CAPITULO CIII

 
Distracção
 

— Não, senhor doutor, isto não se faz. Perdoe-me, isto não se faz.

Tinha razão D. Placida. Nenhum cavalheiro chega uma hora mais tarde ao logar em que o espera a sua dama. Entrei esbaforido; Virgilia tinha ido embora. D. Placida contou-me que ella esperára muito, que se irritara, que chorara, que jurára votar-me ao desprezo, e outras mais cousas que a nossa caseira dizia com lagrimas na voz, pedindo-me que não desamparasse Yayá, que era ser muito injusto com uma moça que me sacrificara tudo. Expliquei-lhe então que um equivoco... E não era; cuido que foi simples distracção. Um dito, uma conversa, uma anecdota, qualquer cousa; simples distracção.

Coitada de D. Placida! Estava afflicta deveras. Andava de um lado para outro, abanando a cabeça, suspirando com estrepito, espiando pela rotula. Coitada de D. Placida! Com que arte conchegava as roupas, bafejava as faces, acalentava as manhas do nosso amor! que imaginação fertil em tornar as horas mais apraziveis e breves! Flores, doces, — os bons doces de outros dias, — e muito riso, muito affago, um riso e um affago que cresciam com o tempo, como se ella quizesse fixar a nossa aventura, ou restituir-lhe a primeira flor. Nada esquecia a nossa confidente e caseira; nada, nem a mentira, porque a um e outro referia suspiros e saudades que não presenciára; nada, nem a calumnia, porque uma vez chegou a attribuir-me uma paixão nova. — Você sabe que não posso gostar de outra mulher, foi a minha resposta, quando Virgilia me falou em semelhante cousa. E esta só palavra, sem nenhum protesto ou admoestação, dissipou o aleive-de D. Placida, que ficou triste.

— Está bem, disse-lhe eu, depois de um quarto de hora; Virgilia hade reconhecer que não tive culpa nenhuma... Quer você levar-lhe uma carta agora mesmo?

— Ella hade estar bem triste, coitadinha! Olhe, eu não desejo a morte de ninguem; mas, se o senhor doutor algum dia chegar a casar com Yayá, então sim, é que hade ver o anjo que ella é!

Lembra-me que desviei o rosto e baixei os olhos ao chão. Recommendo este gesto ás pessoas que não tiverem uma palavra prompta para responder, ou ainda ás que receiarem encarar a pupilla do outros olhos. Em taes casos, alguns preferem recitar uma oitava dos Lusiadas, outros adoptam o recurso de assobiar a Norma; eu atenho-me ao gesto indicado; é mais simples, exige menos esforço.

Tres dias depois, estava tudo explicado. Supponho que Virgilia ficou um pouco admirada, quando lhe pedi desculpa das lagrimas que derramára naquella triste occasião; e não me lembra se interiormente as attribui a D. Placida. Com effeito, podia acontecer que D. Placida chorasse, ao vel-a desapontada, e, por um phenomeno da visão, as lagrimas que tinha nos proprios olhos lhe parecessem cair dos olhos de Virgilia. Fosse como fosse, tudo estava explicado, mas não perdoado, e menos ainda esquecido. Virgilia dizia-me uma porção de cousas duras, ameaçava-me com a separação, emfim louvava o marido. Esse sim, era um homem digno, muito superior a mim, delicado, um primor de cortezia e affeição; é o que ella dizia, emquanto eu, sentado, com os braços fincados nos joelhos, olhava para o chão, onde uma mosca arrastava uma formiga que lhe mordia o pé. Pobre mosca! pobre formiga!

— Mas você não diz nada, nada? perguntou Virgilia, parando deante de mim.

— Que heide dizer? Já expliquei tudo; você teima em zangar-se; que heide dizer? Sabe o que me parece? Parece-me que você está enfastiada, que se aborrece, que quer acabar...

— Justamente!

Foi dali pôr o chapéu, com a mão tremula, raivosa... — Adeus, D. Placida, bradou ella para dentro. Depois foi até á porta, correu o fecho, ia sair; agarrei-a pela cintura. — Está bom, está bom, disse-lhe. Virgilia ainda forcejou por sair. Eu retive-a, pedi-lhe que ficasse, que esquecesse; ella afastou-se da porta e foi cair no canapé. Sentei-me ao pé della, disse-lhe muitas cousas meigas, outras humildes, outras graciosas. Não affirmo se os nossos labios chegaram á distancia de um fio de cambraia ou ainda menos; é matéria controversa. Lembra-me, sim, que na agitação caiu um brinco de Virgilia, que eu inclinei-me a apanhal-o, e que a mosca de ha pouco trepou ao brinco, levando sempre a formiga no pé. Então eu, com a delicadeza nativa de um homem do nosso seculo, puz na palma da mão aquelle casal de mortificados; calculei toda a distancia que ia da minha mão ao planeta Saturno, e perguntei a mim mesmo que interesse podia haver n’um episodio tão mofino. Se conclues dahi que eu era um barbaro, enganas-te, porque eu pedi um grampo a Virgilia, afim de separar os dous insectos; mas a mosca farejou a minha intenção, abriu as azas e foi-se embora. Pobre mosca! pobre formiga! E Deus viu que isto era bom, como se diz na Escriptura.