — «Dom João por graça de Deus Rei do reino de Portugal, Brasil e Algarves d'aquém d'além mar, em África, Senhor de Guiné, e da conquista, navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia, e da Índia, etc. — Mando a vós desembargador, juiz de fora desta cidade de Angra, façais publicar por editais nesta cidade e vilas da nossa jurisdição que quem pretender partilha nos baldios, ou aforamento nos bens dos particulares; na forma da lei da criação da Junta do Melhoramento da Agricultura destas ilhas dos Açores,


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dirija à mesma Junta os seus requerimentos. E de assim o haverdes cumprido me dareis conta pela sobredita Junta. — El-Rei nosso senhor o mandou. — Francisco António de Araújo do seu Conselho, governador e capitão-general desta capitania das ilhas dos Açores e presidente da Junta do Melhoramento da Agricultura da mesma capitania. — Francisco José Teixeira a fez em Angra aos 12 ele julho de 1817. — Teotónio Francisco Correia, a fez escrever. — Francisco António de Araújo, presidente. — Cumpra-se e registe-se. — Angra, 26 de julho de 1817. — Loureiro. — «E para que chegue à notícia de todos mandei passar o presente que vai por mim assinado e selado com o selo do Conselho. — Angra, 26 de julho de 1817. — Vicente Pereira de Matos escrivão da Câmara o escrevi.. — Alexandre de Gamboa Loureiro.» Foi uma nova tentativa contra os baldios sem resultado algum satisfatório. Mandou reparar as estradas que se encontravam na maior parte deterioradas pela pregadura dos carros, que foi logo condenada por meio de posturas, sendo necessário algumas vezes o emprego da força armada pela renitência do povo. De acordo com os vogais da Junta de Fazenda, licenciou os soldados milicianos que faziam a guarnição da cidade, substituindo-os por oitenta recrutas, agregados ao batalhão de artilharia. Constando-lhe também que a maior parte dos capitães-mores e sargentos-mores não cumpriam regularmente com os seus deveres, ordenou uma rigorosa inspeção, admoestando e demitindo aqueles que se tinham relaxado no cumprimento dos seus deveres. E como fosse rigoroso no exercício da sua missão, começou a lavrar entre a tropa terceirense um grande descontentamento, pelos trabalhos duma nova tática inglesa que Araújo obrigava a seguir, em conformidade com as ordens que trouxera. Esta malquerença alastrou-se rapidamente pelas outras ilhas dos Açores, onde o general mandara fazer o recrutamento necessário para uma boa defesa, e onde exigira de todas as autoridades o cumprimento exato dos seus deveres, chamando-os à responsabilidade pelas faltas cometidas. É esta a recompensa de todo o funcionário brioso que intenta abolir os abusos e os desleixos dos seus subordinados! Não se descuidou o general Araújo doutros melhoramentos importantes, fazendo construir novas estradas e completando a estrada militar para a Vila da Praia e que hoje constitui a Estrada Rreal n.° 2. Fez construir também casas de campo, palheiros, e plantio de arvorado nas margens das estradas para recreio dos viajantes. Nestes trabalhos empregou sempre os habitantes das freguesias vizinhas, obrigando-os a faxinas rigorosas, sem distinção de classes. Daqui resultou a animadversão do povo terceirense contra o general, alimentada pela nobreza de Angra, sempre desleal com as autoridades locais


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e amando hoje o povo que amanhã detesta, depois de realizado o seu ideal político. A luta não podia deixar de ser grande. De um lado, um sé homem, enérgico, ativo e zeloso dos seus deveres; do outro, um povo analfabeto e ignaro, verdadeiro manequim de ambiciosos políticos. Tímidos e cobardes perante o inimigo, fortes e traiçoeiros na obscuridade, tais foram os influentes políticos da ilha Terceira para com o general Araújo. Tendo sido ocupada a praça de Montevideu pelas tropas portuguesas, bem como o território setentrional do Rio da Prata, em 1817, suscitaram-se graves questões com a Corte de Madrid, chegando a reunir-se uma poderosa esquadra no porto de Cádis e que o Conde de Palmela desconfiou, ser para ocupação dalguma das ilhas açorianas ou Madeira. Foi participado pelo governo de Portugal ao general Araújo a situação política com a Espanha, recomendando-lhe também todas as medidas necessárias para qualquer ataque. Reuniu-se um conselho militar no palácio do general, no dia 30 de maio de 1818, composto do brigadeiro Vital de Bettencourt Vasconcelos e Lemos, do governador do castelo Caetano Paulo Xavier, Cândido de Menezes Lemos e Carvalho, coronel de milícias da Praia José Rodrigues de Almeida, tenente-engenheiro António Isidoro de Morais Âncora, ajudante de ordens Jorge da Cunha Brum Terra e Silveira, tenente-coronel Pedro Aniceto Durão Padilha, capitão de artilharia José Carlos de Figueiredo e outros militares distintos, presidindo o general Araújo. Resolveu-se aumentar o número de soldados, procedendo-se logo a um novo recrutamento, para um batalhão de infantaria na ilha Terceira e outro em São Miguel. Fizeram-se novos reparos nas fortificações da costa e ao espalhar-se a notícia de um ataque às ilhas dos Açores, foram todos inexcedíveis nos preparativos de defesa. No dia 8 de junho apareceu ao norte da ilha Terceira uma esquadra, composta de noventa e sete navios de guerra e transporte, tocando-se logo a rebate na cidade e vilas. Só no dia seguinte é que começaram a aparecer em frente à baía da Praia, espalhando-se logo o terror pelos habitantes da Vila, a maior parte dos quais fugiram para as freguesias vizinhas. Tornou-se inexcedível a atividade de Araújo, estabelecendo o seu quartel militar na Vila de São Sebastião, onde estavam os batalhões de linha, por ser ali o melhor ponto para observar as manobras dos navios, cuja nacionalidade se ignorava. Fez marchar para a Praia o seu ajudante de ordens João Pereira de Matos Rita, com um grande destacamento, entregando as baterias e o comando da artilharia ao tenente António Homem da Costa Noronha. Distribuiu também as tropas a cavalo, as ordenanças e as milícias pelos diferentes pontos da costa do sul e esperou com serenidade a aproximação da esquadra para começar o combate Na tarde do mesmo dia reuniram-se todos os navios e dispuseram-se em


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linha de combate até à noite. Na madrugada seguinte já poucos navios apareciam, e de tarde seguiu o resto outro rumo, sem dispararem um tiro e deixando a ilha Terceira em paz. Foi nesta ocasião que o general Araújo reconheceu a pouca artilharia da costa e a deficiência de muralhas e redutos, mandando logo construir e modificar os que julgou indispensáveis. Em poucos meus estavam realizadas as reformas militares e fortificação, planeadas pelo general Araújo e que o povo terceirense pôde apreciar no ano seguinte, no dia 5 de janeiro. Eis a descrição do grande exercício realizado no Pico do Celeiro, que nos deixou o falecido escritor terceirense José Joaquim Pinheiro nas suas Épocas Memoráveis da ilha Terceira: «Saindo de Angra toda a força disponível, com seu parque de artilharia, na madrugada do referido dia 5 de janeiro, foi acampar próximo dos Cinco Picos, onde almoçou. Dali prosseguindo na marcha, subiu a força, ao meio dia, a Ladeira do Cume, do cimo da qual avistou o general as milícias praienses no sítio onde as havia mandado postar, e deu ordem às da cidade para marcharem a incorporar-se com aquelas, e naquele ponto juntarem os dois corpos de tropa, enquanto também era distribuído o rancho à tropa de linha estacionada no Cume da Praia. Em seguida passou o general a postar as forças milicianas no Pico do Seleiro, para sustentarem as defesas daquele ponto, que devia ser atacado pela força de linha de infantaria e artilharia, entregando o comando geral das milícias ao coronel Cândido de Menezes, por ser o mais antigo. Em pouco tempo ouvem-se os sinais das cornetas das forças beligerantes; e rompeu o fogo de ambas as partes com tanto ardor, que o general não pôde deixar de admirar o carácter guerreiro dos contendores, chegando a recear derramamento de sangue na ocasião em que os corpos de milícia não podendo levar a bem serem vencidos pela força de linha que os atacava, lhe deram uma formidável carga de baioneta, não respeitando os repetidos toques de cessar fogo, por considerar, no seu entusiasmo, como verdadeira ação bélica o que não passava de um simulacro de guerra. Felizmente com a retirada feita com as tropas de linha, segundo as ordens do general, para calmar os ânimos escandecidos dos milicianos, consideraram-se estes vencedores, recebendo os elogios do chefe supremo pela sua bravura e ficando os de linha considerados como vencidos. Mal pensava o general que, 9 anos depois, a 4 de outubro de 1828, naquele mesmo local, se daria uma sanguinolenta ação, na qual se inverteriam os termos daquele dia, tornando-se vencidos os defensores e vencedores os atacantes, e passando aquele sítio a ser o primeiro onde, na ilha Terceira, se derramou sangue português pela atual dinastia reinante, e pelo código de imunidade, que nos rege!


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Marchando o capitão-general Araújo para a Vila da Praia, fez logo postar as forças, guarnecendo com elas as fortalezas daquela Vila, de maneira que, ao alvorecer do dia 6 de janeiro de 1819, troava a artilharia com uma salva dada no forte principal, e correspondida por outras nas maiores fortalezas, terminando no de Santa Catarina do Cabo da Praia; salvas que se repetiram ao meio dia e ao pôr do sol. Em vista da muita gente que ali afluiu no dia festival do Menino Deus, tinha o general mandado estabelecer feira e mercado franco. Passados os três dias do arraial, marchou a força bélica pela estrada meridional, ou de baixo, estacionando na Vila de São Sebastião, onde se demorou até ao dia seguinte ao da sua chegada àquela Vila, indo ocupar as suas fortalezas, nas quais foram dadas salvas de artilharia e mosquetaria. Pela tarde do dia 10 de janeiro entraram em Angra as tropas tanto de 1.ª como de 2.ª linha, parecendo recolher de uma campanha gloriosa e trazendo na sua frente o general governador.» Com a boa defesa estabelecida em tão pouco tempo na ilha Terceira, não moderou o rancor do povo contra o general Araújo. Além de o caluniarem, fizeram, perante o governo de Portugal, a denúncia do seu despotismo e opressão com que tratava os povos dos Açores, até que, no dia 18 de outubro de 1820, fundeava no porto de Angra um navio de guerra conduzindo o novo capitão-general Francisco de Borja Garção Stockler. Ignorava o general Araújo tão vil procedimento de um povo a quem prestara relevantes serviços, já com os melhoramentos públicos, já com o desenvolvimento da agricultura e da instrução; e ao saber no Escampadouro, onde estava em obras, da vinda do novo general, partiu logo para Angra, dando-se por demitido do seu cargo no dia 19. Assim terminou o governo de um homem enérgico, cujo erro principal foi querer, de um só ímpeto, derribar velhos costumes e implantar melhoramentos num povo quase analfabeto e arraigado às velhas usanças dos seus antepassados!


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