CAPITULO CXXVII

 
Formalidade
 

Grande cousa é haver recebido do ceu uma particula da sabedoria, o dom de achar as relações das cousas, a faculdade de as comparar e o talento de concluir! Eu tive essa distincção psychica; eu a agradeço ainda agora do fundo do meu sepulchro.

De facto, o homem vulgar que ouvisse a ultima palavra do Damasceno, não se lembraria della, quando, tempos depois, houvesse de olhar para uma gravura representando seis damas turcas. Pois eu lembrei-me. Eram seis damas de Constantinopla, — modernas, — em trajos de rua, com a cara tapada, não tapada á outra maneira, com um espesso panno que as cobrisse devéras, mas com um veu tenuissimo, que simulava descobrir somente os olhos, e na realidade descobria a cara inteira. E eu achei graça a essa esperteza da faceirice musulmana, que assim esconde o rosto, — e cumpre o uso, — mas não o esconde, — e divulga a belleza. Apparentemente, nada ha entre as damas turcas e o Damasceno; mas se tu és um espirito profundo e penetrante (e duvido muito que me negues isso), comprehenderás que, tanto n’um como n’outro caso, surge ahi a orelha de uma rigida e meiga companheira do homem social...

Amavel Formalidade, tu és, sim, o bordão da vida, o balsamo dos corações, a medianeira entre os homens, o vinculo da terra e do ceu; tu enxugas as lagrimas de um pae, tu captas a indulgencia de um Propheta; e se a dôr adormece, e se a consciencia se accommoda, a quem, senão a ti, deverão esse immenso beneficio? A estima que passa de chapeu na cabeça não diz nada á alma; mas a indifferença que corteja deixa-lhe uma deleitosa impressão. A razão é que, ao contrario de uma velha formula absurda, não é a lettra que mata; a lettra dá vida; o espirito é que é objecto de controversia, de duvida, de interpretação, e conseguintemente de luta e de morte. Vive tu, amavel Formalidade, para socego do Damasceno e gloria de Muhammed.