CAPITULO CIX

 
O philosopho
 

Sabido que reli a carta, antes e depois do almoço, sabido fica que almocei, e só resta dizer que essa refeição foi das mais parcas da minha vida: um ovo, uma fatia de pão, uma chicara de chá. Não me esqueceu esta circumstancia minima; no meio de tanta cousa importante obliterada escapou esse almoço. A razão principal poderia ser justamente o meu desastre; mas não foi; a principal razão foi a reflexão que me fez o Quincas Borba, cuja visita recebi naquelle dia. Disse-me elle que a frugalidade não era necessaria para entender o Humanitismo, é menos ainda pratical-o; que esta philosophia acommodava-se facilmente com os prazeres da vida, inclusive a mesa, o espectaculo e os amores; e que, ao contrario, a frugalidade podia indicar certa tendencia para o ascetismo, o qual era a expressão acabada da tolice humana.

— Veja S. João, continuou elle; mantinha-se de gafanhotos, no deserto, em vez de engordar tranquillamente na cidade, e fazer emmagrecer o pharisaismo na synagoga.

Deus me livre de contar a historia do Quincas Borba, que aliás ouvi toda naquella triste occasião, uma historia longa, complicada, mas interessante. E se não conto a historia, dispenso-me outrosim de descrever-lhe a figura, aliás mui diversa da que me appareceu no Passeio Publico. Calo-me; digo somente que se o principal caracteristico do homem não são as feições, mas o vestuario, elle não era o Quincas Borba; era um desembargador sem beca, um general sem farda, um negociante sem deficit. Notei-lhe a perfeição da sobrecasaca, a alvura da camisa, o aceio das botas. A mesma voz, roufenha outr’ora, parecia restituida á primitiva sonoridade. Quanto á gesticulação, sem que houvesse perdido a viveza de outro tempo, não tinha já a desordem, sujeitava-se a um certo methodo. Mas eu não quero descrevel-o. Se falasse, por exemplo, no botão de ouro que trazia ao peito, e na qualidade do couro das botas, iniciaria uma descripção, que omitto por brevidade. Contentem-se de saber que as botas eram de verniz. Saibam mais que elle herdára alguns pares de contos de réis de um velho tio de Barbacena.

Meu espirito, (permittam-me aqui uma comparação de criança!) meu espirito era n’aquella occasião uma especie de peteca. A narração do Quincas Borba dava-lhe uma palmada, elle subia; quando ia a cair, o bilhete de Virgilia dava-lhe outra palmada, e elle era de novo arremessado aos ares; descia, e o episodio do Passeio Publico recebia-o com outra palmada, egualmente rija e efficaz. Cuido que não nasci para situações complexas. Esse puxar e empuxar de cousas oppostas, desequilibrava-me; tinha vontade de embrulhar o Quincas Borba, o Lobo Neves e o bilhete de Virgilia na mesma philosophia, e mandal-os de presente a Aristoteles. E, comtudo, era instructiva a narração do nosso philosopho; admirava-lhe sobretudo o talento de observação com que descrevia a gestação e o crescimento do vicio, as luctas interiores, as capitulações vagarosas, o uso da lama.

— Olhe, observou elle; a primeira noite que passei, na escada de S. Francisco, dormi-a inteira, como se fosse a mais fina pluma. Porque? Porque fui gradualmente da cama de esteira ao catre de pau, do quarto proprio ao corpo da guarda, do corpo da guarda ao xadrez, do xadrez á rua...

Quiz expor-me finalmente a philosophia; eu pedi-lhe que não. — Estou assaz preocupado hoje e não poderia attendel-o; venha depois; estou sempre em casa. O Quincas Borba sorriu de um modo malicioso; talvez soubesse da minha aventura, mas não accrescentou nada. Só me disse estas ultimas palavras á porta:

— Venha para o Humanitismo; elle é o grande regaço dos espiritos, o mar eterno em que mergulhei para arrancar de lá a verdade. Os gregos faziam-na sair de um poço. Que concepção mesquinha! Um poço! Mas é por isso mesmo que nunca atinaram com ella. Gregos, sub-gregos, anti-gregos, toda a longa serie dos homens tem-se debruçado sobre o poço, para ver sair a verdade, que não está lá. Gastaram cordas e caçambas; alguns mais afoutos desceram ao fundo e trouxeram um sapo. Eu fui directamente ao mar. Venha para o Humanitismo.