CAPITULO CL

 
Rotação e translação
 

Ha em cada empreza, affeição ou edade um cyclo inteiro da vida humana. O primeiro numero do meu jornal encheu-me a alma de uma vasta aurora, coroou-me de verduras, restituiu-me a lepidez da mocidade. Seis mezes depois batia a hora da velhice, e dahi a duas semanas a da morte, que foi clandestina, como a de D. Placida. No dia em que o jornal amanheceu morto, respirei como um homem que vem de longo caminho. De modo que, se eu disser que a vida humana nutre de si mesma outras vidas, mais ou menos ephemeras, como o corpo alimenta os seus parasitas, creio não dizer uma cousa inteiramente absurda. Mas, para não arriscar essa figura menos nitida e adequada, prefiro uma imagem astronomica: o homem executa á roda do grande mysterio um movimento duplo de rotação e translação; tem os seus dias, deseguaes como os de Jupiter, e delles compõe o seu anno mais ou menos longo.

No momento em que eu terminava o meu movimento de rotação, concluia o Lobo Neves o seu movimento de translação. Morria com o pé na escada ministerial. Correu ao menos, durante algumas semanas, que elle ia ser ministro; e pois que o boato me encheu de muita irritação e inveja, não é impossivel que a noticia da morte me deixasse alguma tranquillidade, allivio, e um ou dous minutos de prazer. Prazer é muito, mas é verdade; juro aos seculos que é a pura verdade.

Fui ao enterro. Na sala mortuaria achei Virgilia, ao pé do feretro, a soluçar. Quando levantou a cabeça, vi que chorava deveras. Ao sair o enterro, abraçou-se ao caixão, afflicta; vieram tiral-a e leval-a para dentro. Digo-vos que as lagrimas eram verdadeiras. Eu fui ao cemiterio; e, para dizer tudo, não tinha muita vontade de falar; levava uma pedra na garganta ou na consciencia. No cemiterio, principalmente quando deixei cair a pá de cal sobre o caixão, no fundo da cova, o baque surdo da cal deu-me um estremecimento passageiro, é certo, mas desagradavel; e depois a tarde tinha o peso e a côr do chumbo; o cemiterio, as roupas pretas...